sexta-feira, 30 de julho de 2010

Moda Sacra

Tudo bem, aqui não é o Donde Estás Corazón?, mas vale ressaltar as dicas de moda vindas diretamente do Olimpo.

Vocês sabem, o Diabo veste Prada.
O que talvez vocês não saibam, é que a Virgem Maria veste Louis Vuitton!

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Casamento, amor ou sexo?


Eugênia Maria era casada com Venceslau Augusto.

Aquela paixão toda que levara-os ao altar jurar um ao outro amor eterno e fidelidade inquebrantável, já arrefecera há alguns anos, mas era pacífica a convivência. A tranquilidade de uma vida já estabelecida, situação econômica confortável, substituía satisfatoriamente bem o velho ardor da paixão.

Era boa a companhia que um fazia ao outro, respeitavam-se e até admiravam-se. Mas Eugênia Maria, que sempre fora mulher de um fogo inesgotável, há alguns anos sentia falta de alguém que a desejasse com o ímpeto que Venceslau Augusto a desejara nos longínquos anos de namoro.

Sendo assim, há pouco mais de um ano mantinha um caso extra-conjugal contínuo e periódico.

Carlos Adolfo sentia-se sinceramente culpado. Tinha sido padrinho de casamento, mas não conseguia manter-se longe de Eugênia Maria. Por mais que seus sentimentos fizessem-no sentir-se o maior cafajeste de todos os tempos, não conseguia parar de pensar em Eugênia Maria. Ele que sempre fora um solitário por vocação, sequer apaixonara-se por quem quer que fosse, não sentia-se atraente, interessante, não via em si próprio qualquer predicado que pudesse chamar a atenção das mulheres, apaixonara-se justamente pela mulher do seu melhor amigo, Venceslau Augusto.

Nos braços do amante, Eugênia Maria saciava-se intensamente. Realizava com ele loucuras que sequer imaginara ousar com Venceslau Augusto. Sentia um prazer tão intenso com as obscenidades que seu amante lhe falava aos ouvidos, que deixaria suas amigas chocadas. Ele virava-a do avesso, tinha uma agressividade que a enlouquecia. Ouvi-lo chamando-a de “minha putinha”, “vagabunda”, “safada”, senti-lo puxando seus cabelos, impingindo na pele branca da sua bunda uma tatuagem provisória e vermelha da sua mão espalmada, era prazer proporcional aos vários apoteóticos orgasmos que ele lhe dava a cada encontro.

Carlos Adolfo sofria uma dor desumana, ao pensar que magoaria seu melhor amigo. Não conseguia imaginar sua vida sem aquela amizade dos tempos de faculdade. Contudo, ainda mais difícil era imaginar sua vida longe de Eugênia Maria e, pela maneira com que seus olhares se fitavam em encontros sociais onde estavam todos os amigos reunidos, acreditava que ela deveria nutrir por ele um sentimento parecido. Resolveu procurar aconselhamento espiritual com alguém que saberia o que lhe dizer, até por conhecê-lo desde que nascera.

Procurou Padre Aloísio, seu irmão mais velho, um homem muito sábio, tranqüilo e capaz de compreender as agruras das almas dos outros através do dom do sacerdócio com que fora tocado ainda muito novo, e contou a ele seu martírio, em segredo de confissão.

Com um semblante sereno e apaziguador, Padre Aloísio ouviu de dentro do confessionário todo o infortúnio que tornara a vida do seu irmão um verdadeiro inferno. Escutou atentamente cada detalhe dos devaneios de Carlos Adolfo e dos planos que tinha de fugir com Eugênia Maria, mesmo sem saber se ela aceitaria abandonar sua vida tão tranqüila para viver uma aventura amorosa, já divisando a casa dos quarenta anos.

Pela expressão contrita de Padre Aloísio, Carlos Adolfo presumiu que o irmão-sacerdote estava dividido entre cumprir a sua missão eclesiástica de defender a sagrada instituição do matrimônio, ainda mais um matrimônio que ele mesmo celebrara, ou pender mais para a amizade terna que desde a infância tinha com seu irmão caçula, aconselhando-o a cair de cabeça naquele amor tresloucado e viver um sentimento que, até então, nunca se havia permitido viver. Afinal de contas, não seria aquele o primeiro casamento desfeito, e certamente não seria também o último.

Saiu de dentro do confessionário e abraçou com carinho o seu irmão caçula, afagou-lhe os cabelos e aconselhou-o a rezar, rezar bastante, pois certamente alguns dias de retiro espiritual seriam suficientes para que a sabedoria divina lhe indicasse o melhor a ser feito. Ele não ousaria dizer-lhe o caminho certo a escolher, até por que pela vocação assumida, tinha obrigação de defender aquilo que pregava todos os dias, não poderia ser ele a pessoa a ir contra a sua própria fé. Mas, por outro lado, entenderia e perdoaria o irmão, caso sua decisão fosse diferente da resignação.

