segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Terapia


Vejamos. Analisemos seu caso.

Ãhn?

Você diz que não gosta de sair, que não gosta de multidão.

Certo.

Nenhum tipo de baladinha você curte?

Não gosto de música alta.

E se tiver tocando as músicas que você gosta?

As músicas que eu gosto eu escuto sozinho, na minha casa, no meu fone de ouvido. Sou egoísta.

Nem de barzinhos mais reservados você gosta?

Correto. Não gosto de gente.

E da sua família?

Fodam-se.

Credo!

Tá certo, não precisa tanto, basta ficarem longe de mim.

Mas você nunca sai, não gosta de nada?

Gosto de zona.

Zona?

Sim, zona, puteiro, você sabe.

Sim, eu sei. Mas zona também tem gente.

Mas lá tá cada um na sua e não preciso mentir para a mulher que achei gostosa dizendo que ela é inteligente, que a cor dos olhos dela é encantadora, que adoro mulheres com senso de humor e que o dela é ótimo. Posso dizer que gostei dos peitos, da bunda, das coxas, perguntar quanto, pagar, comer, ir embora sem dar meu telefone e ponto final feliz.

E você não para pra pensar que ela pode ter sentimentos?

Não. Não estou lá para conquistar ninguém, e sim para fazer negócios. Pago o que me pedir pelo produto que me interessou, consumo e vou-me embora. Cumpri minha parte no trato. Não menti, não fingi, fui sincero, não é isso que as mulheres esperam de um homem?

Talvez as mulheres esperem mais do que isso.

Na zona?

Por que não?

Por que acho que ninguém se torna puta para buscar o príncipe encantado. Ou é por que tá precisando de grana, ou por que gosta muito da coisa.

Você deve ter tido uma infância difícil, isso me cheira a trauma, alguma história do passado que não foi bem resolvida.

Escute aqui, se eu quisesse arranjar um amor, iria num desses sites de namoro, se eu quisesse amigos, faria uma conta no facebook, se eu quisesse terapia, pagava uma psicóloga, mas eu falei que gosto de zona, não falei?

Falou.

Então, quer fazer o favor de tirar logo essa roupa e fazer o serviço, que teu preço é por hora e eu não tenho a noite inteira.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Não é nada disso que você está pensando


Depois de duas escandalosas puladas de cerca, ela sabia que não seria qualquer argumento que o convenceria a perdoá-la mais uma vez. Teria que ser extremamente persuasiva para provar a ele o que ela sabia bem, tinha certeza, aqueles deslizes jamais se repetiriam.

Durante mais de três meses, ele sequer a atendera, se recusava a ouvir a voz dela, mesmo sofrendo, chorando todas as noites de tanta saudade que sentia da mulher que amou mais do que a qualquer outra.

Contudo, a profunda dor de corno que instalara-se no peito que havia se programado para sentir apenas amor por aquela mulher, não fora maior do que a saudade que o consumia com mais voracidade do que ele emendava seus consecutivos e ininterruptos cigarros e esvaziava garrafas de frisantes demi-sec (queria sofrer com algum glamour, e pensou que beber sozinho a bebida preferida dela, seria uma maneira só sua de se vingar da cadela, como carinhosamente passou a chamá-la), companhias das noites mal dormidas desde a separação.

E foi por reconhecer-se refém da saudade que o maltratava, que aceitou encontrá-la uma vez mais no apartamento que antes faziam de lar, e que no flagrante do adultério ele abandonara para instalar-se no quarto dos fundos da casa da mãe, uma senhora viúva e que, apesar de saber que seu filho já se aproximava a passos largos da casa dos quarenta, ainda o tratava por “meu menino”. Mesmo com os apelos da velha senhora para que ele desistisse da ideia, dizendo, É como você mesmo diz, aquilo lá é uma cadela, não te merece. Ela repetir o erro de te trair, não me surpreende, mas daí a você repetir o erro de perdoar, já é demais, meu filho. Mesmo assim, ele foi.

Ela sabia que não teria outra chance, tanto quanto sabia que não seria feliz ao lado de qualquer outro homem da face da terra, e por isso tratou de caprichar nos preparativos da reconciliação com tanto empenho, quanto sabia que teria para fazer dele o marido mais orgulhoso da esposa que voltaria a ter. Não cometeria mais o menor deslize, seria devota a ele como mulher nenhuma jamais fora ao seu amado.

Por mais avessa que fosse ao trabalho pesado, ela mesma fez questão de juntar-se à faxineira para ter certeza que cada menor milímetro do apartamento estivesse brilhando naquela noite. O cenário da reconciliação deveria estar impecável. Lamentou que o chão fosse coberto por um daqueles antigos carpetes, parque de diversão e procriação de todas as variedades de ácaros que já se catalogou, e uns tantos outros ainda não descobertos pela ciência. Se fosse porcelanato que cobrisse o chão que pisavam, seria ainda maior a sensação de limpeza.

Espalhou pelo chão de todo o apartamento uma quantidade exagerada de pétalas de rosas. Mesmo sofrendo crises assassinas de enxaqueca, em cada cômodo da casa acendeu um dos incensos que ele tanto gostava, e que ela nunca permitia que ele acendesse para tentar diminuir a probabilidade de mais um dos seus acessos de dor de cabeça. Pelo perdão dele, até a enxaqueca ela suportaria sorrindo.

Comprou uma lingerie do jeito que ele sempre pedira, mas que ela se recusava a usar por considerá-la vulgar. Não é que eu fiquei gostosa? Disse olhando-se no espelho após ter experimentado a peça de pouco pano e muito preço, Bem gostosa, reforçou admirando o fio que divida suas nádegas bem feitas.

No forno, deixou assando o salmão que seria servido com o molho de maracujá que repousava a espera do peixe.

Espalhou por toda a casa velas. Muitas velas. Velas de tamanhos variados, cores sortidas, tudo para ambientar o máximo possível o amor que ela queria de volta para si.
A hora marcada se aproximava, não tardaria para que ele chegasse.

Encheu a banheira com essências aromáticas, e foi banhar-se para que sua pele ficasse tão perfumada a ponto de ele considerar a reconciliação nem que fosse por tesão. Para ela bastaria.

Com medo de que ele chegasse um pouco mais cedo do que o combinado, como era seu costume – caso não fosse não a teria flagrado duas vezes – acendeu cada uma das velas, pois, assim, chegando ele antecipadamente, o ambiente já estaria pronto para recebê-lo, e foi mergulhar na banheira que a esperava.

Uma coisa que ela não havia premeditado é o temperamento sádico do amor. Se fosse mais atenta, saberia desta índole reprovável do escravista sentimento, já que fora ele mesmo que forçara os já citados flagrantes.

Sendo assim, eis que por uma mínima fresta aberta da janela, o amor soprou com um pouco mais de força do que o vento, derrubando duas das dezesseis velas acesas, o suficiente para que tombassem sobre o carpete velho, e iniciassem ali um incêndio incontrolável.

Quando ela deu-se conta do que ocorria do lado de lá da porta do banheiro, avisada pela fumaça que insistia em fazer companhia a ela na banheira cheia de água e óleos aromáticos, já não havia como sair de lá.

Seu Roberval, o porteiro do prédio, primeiro sentiu o cheiro forte, depois percebeu a fumaça que avançava afoita pelos corredores.

Com um chute forte, colocou a porta abaixo e deparou-se com o apartamento de decoração refinada – apesar do carpete – sendo consumido com pressa pelas labaredas gulosas. Gritou por ela, e ouviu os gritos desesperados vindos do banheiro.

Não pensou duas vezes, foi correndo até lá, com muita dificuldade abriu a porta que não estava trancada, e a viu encolhida na banheira rodeada de fogo. No momento que foi tentar tirá-la de lá tropeçou no tapete do banheiro, bateu com a cabeça na beira da pia e caiu desmaiado sobre ela, dentro da banheira.

Em poucos minutos, ambos morreram carbonizados.

Morreu sem o perdão do homem que tanto amava e a quem, a partir daquele dia, pretendia oferecer uma fidelidade maior e melhor do que dizem ser a canina.

