segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

A borboletinha numa noite de fúria


Acordei no meio da madrugada, noite quente dos infernos. Odeio o verão, por mim o inverno seria eterno, frio de encarangar os ossos, daqueles que dá medo de cagar, pensando no risco de na hora em que o cocô cair, respingar aquela água gelada na bunda. Que saudade de sentir esse medo da água gelada na bunda.

Odeio o verão!

Sair do banho suando, nem mil ventiladores deixam a noite possível de ser dormida. O lençol esquenta, dá vontade de dormir no chão, na pia, mas até eles esquentam em pouco tempo. Um saco.

E para deixar ainda mais detestável a equatoriana noite passada, esses móveis malditos estão infestados de cupins. Cupins do caralho!

No meio da noite, janela escancarada, ventilador ligado de frente para minha cara, e surge um enxame de cupins voadores, aquelas minhoquinhas nojentas que deixam suas asas pela casa inteira, que tomam conta do lençol, que entram por baixo da fronha e ficam no travesseiro, que são absurdamente resistentes ao Jimo Cupim, não morrem de jeito nenhum, desgraçadas.

Li não sei onde que cupins morrem com fogo, me deu uma vontade de atear fogo nessa merda desse apartamento velho caindo aos pedaços, ver tudo queimando, ardendo como arde o verão. Sério, duvido que o inferno seja mais quente que uma noite de janeiro sem vento.

Levantei era umas três, três e meia no máximo.

Esvaziei uma lata inteira de Jimo Cupim em cada buraquinho daquele guarda-roupas podre. Depois, para completar meu genocídio, acabei com uma lata de SBP apontando para tudo quanto é lado do quarto.

Resultado? Impossível ficar ali, até eu morreria intoxicada.

Tive que ir para a sala, e lá tava pior ainda. O sol da tarde bate na janela da sala, e como eu tenho que deixá-la fechada quando saio para o trabalho, quando eu chego, aqueles mínimos metros quadrados da sala conjugada a cozinha viram uma estufa.

Mas tenho certeza, parte do meu incomodo era raiva de você. Raiva por ter sido abandonada por você. Quem você pensa que é para me deixar assim?

Filho da puta!

Só por que ela é coxuda e eu sou magrela?

Filho da puta!

Você dizia que gostava da minha magreza, que eu parecia uma borboletinha, delicada, fininha, esguia. Você me chamava de “minha borboletinha”.

Filho da puta!

Enfim, foi nessa hora de raiva do calor e ódio de você, que resolvi radicalizar, mudar minha vida, deixar meu mundo de cabeça pra baixo.

Pensei em várias alternativas, fazer uma tatuagem, talvez.

Ou então, melhor ainda, ao invés de ir para o trabalho responder uma tonelada de emails, dizer sim senhor, não senhor, tudo bem senhor, pois não senhor, claro senhor, agora mesmo senhor, mais café senhor? eu largaria o emprego. Acho uma merda aquele trabalho. É sufocante ser mandada por um débil-mental quase acéfalo, que ganha três vezes mais do que eu para ficar vendo sites de mulheres peladas enquanto eu faço o trabalho dele para que ele leve os créditos. Pensei em pegar o mesmo ônibus lotado de todo dia, ir par ao centro, entrar na sala daquele asno e mandá-lo a merda, mandá-lo se foder, enfiar o emprego no cu.

Depois sairia aliviada pela minha vingancinha quase infantil. Caminharia calmamente até o primeiro boteco, pediria uma coca de verdade- nada de coca light, dessa vez. Ou melhor, pediria uma cerveja às sete da manhã. Uma Xingu. E um ovo cozido, daqueles do pote de conserva com água nublada, nojentos. Comeria com mostarda escura, o ovo nojento. Não usaria guardanapos, limparia a boca na manga do uniforme do meu então ex-emprego.

Arrotaria alto, se tivesse vontade.

Antes de sair do boteco pediria um maço de Plaza, ou Derby. O que fosse pior. Começaria a fumar.

Com meu novo bafo de cigarro, me abaixaria até o ouvido daquele ceguinho desafinado que fica tocando músicas ininteligíveis no seu acordeom velho, e diria que a música dele é uma merda, que se não fosse por pena, ele morreria de fome, ceguinho desgraçado.

Iria até aquela igrejinha velha do centro, que sempre tem missa o tempo todo, e diria para a meia dúzia de carolas que estivessem por lá, “O que vocês precisam é de uma boa trepada, bando de carolas hipócritas do caralho!”.

E se no meio do meu caminho aparecesse algum escroto vestindo alguma horrorosa camisa de qualquer time de futebol, ia dar de dedo na cara dele, e dizer, não, eu não ia dizer, eu ia gritar para ele que nos dias em que ele vai para o estádio, ou fica preso na frente da televisão, a namorada, esposa, mulher, seja lá o que for, com certeza fica dando para alguém muito melhor do que ele, até por que, o outro prefere mulher do que futebol.

Pegaria o ônibus que leva até o teu novo apartamento, e se alguém puxasse conversa comigo na fila do ônibus, perguntando do tempo, do sol, da chuva, eu enfiaria a mão na cara. Ah, se enfiaria!