Embora tenha saído sem uma resposta objetiva, Carlos Adolfo sentiu-se um pouco mais reconfortado.

Horas mais tarde, quando Eugênia Maria já começava a tirar a roupa na urgência de saborear o quanto antes cada segundo das duas horas semanais de alforria matrimonial que ela mesma lhe concedera, olhando já tremendo de excitação para o seu amante ainda vestido, ele sorriu daquele jeito sem-vergonha que a deixava ensandecida de desejo, e disse:

_Tá querendo dar para o Carlos Adolfo, né sua safada...

_Como é que você sabe? - Retrucou com surpresa e espanto, Eugênia Maria.

_Esqueceu que é comigo que ele se confessa?

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Beija eu


Não me conformo termos sido tão breves, que merda, poderíamos ter durado só uns cinco minutos a mais, tempo suficiente para um ou dois beijos, que fosse, daqueles bem dados, daqueles que fazem querer mais beijos, talvez uma mão aqui, outra ali, talvez quatro mãos ansiosas e nervosas se procurando sem saber quais as fronteiras que lhe estariam liberadas.

Mas te digo, ainda não desisti, apesar de agora estar tudo mais difícil. Espero que você receba esta carta. Me garantiram que você receberia, o próprio Diabo me disse que faria com que esta carta lhe chegasse às mãos, desde que eu aceitasse o castigo que ele escolhesse. Achei até romântico o fato de aqui a comunicação ainda ser através de cartas escritas à mão. Espero que entendas a minha letra. Espero que o idioma que o texto sai daqui, seja compreensível aí.

Ele, o Diabo, me deu algumas opções para te reencontrar, numa delas eu até poderia te beijar, mas não do jeito que havia(mos) imaginado. A carta me pareceu o meio mais justo para a nossa curta história. Não gostaria de te fazer mal, além desse que talvez tenha te feito. Mas ele, o Diabo, disse que não tive culpa, caso tivesse, ele seria o primeiro a deixar isso bem claro, para que eu sofresse ainda mais por aqui, pois é isso que se faz no inferno, se sofre. Mas ele me assegurou que era destino, aquela palhaçada toda que eu nunca tinha acreditado.

É gente boa, o Diabo. Bom papo, não tem nada daquilo de chifres, rabo, tridente. O Diabo é loiro, mas está ficando careca. Baixinho e magro, cara de professor de geometria. Gente boa, o Diabo.

Rememoremos passo-a-passo o nosso passo-a-passo.

Não tínhamos absolutamente nada em comum, além da quase certeza de que não teríamos muito futuro juntos. Não escutávamos as mesmas músicas, não líamos os mesmos livros, não íamos aos mesmos lugares, não tínhamos sonhos sequer aproximados, enfim, absolutamente nenhum interesse em comum, exceto aquele desejo confuso, inexplicável e recíproco. Aquela coisa de quando o olhar de um atropelou o do outro, algo disse quase gritando, Por essa não passarás sem que algo diferente lhe aconteça, não serão muitas as mulheres deste nível que passarão pela tua vida, nenhuma antes, provavelmente nenhuma depois. E pior, para mim, que realmente, depois já não há qualquer chance.

Eu já sonhava com um beijo seu quando recebi no começo daquela manhã a sua mensagem no meu celular dizendo que você tinha sonhado comigo. Eu me senti muito foda aquele dia, só por fantasiar que, de alguma maneira, tinha estado com você, na sua cama, na noite anterior. Quis saber o conteúdo do sonho, mas você disse não lembrar dele. Não acreditei muito nisso, mas não insisti.

A troca de mensagens virou coisa comum, parte do nosso dia-a-dia, eu esperava ansioso pelas suas, sempre curtas, subliminares, cheias de entrelinhas, e eu mandando minhas respostas explícitas, algumas bregas, outras talvez inconvenientes de tão claras que deixavam o meu interesse.

Na semana seguinte admiti também ter sonhado com você. Também não disse diretamente como tinha sido o sonho, mas dei várias pequenas pistas tão bobas quanto óbvias, para que você soubesse que tinha sido um sonho erótico.

Digo agora.