No enterro, quando Adalberto, padrinho de casamento e melhor amigo do casal, foi abraçá-lo e prestar as condolências típicas da ocasião, disse em tom de conforto, Os médicos disseram que ela morreu asfixiada pela fumaça, o que fez que fosse mais rápido e menos doloroso do que se morresse queimada, ouviu o amigo recém-viúvo dizer:

Antes tivesse morrido carbonizada, para sofrer bastante! Depois de me trair duas vezes e me convencer a tentar uma terceira, morreu dando para o porteiro na banheira que era nossa, aquela cadela!

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Intransponível


Seus olhos estão lindos, como estão brilhando. Adoro seu olhar, já disse? E digo mais, pela sua idade, não esperava tanto, mas você me surpreendeu de verdade. E quem te vê naquele uniforme que faz você parecer ainda mais magra do que é, não imagina como é lindo o seu corpo. De verdade, você tem um corpo lindo, simétrico, e não vou estar mentindo se disser que a sua é uma das mais lindas bundas que já vi, se não for a mais. E é bom saber que você gostou também, mesmo sem ter dito, eu sei que você gostou. A experiência nos ensina quando uma mulher gostou de verdade. Assim como a experiência também nos ensina determinados atalhos que os homens da sua idade não conhecem, sem contar a falta de pressa. Só com o tempo, nós homens, aprendemos que as mulheres gostam de tudo com um pouco mais de calma. Só com o tempo, nós homens, aprendemos que jeito é melhor do que força. De verdade, gostei muito, muito mesmo! Se você quiser, podemos até repetir, mas com aquela condiçãozinha, tudo em segredo. Eu adoraria fazer de você minha mulher, mas entenda, não seria possível. E não é pelo meu estado civil, eu sou separado, você sabe, mas não seria possível. Não que você não valha à pena. Você vale, e muito. Não se trata de preconceito também, mas entre nós há uma diferença intransponível. E não é pelo fato de você ter nascido pobre, com vocação para morrer pobre, e eu ter nascido mais ou menos bem de vida. É que existe algo além da conta bancária que nos torna inacessíveis um ao outro. Amor é bastante bom por um tempo, mas depois ele precisa de algo mais para manter-se tolerável, um algo mais que não temos, infelizmente. Não pense que eu quero magoar você, de jeito nenhum, isso em hipótese alguma. Só estou sendo prático, outro benefício da idade, tornamo-nos práticos. Romantismo demais cansa. Até por isso os filmes com mais de três horas de duração precisam de tantos efeitos especiais para entreter o público. Ninguém agüentaria um romance por mais de duas horas. Se eu tivesse dez anos a menos, o que me tornaria só um pouco mais velho do que você, talvez eu até ainda tivesse paciência para te ensinar a apreciar bons vinhos, te mostrar bons restaurantes, até melhores do que aquele que jantamos hoje, te apresentar aos melhores livros, te apresentaria o teatro, para que você aprendesse como as boas peças comovem mais e melhor do que os bons filmes. Mas, hoje, com a minha idade, não tenho paciência para começar tudo do zero. Não que você não valha à pena, repito, mas é rabugice da idade, espero que você me entenda. E eu também já não teria saco para ir aos lugares que você freqüenta, jovens demais, barulho demais, gente demais. Eu gosto é disso aqui, sossego, uma boa música ao fundo, pouca luz, eu, você, pouca ou nenhuma roupa, uma bela banheira, pra que mais? Foi bom pra você, foi bom pra mim, e nenhum de nós precisou gritar para ser ouvido. Pra que mais? Pra que melhor? Não faz essa carinha, você é linda, uma mulher incrível, achei lindo o jeito que você tentou se instruir nos últimos meses para se aproximar de mim, para puxar conversa. Achei realmente lindo, tanto que estamos aqui. Quer ver o dia que você apareceu de salto alto, andando meio desajeitada para tentar parecer mulher sofisticada, achei tão lindinho aquilo... Se você quiser, esse nosso segredinho pode se repetir, pode até se tornar quase uma rotina por algum tempo, mas não espere nada mais do que isso. Até por que, mais do que isso poderia causar algum desconforto para nós dois lá na empresa. Por favor, não crie falsas expectativas a meu respeito, não espere mais do que isso.

Eu não espero.

Não?

Não. Não espero e nem quero.

Ficou magoada, né?

Não, de jeito nenhum. É que não quero mesmo. Na verdade só viemos aqui para eu provar que estava certa.

Certa de quê?

De que você não é viado.

Você pensava que eu era viado?

Eu não, mas o resto todo da empresa pensa que sim.

Sério?

Sério. Esse seu ar de superior, de super culto, de quem sabe tudo sobre tudo, isso parece coisa de viado. Só viado é tão inteligente assim. Sem contar a tal da ex-esposa que ninguém nunca viu. Mas eu sempre botei fé em você, tanto que estamos aqui. E estava certa, pra viado você não serve.

Só falta dizer que foi aposta.

Aham.

Puta que o pariu...

Pense no lado positivo, pelo menos não vão mais dizer pelos corredores da empresa que você é viado.

Que consolo...

Mas você gostou, ou vai dizer que não? Há quanto tempo você não ia pra cama com uma mulher da minha idade, com um corpo igual ao meu?

Claro que gostei, tanto quanto sei que você também gostou.

Sim, gostei, foi bem bom. Mas já tive melhores.

Como é que é?

Olha, sem querer ofender, jeito é bom, muito bom, mas nada como uma boa pegada. Pergunte para qualquer mulher, para a sua ex-esposa, uma boa pegada faz toda a diferença. Você sabe fazer a coisa direitinho, foi realmente bom, mas um pouquinho mais de força pode melhorar bastante a sua performance. Fica a dica.

Você deve estar brincando.

Claro que não, com dinheiro não se brinca. É como você disse, eu nasci pobre, com vocação para morrer pobre, logo, cinquentinha faz uma boa diferença no fim do mês. Para mim, pelo menos. Para você eu sei que não. Como você mesmo disse, você nasceu mais ou menos bem de vida. Cinquentinha é menos do que o preço dessa garrafa de vinho que você comprou para beber sozinho, acredito até que mais para me impressionar do que por gostar de verdade, mas, mesmo assim, ela custa mais do que cinquentinha.

E o brilho no seu olhar?

Vontade de rir. Jantei uma comida mais cara que o meu salário, dormi no melhor motel da cidade, comi o chefe, provei mais uma vez que estava certa e ainda vou levar cinquentinha pra casa.

E nós?

O que tem nós? Não existe “nós”. Se você quiser, a gente pode até repetir, pode ser o nosso segredinho, até por que já não vai estar valendo grana. Mas, mesmo assim, pode ser o nosso segredinho. Só não crie expectativas, é como você disse, entre nós existe uma barreira intransponível.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

O amor segundo Francisco


Vou me mandar daqui, já está decidido.

Vou romper com o mundo, queimar meus navios.

Vou largar tudo do jeito que tudo estiver, sem pensar nas contas, nos três ou quatro amores que alimento meio que a míngua, no trabalho, nas multas vencidas, na consulta que o cachorro está devendo ao veterinário, na grama que não cortei sábado passado, no retorno ao ortopedista para dar um jeito nessa minha coluna envergada, sem pensar em nada. Fica tudo do jeito que tudo estiver.

Vou aí, vou pra ficar com você, sem saber se você me quer.

Depois, só você me dirá para onde vou poder ir.

Vamos, enfim, fazer samba e amor até mais tarde.

Samba já estava na programação, amor é a novidade que não te apresento, te imponho.

E será tanto samba e amor, que deixaremos pra lá as horas, mesmo que sejam avançadas, e não terá problema o muito sono que sentiremos de manhã. Não acordaremos de manhã. Acordaremos com o sol já bem alto, já do outro lado da curva do dia.

E falaremos dos nossos amores, de todos eles.

Beberemos e soluçaremos como se fôssemos náufragos. Dançaremos e gargalharemos como se ouvíssemos música. E tropeçaremos no céu como se estivéssemos bêbados. E flutuaremos no ar como se fôssemos pássaros.