Na tua casa, apertaria a campainha ininterruptamente, cravaria meu dedo na porra da campainha e só tiraria de lá quando você abrisse a porta com a cara amassada de sono, de quem levanta depois do meio dia por que brinca de ser músico.

Eu diria com o dedo apontado para a sua cara que você não é tão bom quanto pensa que é. Que você é bem mais ou meninhos, na verdade. Meia boca. Que até fode direitinho, mas beija mal pra cacete. Diria que você não me faz falta, que estou melhor sem você, que agora me sobra o dinheiro que antes eu gastava para te sustentar nos períodos em que nenhum barzinho te contratava para ficar tocando aquele violão velho, sempre as mesmas do Djavan, do Cláudio Zoli, uns reggaezinhos da moda. Tudo uma merda. Diria que você não tem criatividade nem mesmo para escolher a porra do seu repertório de barzinho.

Diria na sua cara tudo o que você merece ouvir, só desaforo, só desabafo. E diria que não estava dizendo aquilo tudo só por que eu larguei meu marido para ficar com você, e um mês depois você me deixou para ficar com aquela cadela coxuda.

Depois de dizer tudo o que eu quisesse te dizer, cuspiria na sua cara. Daria uma gargalhada, viraria as costas e sairia satisfeita, aliviada, vingada. Seu cantorzinho filho da puta de merda.

Após meu desabafo, eu sairia do seu novo prédio e seria enfim feliz para sempre. Livre, leve e solta. Sem você, sem aquele emprego nojento, só eu e o que me desse vontade de fazer.

Pensando nisso tudo, acabei dormindo no sofá da sala-estufa. Acordei toda suada, cheia de picadas de mosquito e atrasada para o trabalho.

Quando fui tomar meu banho, faltou água.

Só troquei de roupa e saí de casa para o meu dia de fúria, dia da minha vingança com o mundo.

Por acordar atrasada, perdi o ônibus que costumo pegar. Fiquei na fila esperando o próximo, uma velhinha se aproximou de mim, e perguntou, “será que vai chover?”.

Olhei pra ela com raiva, respirei bem fundo, olhei fundo nos olhos dela, aqueles olhos meio desbotados, sem cor, que todo velho tem, e respondi, “Acho que sim. No fim do dia, talvez. Tá tão quente, deve cair uma dessas chuvas de verão no fim da tarde.”

Ela sorriu e não falou mais nada.

Como já estava atrasada mesmo, passei na padaria do centro antes de ir para o trabalho, pedi um misto quente e uma coca light.

Um careca barrigudo fumava um Derby perto de mim, que cheiro nojento aquilo tem.

Saí da padaria, e quando passei na frente daquela igrejinha velha do centro, vi que conforme eu havia imaginado, lá dentro uma meia dúzia de carolas ouviam o que o padre dizia. Fiz o sinal da cruz e fui para o trabalho, mas antes dei as moedas do troco do meu misto quente com coca light para o ceguinho desafinado que tocava acordeom.

Subi o elevador do prédio, fui até a sala do meu chefe e pedi desculpas pelo atraso, disse que passei a noite com minha mãe no hospital. Ele perguntou, “Ué, ela não tinha morrido no carnaval do ano passado?” Eu sorri amarelo, e disse que não, que quem tinha morrido era a minha avó, tadinha, tão velhinha...

Depois disso respondi uma tonelada de emails, disse várias vezes durante o dia: sim senhor, não senhor, tudo bem senhor, pois não senhor, claro senhor, agora mesmo senhor, mais café senhor? E o expediente acabou.

Passei naquele cara que você disse que era muito bom, com a mão firme, traço bonito, material de qualidade.

Não choveu no fim do dia, e continua quente como o inferno.

Agora estou aqui, te mandando este email enquanto escuto aquela coletânea do Djavan que você me deu no meu aniversário, com as músicas que você costuma tocar nos barzinhos.

Te escrevo, ouço Djavan e olho para a borboletinha, delicada, fininha, esguia, linda, linda que agora tenho no meu tornozelo.

Não me vinguei do mundo, mas fiz uma tatuagem que é uma gracinha.

4 comentários:

Letícia Palmeira disse...

"Mais ou meninhos" como eu. Mas não conta pra ninguém que sou assim. Eu não aguentaria os cupins. O cara poderia até sumir, mas os cupins acabariam com a minha vida.

Gosto de textos construídos sob a cólera. E ver um homem escrevendo como se sente uma mulher pra lá de "abandonada" é muito bom. Traz realidade ao que sentem as "borboletinhas" que sofrem caladas.

Shuzy disse...

Atitudes típicas de 'mulherzinha'
hehehe

mundo da lu disse...

Esse é totalmente real! Que merda!
Não o texto, esse é ótimo.
Estou me habituando a ler vc, vontade de bater papo cntigo no boteco...

Bruna Rafaella disse...

hahahaha...
Meu por essa eu não esperava,
bem síndrome de mulher louca...
muito engraçado, tanta coisa
interessante aqui...