Sonhei que saíamos para jantar, na volta você pediu para dirigir o meu carro perguntando se poderia me levar para um lugar especial, eu disse que sim, você reforçou, Qualquer lugar?, Qualquer lugar!, eu confirmei. Nem entramos no carro e já estávamos no quarto do motel, eu esperava os minutos que você me havia solicitado, e na meia luz refletida no espelho do teto, aquela penumbra com Antena 1 de trilha sonora, você surgia indescritivelmente, irresistivelmente linda do alto do salto do seu sapato preto, meias 7/8 pretas, lingerie meticulosamente desenhada para realçar ainda mais as minúcias da sua beleza, como se tivesse sido feita exclusivamente para você. Você vinha até mim e nos beijávamos, sem pressa, mas alternando urgência com delicadeza.

Depois do beijo eu não lembro de mais nada, mas suponho o que tenha acontecido apenas para Morfeu assistir. Contudo, acordei com a sensação de ter tido a melhor noite da minha vida, como se ela de fato tivesse acontecido. Foi sonho, mas a sensação era real. A melhor noite que passei ao lado de uma mulher foi com você, e por ironia, ela nunca chegou a acontecer.

Mensagem vai, mensagem vem, concluímos que precisávamos nos beijar, um único beijo que fosse, mas tínhamos que nos beijar. Mas, pela diferença das nossas realidades, não seria conveniente que outra pessoa soubesse. Numa sexta-feira, fim de tarde, falei que te esperaria no acostamento da BR, sairia do meu carro, entraria no seu, nos beijaríamos, e depois cada um voltaria para o curso habitual das suas respectivas vidas, então vivas.

Tudo certo, dentro do combinado e nervosamente esperado, mas na hora que abri a porta para entrar no seu carro, aquele porra daquele motorista sonolento nos acertou em cheio e ambos morremos. Sem tempo para o beijo. Que merda...

Uma vez você me disse que me imaginava bem certinho, um bom moço exemplar. Mas, acredite, eu não servia exatamente como um bom exemplo. Fiz muita merda antes de beijar o radiador daquele caminhão desgraçado, e quase tinha orgulho delas. Mas, talvez por não ter tido tempo de me converter a alguma igreja e me arrepender dos meus pecados, vim para o inferno. E para você, ótima pessoa que sempre foi, só lhe restou um destino, o céu. Que merda...

Quando cheguei aqui, sabendo que pra cá viria, imaginei aquele inferno clássico da bíblia, chamas, enxofre, ranger de dentes. Mas não. O inferno é um lugar limpo e arejado, onde cada um sofre daquilo que mais gostava ou queria.

Na minha primeira semana, o Diabo me colocou num quarto cheio de mulheres lindas, gostosas e loucas por mim, mas eu era broxa.

Na segunda semana foi a primeira vez que o Diabo veio falar comigo, estávamos num bar, igual ao que eu sempre freqüentava, mas eu não conseguia erguer a caldereta cheia de chopp, perfeito, três dedos de colarinho, copo suado, mas eu não conseguia erguer o copo e levá-lo até a minha boca, tampouco conseguia me abaixar para dar uma bebericadinha no chopp. E o Diabo, sentado na minha frente, ria muito da minha cara. Fumando um cigarro atrás do outro do meu cigarro preferido, me oferecia um, eu pegava ansioso, mas não tinha mais gás no isqueiro e a caixa de fósforos estava molhada, não tinha jeito de fumar. Aquilo quase me matou de novo.

Na terceira semana, eu fiquei com um fone grudado nas minhas orelhas ouvindo ininterruptamente os maiores sucessos do Sertanejo Universitário. Quase desejei as chamas, o enxofre e o ranger de dentes.

Nesta semana eu contei para o Diabo a nossa história. Ele disse que já sabia, Deus havia lhe contado. Não sei se contaram para você, mas diferente do que todos pensam, eles são muito amigos, mas enquanto um faz as coisas direitas e para o bem dos outros, o outro é pau no cu pra cacete, sacaneia com as almas a que tem direito só por diversão. Me contou que foi você que contou para Deus a nossa história. Fiquei emocionado por saber que você ainda lembrava de mim.

O Diabo, então, me propôs te reencontrar para termos direito ao nosso beijo não realizado, mas dentro de determinadas circunstâncias. Não sei se você sabe, mas você reencarnará em breve, numa vida perfeita, casará com um cara muito bom, vocês terão filhos, ótimas crianças, e morrerão velhinhos, felizes e sem dor. Ele disse que se eu quisesse o seu beijo, também me reencarnaria, mas não naquele cara de sorte que vai se casar com você. Reencarnaria num estuprador, te violentaria e te beijaria a força. O seu futuro marido seria o médico que lhe atenderia no hospital, cuidaria de você com muito carinho, vocês se apaixonariam e teriam a tal vida perfeita.