E quando for noite de novo, faremos mais sambas e mais amor. E não pararemos mesmo que a fábrica buzine no útero dos nossos tímpanos. E você, bem-vinda companheira, ficará num eterno espreguiçar enquanto eu abraço o corpo do bendito violão.

E estaremos em nossos corpos feito tatuagem, tatuaremos algo nosso. Nós dois gostamos de fazer dos nossos corpos papel para as tintas dos tatuadores. Não que isso signifique que necessitemos de coragem, mas apenas para perpetuarmo-nos escravos um do outro, escravos que reciprocamente nos pegaremos, esfregaremos, negaremos, mas, não largaremos. E quando eu já estiver pesando feito cruz nas suas costas, talvez você já não goste, mas amarei cada uma das suas postas retalhadas por mim.

Quando você estiver cansada de mim, vou dizer que procurarei trabalho, sairei com meu terno mais bonito pra causar boa impressão, vou jurar não me atrasar, vou te provar que posso ser operário aí nesse país estranho. E, de certo, encontrarei por aí bons bares onde possa sentar e conversar com um ninguém qualquer, falaremos de futebol, sei que há futebol aí, e eu e o estranho-amigo falaremos das meninas brancas, descoloridas pela deliciosa falta do sol nessa época do ano, e, na volta, sei que você vai esquentar meu prato, beijará o meu retrato e há de abrir os braços para mim.

No dia seguinte, quando voltar para o bar com meu estranho-amigo, vou dizer que você não é criativa, que todo dia faz tudo sempre igual, que me oferece sempre o mesmo sorriso pontual, com beijo de sabores pouco variados, ora hortelã, ora café, ora feijão. Mas, à noitinha, lá pelas seis da tarde, você vai me esperar no portão, e agora o seu beijo será de paixão e de juras de amor eterno.

E quando eu sair de novo para fingir que procuro trabalho, você falará para suas amigas que eu, o seu amor, tenho um jeito manso que é só meu, que roubo seus sentidos, que violo seus ouvidos com minhas indecências, que terias vergonha de mostrar as tantas marcas que meus dentes deixam na tua pele alva, mas que gostas desse modo de seres a minha menina.

Mas um dia eu desconfiarei do seu comportamento, e vou falar para o meu estranho-amigo, Essa moça tá diferente! Vou delatar que você anda me guardando desdém.

Quando você já estiver explodindo do enfado que minha cara e minhas manias vão te causar, você me mandará ser feliz, passar bem. E você não se importará com minhas crises de ciúmes, mesmo que eu enlouqueça, e você me dirá, Sem você eu passo bem demais.

E vou jogar na sua cara que me atirei assim, de trampolim, dei meu quinhão, botei minha mão no fogo com meu coração de fiador.

Você me dirá, Mentira.

Vou falar que comprei anel, que reservei hotel, que fui muito fiel e que já estava no papel da minha vida o nosso grande amor.

Você me dirá, Mentira.

Vou dizer que você arrancou o coração do meu peito, e hoje lá, por sua causa, mora uma pedra, mas que agora, por sua causa, não sou mais um sonhador, e rejeito as flores da calçada, e rio copiosamente da possibilidade do grande amor.

Você me dirá, Mentira.

E quando nos encontrarmos, você só vai dançar com ele, vai sorrir pra mim e dizer que é sem compromisso. E vou ter que me segurar para não fazer um bate-boca dentro do salão.

Quando você se fartar dos meus destemperos, você me dirá que me deu seu corpo, sua alegria, e agora, no desfecho do fim da nossa festa, você só me pedirá para deixar em paz o seu coração, convertido num pote até aqui de mágoa.

E te ver partir, será perder um pedaço de mim.

Será arrumar o quarto do filho que não chegamos a ter.

E um dia, quando te encontrar já nos braços de outro, vou te exigir explicações, mas em meio aos meus berros você me dirá cheia de uma calma irritante, Te perdoo por te trair.

Vou gritar que você não tem o direito de não me amar, de não me ser submissa, vou explicar que você é a metade adorada de mim, e a outra, que sou eu sem você, não me terá qualquer serventia.

Vou tentar comover você dizendo que você levou meu sorriso, meu assunto e, por sua causa, o meu violão, que antes tocava samba na prévia do amor que fazíamos, agora está mudo.

Mas você me desprezará, dizendo que prefere amar com qualquer nego torto, do mangue, do cais do porto, do que voltar a ser minha namorada, por maior que seja a quantidade de ouro e cobre que eu te ofereça.

E me dirá que mesmo que eu te procure sem minhas tantas fantasias, você sabe melhor do que qualquer outra mulher que não será da noite para o dia que eu vou crescer.

E eu vou suplicar para que você não evite meu amor, que aceite pelo menos meus convites, vou implorar para que você se perca em meus braços, vou pedir que você me aceite fraco, tolo, todo seu.

Mas você não vai voltar e, sem mim, vai ser feliz.

Eu não.

Mas, não tem problema.Vou aí, vou pra ficar com você, mesmo sem saber se você vai me querer.

E amanhã, faremos samba e amor até mais tarde.

Do samba você já sabe, mas, mesmo que não tenha lhe avisado antes, lhe aviso agora, antes que eu sofra, além do samba faremos amor também.

E antes que você acorde, eu vou embora a tempo de você não me fazer sofrer, mas deixarei sobre o travesseiro amassado ao lado do seu, ainda com um bocadinho de cheiro meu, um papel qualquer escrito com minha letra – coisa rara em tempos de digitação – a letra de “Eu te amo”, música daquele compositor tupiniquim metido a escritor que sei que você gosta.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Anybody Seen My Baby


Por que você pintou o cabelo, Paula?

Esse amarelo no cabelo te deixou com cara de puta, Paula.

Não basta ser, tem que parecer também?

Você não faz ideia do quanto eu tive que rodar por essa cidade de merda pra te achar. Mania desgraçada que vocês têm de não parar num lugar. Os donos de puteiro são patrões tão ruins assim, ou o rodízio faz parte do ofício? Mania desgraçada que vocês têm de ficar mudando o número de celular o tempo todo. As operadoras são tão ruins assim, ou mudar o número de telefone faz com que vocês tenham sempre cara de novidade?

Liguei pra você no meu aniversário, estava sozinho, nostálgico, melancólico, quase triste. Precisava de você, mas o número que eu tinha já não existia mais. Estava tão melancólico que só encontrar você poderia ajudar um pouco. Teve almoço na casa da minha mãe, mas foi um saco, minha irmã bebeu mais do que devia e puxou uma briga idiota qualquer com o meu pai, aquele barraco que família classe média adora.

Eu não ligo por você ser puta velha. Não, você não é velha, mas convenhamos que no seu ofício 19 é o auge, e você já tá com 28. Mas eu gosto de você, sei lá por quê. Você nem é a mais bonita, você nem é a mais gostosa, mas eu gosto de você, sei lá por quê.

Você sabe que eu vivo na zona, mas, mesmo que você não acredite, permita-me confessar-me, nunca comi ninguém.

Não na zona.

Não pagando.

Sabe aquela história que o animal predador, selvagem, não come comida morta, não vive em cativeiro? Não, você não sabe. Nunca deve ter assistido National Geographic. Você mal sabe assinar o seu nome, não é mesmo? Pois bem, ele, o animal predador, selvagem, precisa caçar para ter prazer no que come. Comida também é prazer, sabia? Não, você não sabe. Parte da saciedade da alimentação está no prazer da caça. Comer puta seria comida morta, de cativeiro. Eu nem casei, para evitar o cativeiro. Não que tenha me faltado oportunidade, foi questão de escolha mesmo. Você sabe que eu não sou de se jogar fora. Posso até não ser um cara bonitão, mas não sou de se jogar fora. E tenho algum dinheiro, também. Caso contrário, não viveria na zona. Zona é caro. Mas casamento custa mais ainda. Venho na zona para gastar pouco. Mesmo quando gasto muito, é menos gasto do que casamento. Mas, quando tenho fome, caço na selva, não na zona.

Sei lá por quê, mas gosto de você. Você me faz bem.

Não gosto desse cabelo amarelo que te deixa com cara de puta, mas gosto de você.

É peruca?

Bem que poderia ser. Adoraria que você tirasse a peruca e estivesse careca, cabeça raspada, só para ver uns fiapos de cabelos pretos na sua cabeça, você pareceria mais minha do que com essa cabeleira amarelo-puta.

No meu aniversário eu teria ido pra cama com você. Não pagaria, claro. Você me deve favores, você sabe. Mas, tanto quanto você sabe disso, você também sabe que me daria sem que eu precisasse pagar. Sei que, pelo menos na primeira noite em que nos encontramos, você daria pra mim sem que eu precisasse pagar. Você sabe, eu sei.

Aquele dia rolou algo diferente.

E não me venha dizer que você faz com que todos se sintam assim, eu sei que não. Eu sei que, aquele dia, rolou algo diferente entre nós.

Você sabe, eu sei, nós sabemos.

Foi romântico, você sabe.

Mesmo que você tenha tirado a roupa na frente de todo mundo, era pra mim, só pra mim que você olhava.

Até por que fui eu quem pagou para você tirar a roupa. Você ofereceu o strip no quarto, mas, mesmo tendo algum dinheiro, também tenho contas a pagar, o quarto seria caro demais. Foi no palco mesmo.

E o jeito que você tirou a roupa na frente daquela meia dúzia que ainda estava lá naquela hora avançada, olhando pra mim, foi como se você dissesse, Eu te amo.

Naquela noite você me disse, Eu te amo. Não com a boca, não com a voz, mas eu sei que você me disse.

Você queria fumar, e eu paguei vinte reais num maço que no posto me custaria quatro e cinqüenta, só para te ver feliz.

Você ficou feliz.

Eu te dei meu isqueiro de ferro, você ficou emocionada, disse que não podia aceitar, que devia ter me custado caro. Eu fiz questão de te dar, foi minha vez de te dizer eu te amo sem usar a voz.

Você ficou feliz de novo.

Mas, admito, o isqueiro não foi caro.

Foi de graça, na verdade.

Roubei do meu chefe.

Mas finja que foi caro, se te faz feliz, se te parecer um grande gesto da minha parte.

Naquela noite eu até poderia, mas não quis pagar para ter você. Eu até poderia, tenho algum dinheiro, já disse, mas não seria tão bom quanto foi o nada que tivemos.

Mas beijei você. Dizem que não se deve beijar puta, mas eu beijei você. E você viu que eu beijo bem. Deve ter pensado que eu sou bom de cama, só pelo meu beijo. E vou te dizer, não sou ruim não.

Mas você jamais saberia disso se eu tivesse que pagar pela sua descoberta.

Só não entendo por que você pintou o cabelo, Paula.

Por quê depois dos 28, Paula?

Meu nome não é Paula, meu cabelo não é pintado, sou loira de verdade, meus pais acham que eu saí de Xanxerê pra estudar na Federal e tenho dezoito anos. Escute aqui, você vai querer alguma coisa ou vai ficar de conversinha a noite inteira?

Escute aqui você! Eu rodei a cidade inteira atrás da Paula, mas ninguém a viu. Em todas as casas onde eu já encontrei a desgraçada da Paula, ninguém a viu. Eu estou pagando, não estou? Foda-se sua pressa profissional, não te interessa se eu vou fazer alguma coisa ou não. Estou pagando e ponto final. Enquanto o taxímetro estiver rodando para percorrer a distância que eu paguei, você se chama Paula, seu cabelo é pintado, você tem 28 e ponto final.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Instinto


Azar dos humanos, que na falta do instinto precisam valer-se da fala e suas variáveis comunicativas para estabelecer contato com seus pares, sempre sujeitos aos ruídos, falhas, interrupções e a interpretação que estará do lado de lá daquilo que foi dito.

Eles teriam sido felizes para sempre, caso houvesse um pouco mais de credibilidade naquilo que diziam. Mas ambos privilegiaram a mentira em detrimento à verdade em momentos chave. Já não eram dignos da confiança recíproca que nina o sono dos bons amores.

Felizes dos gatos que, munidos de um instinto infalível, detectam no faro aqueles que são dignos do seu raro crédito. Tal qual o instinto de Zica, a gata preta que ele adotara numa feirinha realizada no estacionamento do Shopping Center de menor audiência da cidade, e que valia-se de artifícios como a supracitada feirinha para tentar atrair clientes às suas desérticas lojas. Zica sabia que ele lhe trataria bem, e não exigira dela o apego subserviente e imbecil que os cachorros requerem.

Nossa, ele disse depois da primeira noite que tiveram despidos não só das roupas, mas também dos pudores dos casais recém conhecidos, nunca fizeram isso comigo. Ela sorriu um sorriso largo e amarelo de nicotina, um sorriso lindo (amarelo é uma cor linda, vide a paixão que o sol desperta), e disse, Quem ama engole.

Pareceu-lhe precoce a utilização do verbo amar, mas ainda que desprovido do instinto que em Zica sobrava, de algum modo sabia que ali havia alguma espécie de amor. Talvez uma espécie só deles, mas, ainda assim, amor. Talvez não dos bons, mas dos grandes.

Não foi muito o tempo em que estiveram juntos, mas, dada a intensidade dos momentos compartilhados, a cronologia habitual não era suficiente para medir a grandeza do sentimento que os aproximava.

Zica, que desgostava de praticamente todos os humanos que não fossem ele, dela gostava.

Instinto.

Aninhava-se em seu colo cada vez que ela entrava na pequena casa conjugada a uma outra, tão pequena quanto, cujo sofá fora descartado para que na ínfima sala coubesse o piano de parede dele, e no jeans da calça surrada dela, Zica espreguiçava as garras aparadas em prol da preservação dos móveis da casa alugada.

Na primeira vez em que a vontade de ficar em casa sozinho, tocando piano até que os vizinhos viessem reclamar, ao invés de admitir o seu desejo, disse que não poderia encontrá-la, pois o motor do seu carro havia fundido.

Ela acreditou tanto no infortúnio do seu amado, que enquanto ele viu o sol amanhecer tocando peças de Chopin, ela passou a noite em claro pensando em como ele estaria.

Na segunda vez em que um encontro agendado pra mais de semana fora desmarcado, ela disse que precisaria viajar as pressas para a sua cidade natal. Sua avó materna estava morrendo, era sua última oportunidade de se despedir daquela que fora fundamental na sua criação. E enquanto ele dedilhava ao piano o réquiem de Mozart em homenagem a avó moribunda, ela tomava um chopp com um colega de faculdade num bar perto da casa dele. Os fatos não passaram do chopp e, sendo assim, levando-se em conta que para consumação da traição há a necessidade do acontecido, desconsiderando-se portanto os pensamentos e vontades implícitas, ainda que ornamentados por uma indecente troca de olhares, nada demais houve.

Na terceira vez o pai dele teve um princípio de enfarto para que ele pudesse exercitar Musette, de Bach. Mesmo sabendo que ele era ateu, ela rezou pelo pronto restabelecimento do sogro, então desconhecido.

Na quarta vez, uma crise de enxaqueca a prendera em casa, seria companhia desagradável. E, enquanto ele entretia-se com um destes detestáveis programas humorísticos de sábado a noite, ela foi dançar com amigos numa boate gay e, mesmo tendo se sentido profundamente atraída por aquele que parecia ser o único hétero do ambiente, não respondeu ao bilhete que o garçom lhe entregara, em respeito a ele.

Na quinta vez, depois que ele disse que precisaria ficar estudando para uma prova dificílima da faculdade, uma peça que nunca havia executado, ela resolveu dar a sua corrida da madrugada por um trajeto diferente do habitual, e o encontrou sentado num banco de frente para o mar, bebendo cerveja enquanto olhava o branco amarelado que a lua derramava naquele cantinho de oceano. Ficou magoada por descobrir a mentira, e lhe disse, Bastava você dizer, “hoje eu quero sair só”, eu entenderia.