Recusei. Quero muito o seu beijo, mas não ao custo de fazer você sofrer e, ainda por cima, ser o gatilho do seu novo amor. Prefiro ficar aqui com dor de cotovelo eterna por saber que outro estará beijando os lábios que o caminhão me negou.

Mas vou para uma última tentativa. Encontrei um velho amigo por aqui, um dos maiores sacanas que eu conheci na minha velha vida e que já está aqui há um bom tempo, disse que a partida das almas para reencarnação se dá no purgatório, uma grande fila branca de almas boas que partem para um novo parto. Nós, as almas do Diabo, podemos assistir a essa cena, faz parte da diversão dele, o Diabo, fazer com que observemos a nova chance que não teremos. Nesta oportunidade, nós podemos conversar com as almas boas, para que elas nos digam como são felizes no céu, e nós possamos chorar nossas pitangas dizendo como somos fodidos no inferno.

Esse meu amigo disse que é um momento descontraído, o encontro no purgatório. Você irá reencarnar em quatro semanas, e essa será a primeira vez que vou participar do evento. O meu amigo se comprometeu em me ajudar. Disse que vai começar a correr pelado e vai tentar agarrar a Virgem Maria – ela sempre está presente para abençoar as almas que reencarnarão – nisso, obviamente as atenções estarão voltadas para o furdunço que ele vai armar, e nessa hora, eu vou tentar chamar a sua atenção, e esperarei você grudado na cerca que separa as almas dos dois lados, e, quem sabe, consigamos pelo menos nessa hora dar o nosso beijo. Passarei o resto da minha morte sem fumar, sem beber, sem transar, mas preciso dar um jeito de beijar você. Depois você segue e vai viver a vida que merece ter.

Eu voltarei para o castigo que aceitei para ter direito a lhe enviar esta carta.

Estou há seis dias preso numa salinha fria, morrendo de fome e sede. Tem uma lasanha deliciosa – meu prato preferido - na minha frente, sempre fumegante, como se tivesse sido tirada do forno agora, uma garrafa do meu vinho preferido, uma taça linda, mas eu não tenho forças para levantar os talheres e me servir, e a garrafa de vinho é inviolável.

Para completar, há seis dias que toca dia e noite, repetidamente e num volume ensurdecedor, a Marisa Monte cantando: “Beija eu, beija eu, beija eu me beija...”

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Ambíguo


Tô aqui matutando, matutando, tentando entender o que o senhor quis me dizer.

Sou burra, não sou boa nessas coisas de interpretar o que se quis dizer, tendo dito outra coisa. Fala direto, preto é preto, branco é branco e ponto final, sem complicação.

Sou burra, me desculpe. Até por isso não leio muito, não sei captar o que foi dito nas entrelinhas, e toda merda de livro sempre tem as merdas das entrelinhas que não estão ali, mas todo mundo diz que tá, é só interpretar. Eu não quero interpretar, eu não sei interpretar, então olha pra mim e diga na minha cara o que significa isso.

Vamos por partes.

Talvez tenha entendido tudo errado, talvez não.

Sei como no começo tudo pareceu muito estranho, o senhor precisava de um novo mestre de obras para a reforma, só não imaginava que seria uma mulher, tudo bem, normal o estranhamento. Já estou acostumada.

Como estou acostumada a cada novo trabalho ter que convencer uma equipe composta só de homens, de que tenho capacidade para tocar a empreitada.

Já estou calejada com isso, sempre dou um jeito de me virar e no fim das contas o resultado sempre sai bom. Admito, sou boa no que faço. Posso não ser a melhor, mas entendo do riscado.

Enfim, lidar com o estranhamento, rejeição inicial, essas pequenas dificuldades, isso tudo eu tiro de letra, o que eu não contava era com o senhor.

Puta merda, precisava ser tão bonito?

Puta merda, precisava ser tão charmoso?

Puta merda, precisava ser tão cheiroso?

Puta merda, precisava ser tão elegante?

Assim o senhor me quebra. Precisa sorrir desse jeito cada vez que me vê? Precisa?

Pra que ser tão educado, tão gentil?

Talvez o senhor tenha faltado na aula que as pessoas aprendem como se trata pedreiro, mas eu explico, pedreiro se trata na pedrada! Não tem essa de sorrisinho, lanchinho surpresa no meio da tarde, “por favor”, “muito obrigado”, “me desculpe”, não tem nada disso!

Pedreiro é na pedrada, se não fica folgado!

Entenda, senhor, não era para o senhor se preocupar comigo. Não tinha nada que ficar reparando se na última semana eu tava mais quieta, no meu canto. Eu só estava um pouco triste. Mas o fato de eu ter andado uns dias tristinha, não te dá o direito de se preocupar comigo!