Na sexta vez, quando depois de se recuperar milagrosamente, novamente a avó dela fora atirada a cama e, agora era certo, não escaparia, ele resolveu sair para beber e esquecer dos problemas, enviando pensamentos positivos para a matriarca anciã, desejando que não sofresse no fim, já que não acreditava que haveria algo depois daquele instante. Da mesa afastada e escura do bar, a viu entrar com um outro rapaz, vestindo camisa do Boca Juniors e vergonhosamente mais atraente do que ele. Ficou a distância observando os gracejos contidos de ambos, imaginando que no fim da noite ela sorriria seu sorriso amarelo para ele, e, depois da surpresa do rapaz, diria, Quem ama engole. Antes de ir embora, passou pela mesa dela e puxando um cigarro, perguntou como se não a conhecesse, Me empresta o isqueiro, por favor.

Depois de uma calorosa discussão e muitas caixas d’água cheias de lágrimas de ambos os lados, ela conseguiu o perdão dele sob a promessa de que, a partir de então, falariam irremediavelmente a verdade.

Na sétima vez, ele telefonou pra ela dizendo que precisaria ficar trabalhando até mais tarde. O labor lhe exigira um prazo desumano e, portanto, estava impelido pela ética profissional a abdicar do prazer da companhia dela. Ela entendeu. Só não entendeu quando horas mais tarde o encontrou, novamente, bebendo sozinho num posto de gasolina. Eu lhe disse, bastava você dizer, “Hoje eu quero sair só”, eu entenderia.

Apesar da decepção pela promessa descumprida, duas semanas depois, a vontade que ambos sentiam um do outro, desfez a desavença.

Na oitava vez, ela lhe disse que alguma coisa no almoço devia lhe ter feito mal, estava indisposta, não seria um bom dia para se encontrarem. Quando foi à locadora buscar um filme para entreter sua noite solitária, a encontrou ao lado de um outro amigo, com 9 e ½ semanas de amor nas mãos, e um sorriso amarelado não pela nicotina, mas pela falta de justificativa para o flagra, nos lábios.

Depois de dois meses em que a separação fez da vida deles um filme chato, sem graça, por telefone combinaram que se encontrariam no sábado seguinte. Amavam-se, oras, que se deixasse de lado as pequenezas da vida, e todos os esforços fossem concentrados naquilo que de fato importava. O amor, talvez.

Aconteceu que, duas horas antes do encontro marcado, ele telefonou para ela dizendo que não poderia encontrá-la, pois Zica adoecera, não respondia aos chamados dele, a preocupação impedia-o de qualquer outra atitude que não fosse levar a gata preta ao veterinário e dedicar todos os esforços e recursos que estivessem ao seu alcance para salvá-la.

Ela respirou fundo, e disse-lhe, Mas você é mesmo um grandessíssimo filho de uma magnânima puta de oitava categoria, seu merda! Em seguida, desligou o telefone para nunca mais atender qualquer chamado dele, não sem antes, ouvi-lo chorar aos gritos, Não, não, não! Indiferente, ela desligou.

Poucos sabem. Mesmo entre os mais experientes criadores de gatos, poucos sabem que gatos são os únicos seres que morrem de fome por opção, quase que por rebeldia.

Na maior parte dos casos, basta alternar o sabor da ração que é oferecida ao bichano, que ele prontamente volta a se alimentar.

Contudo, nas duas últimas das oito semanas em que o casal esteve separado, por mais que ele alternasse as rações, não houve jeito de fazer Zica comer. Emagrecera de maneira assustadora e, nos últimos dias, sequer tinha forças para dirigir-se a dignidade da sua caixinha de areia.

Se na primeira vez em que a solidão o convidou para sair ele dissesse a ela, Hoje eu quero sair só, ela compreenderia e respeitaria.

Se na primeira vez que aquele calor visto por muitos como pecaminoso a tomasse, ela dissesse a ele, Eu te amo, mas tenho minhas vontades. Quero envelhecer ao teu lado, e ainda que vez ou outra esteja em outros lençóis, não me interessa acordar em algum que não seja o seu, ele compreenderia. O amor que sentia por ela estava acima da necessidade de posse, mas abaixo da tolerância a mentira.

Se os humanos fossem dotados de instinto ao invés da fala, ela saberia que daquela vez ele estava falando a verdade. E, por falar a verdade e ter plena consciência do quanto amava a pequena vira-latas, saberia que a perda da sua gata lhe doeria mais do que um hipotético pai enfartado. Tivesse ela instinto, saberia que quando ele gritou, Não, não, não! ao telefone, referia-se a constatação do fato de que sua gatinha havia cessado para sempre a respiração que lhe estava tão difícil. Tivesse ela instinto, faria a ele companhia naquele momento tão dolorido, até por compartilhar da dor, pois ela também amava a bichana.

Assim como os demais humanos, nenhum dos dois era dotado de instinto e, deste modo, nunca mais tornaram a se encontrar.

Eles só tinham amor, e isso nem sempre é o bastante. Melhor seria se tivessem instinto.

Mas, instinto, só quem tinha era a Zica.

E, enquanto eles passarão os seus respectivos sempre separados, Zica está morta.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

O Caboclo da pica bem feita, a Cigana e a Menina arrependida


Nada no mundo é melhor do que ter esse homem, ela pensava cada vez que terminava a noite exausta de tanto gozar.

Quando ela disse, Você vai arder no fogo do inferno, filho duma puta, ele pensou, Que deus te ouça e o diabo diga amém, mas não chegou a dizer.

Tudo porque quando a viu chorando pelo amor que ele não lhe retribuía, deu uma risada e mandou chorar por alguma causa que valesse a pena, não por ele.

Ela já devia ter desconfiado do caráter dele quando numa noite de sexo muito intenso, ele parou instantes antes do orgasmo dela em meio a um acesso de riso, e depois de recuperar o ar, lhe disse, Se quando trepava a Janis Joplin tinha orgasmos, ela devia gemer igual a você, precisa gritar tanto? Ela ficara chateada, mas preferiu ir para o chuveiro sem dizer nada. Quando voltou para o quarto com os olhos inchados e vermelhos de tanto chorar, ele acendia um cigarro – contrariando o pedido dela de não fumar na cama – e fazendo pouco caso do choro dela, disse, Pô, foi pro banheiro fechar unzinho e nem me ofereceu um tapinha, mão de cola. Ela se abraçou ao travesseiro, virou para a parede e não lhe dirigiu mais a palavra naquela noite. Com a cabeça apoiada nas mãos entrelaçadas e cigarro entre os lábios, ele cantarolou com deboche, Cry baby, cry baby.

Vai dizer que você não sente nada por mim? Perguntou antes de praguejá-lo com as chamas do inferno, como se as palavras fossem a bóia que se joga ao náufrago numa última tentativa de salvação, mas ele respondeu, Tesão serve? Como se náufrago, fizesse questão de se afogar.

Eu não sei por que ainda sofro por você, Eu também não, com tanto homem legal no mundo, tanto cara decente, você foi inventar de sofrer justo por mim, que desde o início deixei bem claro que não presto e não mudaria nem por você nem por mulher nenhuma do mundo? Eu sei, eu sempre soube que você não presta, mas precisava me trair com todas as minhas amigas? Precisar não precisava, mas elas estavam tão carentes, tadinhas, Nossa, como você é bondoso, Tá vendo, no fundo eu sou uma boa pessoa, Como é que ainda não lhe indicaram para o Nobel da paz? Sabe que eu estava pensando exatamente nisso esses dias, faço tanta caridade para tantas mulheres carentes, que meu esforço deveria ser homenageado com uma comenda dessas, Claro, você é vagabundo desse jeito por altruísmo, para que as mulheres não sofram, Exatamente, não posso ver uma mulher carente, sofrendo, tenho o coração mole, mas meu pau é duro, você sabe.

Quando ela disse, Eu vou foder com a sua vida, ele deveria ter levado a sério, mas não levou. Preferiu acender outro cigarro, dar uma risada e dizer, Jura? Que coisa boa, você fode tão gostoso...

Menina tem que pensar bem na encomenda que me pede, trabalhado feito eu não desfaço, e não tem Exú Caveira que desate nó que Odara amarra. Vou falar pra menina, tristezinha qualquer caboclo pouca coisa faz mulher chorar. Mas choro de verdade, choro grande de mulher bem fodida, só caboclo raro faz mulher chorar. E esse choro é coisa boa, escuta o que essa cigana fala pra menina, esse choro é coisa boa. Se soubessem como é bom e que podem, um tantão de outras meninas vinham pra essa cigana fazer trabalhado maior do que esse pra encontrar um caboclo de pica bem feita que sabe o que fazer com a dita. Difícil de achar caboclo de pica bem feita que sabe o que fazer com a dita. Se essa cigana fizer o trabalhado que menina veio encomendar, caboclo da pica bem feita vai chorar depois do estrago feito, mas menina vai sofrer mais. Pior que choro de menina por caboclo fodedor que não vale nada, é choro de menina que nunca viu caboclo que não vale nada e que sabe o que fazer com a dita da pica bem feita. Minha mula sabe o que é chorar por caboclo de pica bem feita que sabe o que fazer com a dita, e chora com gosto, por que sabe que é coisa rara. Só cigana de sandália de prata sabe como esse choro grande é bom. Só mulher de sete marido sabe como esse choro grande é bom. O que menina pedir pra Odara, pagando o trabalhado, Odara dá. Mas menina vai chorar choro maior que choro grande. Menina quer trabalhado, cigana Odara faz trabalhado. Caboclo fodedor vai chorar, menina vai chorar mais, mas menina quer trabalhado, cigana Odara faz trabalhado. Na próxima lua gorda, grande, traz pra cigana Odara as vela vermelha. Três. Traz fumador também, fumador bom, que cigana Odara gosta de coisa boa. Traz de beber, que com sede não tem trabalho que ande pra frente. Do vermelho, bebedor vermelho. Cinzano, que chama o povo da terra. Traz dois desse, que o caboclo fodedor é bom, o trabalho é grande, o choro vai ser maior. Traz dois bebedor vermelho Cinzano, como chama o povo da terra. Uma rosa vermelha. Grande, rosa grande, muito vermelha. Corpo de veludo, tem que ter a rosa. Pétala larga. Daquela bem cara. Cigana Odara gosta de coisa boa, traz daquela bem cara. Aqui nesse papel menina faz um escrivinhado com o nome do caboclo da pica bem feita que sabe o que fazer com a dita. Caboclo vai chorar, menina vai chorar mais. Traz também três pombinha branca, toda branca. Todas vivas. Bem branquinhas. Não, menina, não tem problema ser branca, o sangue delas é vermelho. Depois da lua grande é quaresma, vão trancar cigana Odara. Cigana Odara e todos os outros da esquerda. Mas no aniversário de Ogum, vai ter risoto com a carne da pombinha branca. É bom menina comer, não cura o choro grande, mas conforta um pouco. Bem pouco. Não, menina, não é só isso. Quando menina sair daqui, menina vai na casa alta, na casa mais comprida, na melhor casa comprida dessas bandas e vai guardar o quarto de rei no nome da mula dessa cigana. Quarto grande, com frente pra casa de Iemanjá, com banhado no quarto, com cama larga e vista pra casa de Iemanjá. Tudo no nome da mula dessa cigana. O nome da minha mula menina pega com o caboclinho de branco, ali do lado. O quarto tem que tá guardado no dia da próxima lua grande, gorda, quando menina trouxer o que essa cigana pediu. Sem quarto de rei, não tem trabalhado. Se menina voltar com tudo que essa cigana pediu, um minuto depois da hora alta do sol, vai estar feito o trabalhado.

Muitos anos mais tarde, ela se arrependeria de ter pisado naquele terreiro, mas na lua cheia seguinte ela voltou com tudo que cigana Odara, a Pomba Gira, lhe havia exigido. O trabalho foi feito conforme combinado, e conforme prometido, surtira o efeito solicitado.

Quando o terreiro encerrou o expediente, quase quatro horas da manhã, Maria Antônia de Souza, a mula da cigana Odara, foi com ele, que também era seu amante, até o quarto 1117 do Majestic, melhor hotel da cidade, com vista para a beira-mar norte, banheira de hidromassagem de frente para o atlântico, cama king size com lençol de fios egípcios e temperatura ambiente constantemente exata. Frigobar na conta da diária. Com ele, teve a noite mais precisa, uma quantidade obscena de orgasmos, uma saciedade indecente, que a outra, a que solicitara o trabalho, embora tenha chegado perto, não chegou a conhecer.

As doze horas e um minuto do dia seguinte, na hora precisa em que se encerrava a diária do hotel, o coração dele para com as mulheres desassistidas por seus homens, permanecia mole, mas o pau nunca mais esteve duro.

Maria Antônia de Souza, por intermédio da entidade a quem emprestava seu corpo, sabia do fatídico que acontecera ao pobre caboclo da pica bem feita que sabia o que fazer com a dita e, por isso, nunca mais tornou a procurá-lo. Sofreu aquela falta, mas nunca mais o procurou. Inevitavelmente sofreu a falta daquele homem, mas, solidariamente, nunca mais o procurou.

Ele, inocente às mandingas a que fora praguejado, desde as doze horas e um minuto daquele dia, após a noite mais indescritível que tivera ao lado de uma mulher, tornara-se inapelavelmente broxa. Já não servia tesão, baguinha azul qualquer seria capaz de remediar o que irremediável estava.

Morreu broxa, poucos anos depois, numa briga no campo de futebol. Brigar fora o prazer que lhe restara.

Ela morreu muitos, muitos anos depois. Mais anos do que gostaria de ter vivido carregando aquela cruz.

Se pudesse, compraria um Hotel Majestic inteiro, só para desfazer o trabalho. Mas estava avisada, uma vez feito, não haveria como ser desfeito.

E, para piorar, não fora comer o tal risoto de pombinha branca que anestesiaria por segundos aquela falta desumana.

Nos anos após o trabalho, teve alguns poucos prazeres, mas nenhum comparável aos que tinha com ele.

Embaixo dele.

Em cima dele.

Do lado dele.

Na frente dele.

Nunca mais nada parecido.

Morreu arrependida, sabendo do prazer que havia perdido, mas sem saber o que é pior, a consciência de ter aberto mão pra todo sempre de qualquer possibilidade de gozar mais uma vez, ou de a cada noite de lua cheia, não conseguir dormir, pois, por mais que tapasse os ouvidos, enfiasse a sua cara embaixo do travesseiro, aquela gargalhada que vinha das encruzilhadas – mesmo distantes – faziam questão de lembrá-la que nunca mais, homem nenhum a satisfaria.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

O Evangelho Segundo o Diabo


Se as gentes do mundo soubessem o que de fato ocorrera, provavelmente não se amontoariam pelos cantos do mundo para repetir rezas e promessas que, mesmo que pela embriaguez da ignorância não saibam que aquelas ladainhas sem sentido não têm o menor valor prático.

Somente no sétimo, depois de seis dias de intensa procura, que o encontram. Estava caído na frente da porta fechada de um bar sujo num bairro pobre. Fedia a cerveja vagabunda, fedia a cigarro vagabundo, fedia a perfume vagabundo usado por mulheres vagabundas que atendiam vagabundos descornados. Nada parecido com o palacete suntuoso que a História divulgava como sendo a morada Dele.

Tudo pela mais intensa dor que se é possível sentir. Cólicas menstruais, pedra nos rins, tratamento de canal, enxaquecas, otites e até mesmo a dor do parto, nenhuma delas se compara a dor que se prega aos cotovelos.

Há muito tempo atrás, teve certeza que aquela morena linda que sambava devagar todas as noites do dia que alguns séculos adiante passaria a ser chamado sexta-feira, era a mulher que mereceria o posto de Sua companheira. Somente para ela, Ele concederia a honra de somar ao nome dela o sobrenome Dele.