Pra que, me explica pra que o senhor me chamou no seu escritório só para saber como eu estava? Por qual maldito motivo o senhor fez questão de ficar sozinho comigo na sua sala, de portas fechadas? O senhor falava, falava, falava, e eu não escutava coisa nenhuma, só ficava hipnotizada pela sua boca, que merda, como ela é apetitosa...

E agora, como que eu fico?

Tô que não acerto mais o prumo dos tijolos de tanto que fico pensando no senhor, que merda...

Com toda essa sua educação, esse cuidado, essa atenção, o senhor tem uma cara de quem sabe fazer a coisa do jeito que ela deve ser feita, que não gosto nem de pensar muito nisso que já começa a dar aquelas quenturas que deuzolivre.

Aí, numa dessas quenturas, na sala da minha casa enquanto os meus guris dormiam no quarto, resolvi tomar um negocinho, fui ficando alegre, e sabe como é, bêbado fica corajoso, tive a infeliz ideia de mandar uma mensagem para o senhor confessando que quando ficamos sozinhos na sua sala, tive vontade de te beijar.

Não satisfeito em ocupar meu pensamento o tempo todo, o senhor ainda inventou de me responder a mensagem, apenas com um enigmático: “Eu sei...”.

QUE MERDA! O que o senhor quis dizer com isso???

Eu sou burra, não sei interpretar, já falei.

O “Eu sei...” significa que o senhor quis dizer: “Eu sei, tá na tua cara que tu estás de quatro por mim, isso é normal, todas ficam de quatro por mim.”

Ou o “Eu sei...” significa que o senhor quis dizer: “Eu também!”?

E agora, abandono a obra ou me agarro no seu pescoço?

terça-feira, 20 de julho de 2010

Filho de Peixe...


Seu pai e eu vamos nos separar.

Tô sabendo.

Tá sabendo?

É, tô sabendo.

Bom, então vá arrumar as suas coisas que hoje mesmo vamos sair dessa casa.

Eu quero ficar morando com o velho...

QUÊ???

Isso mesmo, quero ficar morando com o velho, se a senhora não se importar.

Mas é claro que eu me importo! Você sabe o que aquele safado me aprontou?

É, tô sabendo.

Então, Carlos Maurício, se você sabe o que aquele sem vergonha me aprontou, como você ainda tem coragem de querer ficar morando com ele? Ele traiu a mim, traiu a você e ao seu irmão, traiu toda a nossa família, teve uma infinidade de casinhos por aí, e tinha um caso de mais de dez anos com aquela sirigaita da Maria Helena.

Mas até ele esquecer o MSN aberto, ela era a sua melhor amiga.

Vagabunda...

Mãe, olha só, não me entenda mal, meu raciocínio está seguindo a máxima que a senhora sempre fez questão de ficar nos falando, “mãe é uma só, amor de mãe é um só.”

EXATAMENTE!

Pois é, mãe. Amor de mãe é um só, e esse eu já conquistei, faça o que fizer, a senhora não vai deixar de me amar. Mas tá cheio de mulher por aí, o amor delas eu ainda não tenho, o velho tem a manha, posso aprender muito com ele.

Meu filho, o que é isso? Que absurdo é esse que você tá falando? Você tem namorada!

O pai era casado...

Não acredito que estou ouvindo esses absurdos...

Mãe, a senhora sabe como é, é aquela velha história, filho de peixe...

Olha, Carlos Maurício, eu tenho que te dizer uma coisa. Eu esperava que nos mudássemos e surgisse uma ocasião mais adequada para eu te contar isso, mas dadas as circunstâncias, não vejo outra saída. Você é filho do Paulo Ernesto, seu irmão não.

O QUÊ?

Pois é, meu filho, seu pai não é pai do seu irmão. Não de verdade, tem toda aquela história de que pai é quem cria, mas ele não é de verdade, se é que você me entende.

Como assim, não é pai de verdade do meu irmão? É claro que ele é pai de verdade do meu irmão!

Teve uma vez, você era pequeno ainda, fizemos uma festa na casa da sua avó, o seu pai tomou todas – como sempre – desmaiou no sofá, eu também tinha bebido um pouquinho, o Flávio Ricardo também tinha bebido um pouco, nós estávamos na piscina, éramos jovens, aí já viu, né...

O TIO FLAVINHO? O TIO FLAVINHO É PAI DO MEU IRMÃO?

Pois é...

Mas ele é um goiaba, analista de sistemas, barrigudo, careca, todo quietão... O pai que sempre foi o bonitão da família!

Naquela época o seu tio ainda tinha cabelo, e a barriga estava só no comecinho, e tinha o agravante da bebida... Enfim, aconteceu, foi uma vez só, mas aconteceu.

E o pai não se ligou de nada?

Ele teve que fazer uma viagem de trabalho no dia seguinte, ficou pouco mais de um mês fora, quando voltou saímos para comemorar, umas semanas depois disse que estava grávida, e convenci todo mundo que seu irmão nasceu prematuro. O prematuro mais gordinho da história, mas, ainda assim, prematuro. Sua avó foi a única que ficou desconfiada, mas com o tempo esqueceu a história.

Não tô acreditando...

Pois é, seu pai não é tão malandro assim.

Mais um motivo para eu ficar com ele, a senhora não tinha o direito de fazer isso com ele!

Mas ele tinha o direito de fazer isso comigo?

É diferente, ele é homem.

Bom, tem outra coisa que você também não sabe. Eu estou me mudando para a casa do Elesbão.

Elesbão, que Elesbão?

O pai da Aninha.

O QUÊ? A senhora vai morar com o pai da minha namorada???

Pois é, meu filho, aconteceu. Desde que você e o seu irmão são pequenos que eu os levo para tratar os dentes com ele, sempre tinha um flerte, mas nada sério. Quando descobri a cafajestagem do seu pai, não tive dúvidas, liguei para ele e desde então estamos namorando. Agora resolvemos assumir o nosso relacionamento.

A senhora só pode estar de palhaçada!

Não, Carlos Maurício, não é palhaçada. É sério, muito sério!

Meu cacete...

E tem outra coisa, meu filho.

Tem mais coisa ainda?

A sua namorada está grávida.

O QUÊ? A ANINHA ESTÁ GRÁVIDA? COMO ASSIM, GRÁVIDA?

Quer que eu explique como uma mulher fica grávida?

Não, não é isso, é que nós nunca... Nós nunca... A senhora sabe.

É, tô sabendo.

Tá sabendo?

Lembra aquela festinha que fizemos aqui em casa e você terminou a noite abraçado no vaso vomitando seu fígado? Então, naquela noite o seu irmão deu carona para ela voltar para casa, os dois tinham bebido um pouquinho a mais, aí já viu, né...

O MEU IRMÃO ENGRAVIDOU A MINHA NAMORADA? AQUELE NERD PUNHETEIRO?

Filho, sabe como é, é aquela velha história, filho de peixe...

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Mulher de Malandro


Ah, minha preta, faz assim não.

Tu sabe que meu coração é teu, as outras são coisa boba, chameguinho só de farra, negocinho sem importância pra aliviar o estresse. É sério, neguinha, não é só rico que tem estresse não, malandro também sofre disso.

Ô nega, por que que tu não abre a porta?

Já faz três dias que eu não durmo nem como direito só pensando em tu.

Ô nega, por que tu não me quer de volta?

Eu já falei quem quis foi ela, a culpa é dela e se eu fiz foi por que assim Deus quis.

Grita não, minha morena, grita não.

Ô nega, por que que tu não fala baixo?

Eu tô tão perto e não sou surdo, e é só por essas que eu acabo voltando pro bar.

Vamo comigo lá no Bigode, vem sambar pra mim daquele jeitinho que só tu sabe, minha morena, devagarinho, eu e tu, vem, minha neguinha, vem com teu nego, vem...

Tá faltando homem no mundo, sabia não?

Tu devia é de estar orgulhosa pelo teu homem se preocupar em não deixar tanta mulher sem assistência.

É um perigo mulher andar por aí sem assistência, sabia não?

Eu só tô pensando no teu bem, minha preta. Quero deixar o mundo um lugar melhor pra tu viver, minha preta.

Escute só, neguinha, escute o cavaco lá longe. É o nosso samba, tá lembrada?

Ah, não é esse?

Bom, então vamos fazer desse o samba da nossa reconciliação, que tu acha?

Por que é melhor eu voltar mais tarde?

Mais tarde nada, minha preta, abre a porta aí que eu quero entrar agora!

Abre essa porta agora!

Isso neguinha, abre a porta pro teu preto...

Dá cá um beijinho e depois serve a janta pro teu preto, que eu tô com uma fome dos diabos.

Nega, por que tu tá suada desse jeito?

Que cheiro é esse no teu corpo, Jurema?

Por que tu tá só de calcinha, Jurema?

Nada disso, sai da minha frente agora que eu vou entrar no quarto!

Anda, Jurema, sai da minha frente que se não eu mando a Maria da Penha pra puta que lhe pariu e te enfio a mão nessa cara sem vergonha!

SAI DA MINHA FRENTE, PORRA, SAI QUE EU TÔ MANDANDO, EU VOU ENTRAR AGORA NESSA MERDA DESSE QUAR...