Mas ela não era mulher fácil, não seria qualquer investida que a convenceria de que o matrimônio pode vir a tornar-se uma coisa boa. Estava bem sozinha.
Mais receio ainda tinha de dar confiança a Ele, cuja fama de mulherengo sempre chegava aos lugares antes Dele.

Aceita uma cerveja? Não Sua, Por que da rejeição, Por que são muitas as que recebem Suas cervejas, você as multiplica ao Seu bel prazer, apenas para impressionar as desatentas, E o que te impressiona? Fidelidade, Fique comigo, só comigo, Não estou te oferecendo a minha fidelidade, apenas questionando a Sua, Eu tenho a virtude que me interessar ter, Eu tenho o homem que quiser ter, Menos a mim, Eu não Te quero, Ainda, Não podes comigo o que podes com outras, Pergunte para qualquer um daqui ou de qualquer outro lugar, eu tudo posso, logo, não haverá coisa que venhas a desejar que não estará imediatamente ao teu dispor, E quem Te disse que eu quero algo que já não tenha? Eu digo, Falas muito, Eu posso, Menos a mim, Mas hei de poder, Não sou vulnerável a Ti, Não te quero vulnerável, Tão melhor assim, deste modo não me terias, E qual o modo necessário para ter-te? Faça para mim um mundo, Um mundo? Inteiro, um mundo inteiro, comece pela luz, depois me dê seres, vários e distintos seres, me faça plantas, quero também fogo, e águas, para quando cansar-me do fogo, Só isso? Não, Que mais? Exclusividade, não admito dividir-Te com quem quer que seja, Muita exigência para o meu gosto, Não fui eu que Lhe assediei, Dar-te-ei o que me pedires, se em troca te deres a mim, Não sou puta para me teres em troca de regalos, Então me diga teu nome por afeição, De onde tiraste a ideia de que me afeiçoei a Ti? Caso contrário já não estarias mais a estender esta conversa, Faz sentido, Te quero minha, Me impressione, Que faça-se a luz, então, Não me basta, quero um mundo inteiro, Me dê seis dias, e terás o teu mundo com tudo o quanto quiseres, Não me procure no sétimo dia, caso nos seis prometidos não tiveres o mundo que prometeste me dar, Minha palavra é uma só, se te disse que farei um mundo pra ti, um mundo terás, Lúcifer, Como? Me chamo Lúcifer, Lindo nome, Volte com o meu mundo, Em seis dias, Em seis dias.

E Deus tratou de por suas sacro-santas mãos a obra, e fez para Lúcifer, a mais bela das mulheres já nascidas, o mundo prometido. E foi tanto capricho na elaboração daquela obra, que reconhecendo a maestria artística com que executara sua tarefa, Deus ofereceu o mundo a Lúcifer como presente de noivado.

Bonitinho, este mundo que criaste, O fiz pra ti, agora és minha, Não sou mercadoria para que me tenham por bem de consumo, Fiz o que me pediste, O fizeste por que quiseste, O fiz por que pediste, Aceito tua cerveja, mas se em algum momento me traíres, sofrerás uma dor que não entendes, a do abandono. E Deus sorriu um sorriso largo de vitória.

Deus queria uma festa grandiosa, maior e mais bonita do que o mundo que criara, mas Lúcifer era reservada, e fez com que Deus aceitasse a cerimônia pequena que ela Lhe solicitara. Na verdade, por muito tempo não houve algo que ela tenha quisto, que Deus não tenha executado de imediato. Deus era submisso a ela.

Durante um bom tempo, aquela submissão fora o alimento necessário para que Deus e Lúcifer vivessem na paz dos casais estruturados, mas no seu íntimo, Deus sentia a coceira da boemia, dos bares e mulheres fáceis que durante tantas eras Lhe entreteram séculos após séculos.

O orgulho de ter ao Seu lado a mulher mais desejada de todos os tempos, não era suficiente para apaziguar sua alma cachaceira e mulherenga.

Um dia, Deus saiu de casa escondido após Lúcifer pegar no sono, Deus sabia melhor do que ninguém fazer o silêncio, deste modo, Lúcifer não tinha como acordar.

Nesta noite, Deus desceu ao mundo que enfeitava a estante de sua esposa, e tratou de esbaldar-se com as criaturas femininas que criara. Fora tanta orgia, bebida, música, que ele sequer preocupou-se em tomar determinados cuidados nas suas investidas promíscuas.

Lúcifer não soube desta aventura, e de outras que Ele aprontou cada vez que ela adormecia.

Um dia, quando as escapadas já haviam se tornado rotina, bateu a porta da casa de Deus e Lúcifer, um serzinho muito jovem e pequeno, como os tantos outros que habitavam o mundo.

Deus não estava em casa. Chamava-se José, o serzinho pequeno, e poderia ser chamado de pobre, caso houvesse então parâmetros que diferenciassem classes sociais. Mas não havia. Sendo assim, era apenas carpinteiro, o José.

Chama-me teu marido, disse José em tom imperativo, Quem pensas ser para bater a minha porta e me dar ordens? Sou o mesmo que tu, Anjo? Corno, Que dizes? Se tu fosses tão atenta quanto és bela, saberias que já amontoam-se os meses em que teu Homem desce ao lugar onde vivo para esbaldar-se com aquilo que não Lhe pertence, ainda que tudo tenha sido obra Dele, O mundo é meu, Mas é ele quem o abusa sem teu consentimento, Ele me é fiel, Não a ti, muito menos aos que criou, Por que me dizes isso, por que te arriscas vindo tirar satisfação com entidades que te podem pulverizar, caso pareça coisa interessante de ser feita? Por que a um homem cabe o dever de manter a sua honra, sua e de sua família, E o que eu tenho a ver com a tua honra? Agora tanto quanto tens de responsabilidade sobre a tua própria, De que acusas meu marido? Ele dormiu com minha mulher, Não é verdade o que me dizes, Tanto o é, que deste adultério nasceu um filho que é quase um dos seus, tamanha a capacidade quase instintiva que ele possui de realizar pequenas proezas que aos estúpidos parecem milagres.

Embebida em desconfiança e raiva, Lúcifer desceu ao mundo com o serzinho José, e viu com seus próprios olhos as façanhas do pequeno bastardo. Mais do que a facilidade que o menino tinha de realizar números mágicos para impressionar os outros, mostrando já no temperamento exibicionista um bom bocado do gene de Deus, o menino era a cara do próprio.

Lúcifer não teve dúvidas, no mesmo dia arrumou suas coisas e foi-se embora da casa de Deus. Mudou-se para o mesmo lugar que morava antes Dele aparecer na sua vida, e passou a dedicar seus dias a corromper os serezinhos que Deus havia criado e que o adoravam como se Ele os tivesse feito por misericórdia, quando na verdade não passavam de alegorias de uma cantada elaborada.

Deus ficou desesperado com a partida da Sua mulher amada, teve raiva do filho bastardo que por Seu descuido, veio a nascer. Fez com que o tal bastardo sofresse em vida a pior das dores que era possível alguém suportar. Suas proezas, que antes encantavam os que viviam ao seu redor, agora eram o motivo pelo qual era perseguido.

Deus humilhou Seu filho, impingiu-o com toda a sorte de agruras, de malvadezas, fez nele as dores ficarem mais intensas do que eram nos seus pares. Deus fez com que ele se sentisse culpado pelos pequenos dons que possuía, graças a hereditariedade divina.

Deus matou seu filho, cruxificou-o e sentiu-se enfim vingado.

Sabendo disto, Lúcifer tratou de ressucitá-lo, e fez com que aqueles mesmos serezinhos que foram feitos para adorar a Deus, passassem a adorar também o filho bastardo. E mesmo que Deus quisesse esquecer que um dia ele havia nascido, os serezinhos passaram a tratar o filho como se fosse o pai, obrigando-o a lembrar-se do filho rejeitado em cada vez que um dos serezinhos ajoelhava-se, unia as mãos e entoava as ladainhas repetitivas sem sentido.