TIÃO?

Ô meu parceiro, tu por aqui?

Pelado, e na minha cama?

Te atendeu direitinho, a minha morena?

Fica com essa cara de medo não, meu compadre, fica com medo não.

Cala a boca, Jurema, pára de chorar que eu não tô falando contigo. Tô falando aqui com o meu compadre Tião.

É verdade, Tião, tu tem razão, já sangrei malandro por menos.

Mas fica preocupado não, Tião, que não vou deixar nada faltar pros teus filhos, palavra de honra. Cuido da tua mulher, e depois te garanto que na minha banca sempre vai ter lugar pros teus moleque buscar apontamento no asfalto e trazer pra mim.

Não, Tião, não chora que é feio.

CALA A BOCA, JUREMA!

Eu até que te perdôo, minha navalha é que não tem coração, fria como teu suor de agora, seu filho de uma puta!

Que merda, esse lençol era novinho, agora tá aí todo emporcalhado de tu, Tião.

Que que tu quer com essa faca, Jurema?

Larga essa merda e fica quieta!

CALA A BOCA JUR...

Jurema, tu me fod...

Jurem...

Caral...

...

Pára de chorar, Tião, pára de chorar que é feio, não escutasse o que esse vagabundo falou não?

PÁRA DE CHORAR, TIÃO!

Faz assim, me enfia um soco no olho que a Maria da Penha livra a minha cara.

ANDA PORRA, PÁRA DE CHORAR E ME ENFIA UM SOCO NA CARA!

Puta merda Tião, pára de chorar e bate como homem, diabo.

PORRA TIÃO, NÃO PRECISAVA EXAGERAR TAMBÉM, QUEBRASSE MEU DENTE, SEU FILHO DUMA PUTA!

Merda...

PÁRA DE CHORAR, TIÃO, CARALHO!

Tá ficando inchado?

Bom! Precisa ficar bem inchado.

Negócio é o seguinte, quando tu sair daqui, passa no orelhão e liga pros meganha, diz que ouviu uma briga no meu barraco, som de coisa quebrando, gritaria, essas merda toda.

Depois tu volta direto pra tua casa, entendeu bem? Direto pra casa!

A partir de amanhã tu vai tratar bem direitinho a tua mulher, tá me entendendo? Bem direitinho! Se tu se meter com alguma piranha por aí, já sabe o que vai te acontecer. Olha bem pra esse safado aí no chão, todo furado, pra não esquecer o que vai te acontecer se tu se meter a engraçadinho. Tu não vai te meter com mulher nenhuma, hein vagabundo?!

Só comigo, claro.

É um perigo mulher andar por aí sem assistência, sabia não?

Sexta que vem, quando tudo tiver mais calmo e o defunto já estiver devidamente enterrado e ardendo no quinto dos inferno, tu vai voltar aqui, de banho tomado, cherosinho e muito bem disposto, entendeu bem?

Muito bem disposto que eu não quero essa merda meia bomba, entendeu bem?

Muito bem disposto!

Me alcança o cigarro.

Pára de chorar e me alcança o cigarro, do lado da cama.

PÁRA DE CHORAR, CACETE!

Vou ali colocar uma roupa, tu vai lá na cozinha, desce uma cerveja pra mim do congelador e prepara alguma coisa pro meu jantar, que eu tô com uma fome dos diabos.

domingo, 18 de julho de 2010

Olhos Castanhos


No começo, há uns poucos meses atrás, tua presença era como fumaça de cigarro. Estranha, difusa, mas bonito de ver e ficar imaginando a forma que vai tomar. Nunca dominei a fumaça do meu cigarro, sempre quis aprender a fazer aqueles círculos iguais aos que a Juliette Lewis faz em “Assassinos por Natureza”, mas nunca consegui. E olha que já fumei muito na minha vida. Você ficaria horrorizado, se soubesse o tanto que fumei, o tanto que bebi. Mas agora passou. E também agora, tu já não me és fumaça disforme, viraste tinta de caneta gravada na minha pele com agulha e ponta de compasso.

Talvez isso soe estranho, mas é uma declaração de amor. Nunca fui muito boa com declarações de amor e todas essas sentimentalidades que as pessoas mais sutis que eu dominam e fazem parecer fácil. Para mim nunca foi fácil, mas quando te vejo sinto necessidade da declaração, quero te deixar claro o que significas pra mim, mesmo que seja através de palavras inadequadas.