Lúcifer nunca mais dirigiu a palavra a Deus, e isso o jogou na sarjeta. Desde então, ele vive bebendo nas piores pocilgas, sujando-se com mulheres sem valor e amaldiçoado pelos pecados que ele havia criado para poder manter os serezinhos sempre sob a sua custódia aterrorizadora.

Lúcifer não se dirige a Deus, mas faz com que ele saiba de cada uma das suas aventuras amorosas com as mais diversas entidades celestiais. Faz isso para que Ele sofra.

Refém de seus próprios atos, Deus agora sofre a inveja de quem à tem, a vaidade de querer exibi-la, a luxúria por querer possuí-la, a gula por querer repeti-la, a preguiça por querer abandonar-se a ela, a avareza por querê-la só para si e, finalmente, a ira por já não tê-la.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Tarde demais


Então é assim? Eu vou embora e acabou, ponto final?

Fácil, pra você, não é mesmo?

Você tem ainda a vida inteira pela frente, vai encontrar outros melhores do que eu, mais atentos as suas necessidades, mais bem dispostos, mais prontos para o que der e vier, sem minhas fraquezas, sem minhas limitações.

Fácil, não é mesmo?

No fim das contas, quem vai ficar na mão sou eu, pra você as coisas vão andar como se eu nunca tivesse existido, como se todo o tempo que eu estive aqui não tivesse valido nada, não tivesse acrescentado nada, não tivesse significado nada.

Fácil, não é mesmo?

Eu deixei minha cidade par trás, pra tentar fazer valer a pena.

Eu tinha tudo lá, mas me arrisquei por acreditar que valeria a pena. Você me fez acreditar que valeria a pena.

Mas agora é fácil, quem vai embora sou eu, você e todos ao seu redor vão tocar as suas vidas pra frente como se eu nunca tivesse existido, mas eu existo.

E, você sabe, por tudo que eu me arrisquei para tentar fazer que isso tudo valesse a pena, eu sei que você sabe, não vai ser fácil recomeçar.

Talvez, me olhando com esse olharzinho arrogante de quem acha que está fazendo a coisa certa, a coisa que deve ser feita, você pense que me entenda, mas eu lhe asseguro, você não faz a menor ideia de como eu estou me sentindo.

Antes você tivesse me rejeitado no começo de tudo, mas, pior do que a sensação de ser rejeitado é a sensação de ser descartado.

Eu comprei uma briga com toda a minha família, por ter deixado tudo pra trás e apostar todas as minhas fichas nessa história, por jogar tudo o que eu tinha para o alto e mergulhar de cabeça nessa aventura quase inconseqüente.

Mas, agora acabou, não é mesmo? Pego minhas coisas, entrego as suas e vou-me embora, não é mesmo? Fácil, pra você, não é mesmo?

Amanhã você toca a sua vida pra frente como se nada tivesse acontecido, e eu que vou ter que dar um jeito de me refazer, de reconstruir a minha vida.

Você podia ter conversado comigo antes de chegar nesse ponto, eu poderia tentar mudar.

É fácil para quem está de fora apontar as falhas, os defeitos, as imperfeições. Mas eu não consegui perceber isso. Fácil agora me apontar os fatos, as falhas, mas por que não me disse nada quando a primeira aconteceu? Eu poderia ter mudado, sabia?

Não, você não sabia. Não sabia e não sabe.

Fica aí, com essa pose de superior, como se fosse melhor do que eu por não ter as minhas limitações, por não cometer os mesmos erros que eu, mas isso daqui é uma via de mão dupla, se você realmente quisesse fazer isso dar certo, se você realmente desse tanto valor a isso tudo quanto eu dou, ou dei, teria me indicado o caminho certo logo no começo.

Mas, não, é mais fácil colocar um ponto final em tudo, não é mesmo?

As pessoas podem melhorar, podem aprender com os seus erros, sabia? Especialmente quando não sabem que estão errando, sabia?

Talvez eu não tenha sido o suficiente pra você, mas Deus sabe o quanto eu tentei, o quanto eu me esforcei. Mas, tanto quanto eu me esforcei, eu senti dificuldades, e não tive a sua mão estendida ao meu lado para me ajudar, para me apoiar quando eu precisei.

Você sabia que eu estava precisando da sua ajuda, eu não.

Você sabia que eu estava errando, eu não.

Aliás, mesmo que agora não lhe valha nada, eu estava tentando acertar. Isso eu sabia, você não.

Você reclama, dizendo que eu não fiz a minha parte, mas eu estava lá, sempre ao seu lado, tentando acertar mesmo quando sabia que estava errando. Mas, mesmo que você não acredite em mim, eu tentei acertar.

E não me venha com essas acusaçõezinhas veladas, insinuando que eu não estava cem por cento nessa história, por que eu sempre me dediquei de corpo e alma. Mas sou imperfeito, fazer o quê?

Não se iluda, sei que daqui a pouco um outro vai surgir. Conhecendo você como eu conheço, sei que você não vai demorar para colocar outro no lugar que antes era meu, mas não se iluda, ele pode ser ainda pior do que eu.

E só quando você descobrir isso é que vai sentir a minha falta. Só quando isso acontecer, é que você vai se dar conta que eu não era tão ruim assim, como agora você insinua.

Você ainda vai sentir a minha falta, escreve o que estou dizendo, você ainda vai sentir muito a minha falta.

Chega, ficar aqui dizendo como vai ser difícil superar essa história, não vai mudar nada pra nenhum de nós dois.

Você vai continuar com essa pose de quem sabe que está fazendo a coisa certa, e eu vou continuar tendo sido descartado.

Essa situação toda já me humilha demais, não preciso ficar de discursinho para tentar fazer você se sentir culpada pela tristeza que agora eu estou sentindo, pela frustração que tomou o lugar da vontade que eu tinha de fazer isso dar certo.

Amanhã eu passo aqui e deixo tudo o que era seu. Não tinha nada meu de muito importante por aqui mesmo. Fique com o que eu deixar, caso tenha algo meu. Guarde de lembrança. Vai ser bom para você lembrar de mim quando se der conta de que eu não era tão ruim assim.


Virou as costas, bateu a porta e foi-se embora.

Ele não sabia, mas ela estava com o coração partido por causa daquele rompimento tão abrupto, mesmo apesar de todos os indícios tão evidentes. Aquilo era tão ou mais difícil para ela, quanto estava sendo para ele. Mas era necessário.

Apesar de ainda nova, recém saída da faculdade e um milhão de oportunidades pela frente, fora para aquilo que lhe contrataram. Analisar os números e definir quem era e quem não era rentável para a empresa.

E este já era o sexto mês consecutivo que ele não batia a sua meta.

Ela sabia que ele já tinha trinta e nove anos, nenhum curso superior, mulher, filhos, largara a cidadezinha do interior por acreditar que aquela seria a oportunidade de dar uma guinada de vez na sua vida depois de tantos sub-empregos.

Mas não batia a meta há seis meses, fazer o quê?

Ele não sabe, mas naquela noite ela dormiu angustiada, chorando com o coração apertado, sentindo-se a pior das criaturas sobre a face da terra.

Mas pelo menos ela dormiu.

Ele, não.

Disse para a esposa que não tinha fome, dormiria sem jantar pois estava com muita dor de cabeça, mas passaria a noite inteira acordado, chorando também. Entretanto, a dor da culpa por sentir-se cruel, talvez seja menor do que a dor do fracasso. E, sem dormir, naquela noite ele chorou também, tentando encontrar a maneira mais apropriada de dizer a mulher que fora demitido, que talvez o mais indicado fosse voltar para a cidadezinha de onde vieram, fazer seus filhos largarem os novos amigos que agora tinham, depois de tanto tempo sofrendo pelos outros tantos que haviam deixado para trás para que o pai tentasse oferecer a família uma vida melhor numa cidade estranha.

De qualquer modo, no dia seguinte isso não faria muita diferença. Amanhã ela permaneceria com o excelente salário que recebia para analisar quais funcionários eram receitas e quais eram despesas, para no fim de cada análise determinar quais cabeças deveriam rolar.

Ele não.

Ele permaneceria irremediavelmente demitido.