Agora és a minha tatuagem de cadeia, mesmo que a tinta desbote, fique fraca e um dia até se vá, a experiência de te ter e ser tua, não existe cirurgia a laser que tire de mim, até por que a ciência, mesmo as espíritas, não têm a capacidade de interferir naquilo que se registra na alma. E tuas marcas me são tão profundas, que me fazem ter certeza de que, se te marcar com um décimo da intensidade com que já estou marcada por ti, mesmo distantes, estaremos sempre juntos. Eu estarei sempre contigo, mesmo que um dia, por uma dessas tantas ingerências da vida, acabemos por nos afastar, ainda assim estarei contigo.

Já experimentei o prazer de diversas maneiras, com diversas pessoas, prazeres lícitos, outros nem tanto, mas nenhum se assemelha ao prazer que me proporcionas.

É uma espécie de diferente de deleite, rara, única, sentir o teu corpo em cima do meu, teus lábios no meu corpo, nos meus seios. Homem nenhum é capaz de se aproximar dessa paz que as tuas mãos no meu corpo me proporcionam. Ninguém foi capaz, nem por uma ínfima fração de segundo, de me olhar da maneira que me olhas. Tu não precisas dizer nada, o teu olhar já vale por milênios de informação. Nada me diz mais que saber que posso, vez ou outra, te fazer se sentir acolhido, tanto quanto o teu olhar me faz sentir que estar contigo é a coisa certa a ser feita. A única coisa realmente certa a ser feita.

Olhou fundo para os olhos castanhos dele, castanhos iguais aos seus, importante que se diga, e encheu seus pulmões daquele ar novo que a vida agora lhe proporcionava. João Gabriel parecia compreender cada palavra sussurrada, certamente que compreendia e, mais do que isso, no seu silêncio cheirando a talco, disse após cada frase, Eu também.

Beijou-lhe com todo o carinho que só um beijo materno abriga, e delicadamente deitou-o ao seu lado.

Deitou-se também, com os olhos embargados de amor, sentindo-se a mais plena das mulheres, e sorriu lembrando das pessoas que dizem por aí que não existe amor eterno, perfeito, inteiro e essas coisas todas que os poetas nos ensinaram desde sempre que são a razão pela qual devemos viver. Talvez as pessoas não saibam, mas esse amor existe.

Ela sabe que sim e, pelo menos naquele instante, ninguém no mundo era tão sabedor desta irrefutável verdade quanto ela.

Olhou uma vez mais para João Gabriel, agora dormindo ao seu lado, acariciou-lhe as pequenas mãozinhas unidas como quem reza uma dessas doces orações infantis, e dormiu ao lado do verdadeiro homem da sua vida, um sono tão bom, quanto a linda vida que desde então viveram juntos.


Para Xixa, Peri e João Gabriel!

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Felizes para sempre, a despeito do amor


O Amor só é verdadeiramente feliz quando fode com a vida dos outros. Sua realização está em escolher alguém, apontar para outro, e dizer, É aquela, vai otário, caia de quatro agora!

Na maior parte das vezes, sensibiliza um e passa longe do outro, só para ver o primeiro sofrer inconsolavelmente, dizendo aos quatro ventos – que, diga-se de passagem, são surdos, caso contrário não haveria tanto mal entendido no mundo – “tenho um amor não correspondido”. Burra ilusão causada pela esperança, esta, outra grandessíssima filha da puta, já que o amor, egoísta que é, jamais se corresponde com quem quer que seja. Apenas se diverte com a desgraça alheia, muito parecido com o que deus faz com sua cega criação.

Em outras tantas vezes, cativa a ambos os escolhidos, mas quando tudo passa a parecer perfeito, desocupa a quitinete que alugou no peito de um deles, e continua a ocupar a mansão espaçosa com vista para o mar no coração do outro, causando, só para seu sádico entretenimento, um sofrimento indecente, de tão desumano, naquele que ainda é obrigado a lhe dar morada.

Como é de sua índole vagabunda, o Amor passeava ermo pelas ruas, fumando seus cigarros sucessivos, vez ou outra dando uma bicadinha na garrafa de whisky paraguaio que sempre traz consigo no bolso interno do seu paletó de linho branco, quando a avistou e escolheu-a por nova vítima, pobrezinha.

Com a má educação de que tanto se orgulha, o Amor empurrou aos tantos outros que caminhavam na rua velha do centro da cidade, sem pedir licença, aos trancos, e precipitou-se sobre ela como uma pedrada no meio da testa.

Não estava fazendo mal a ninguém, tadinha. Apenas tomava uma coca-cola light, tentando enganar-se que a quantidade menor de açúcar do refrigerante, amenizaria o estrago do pastel gorduroso que comia no intervalo que a empresa lhe concedia, muito a contra-gosto, para um lanche de quinze míseros minutos.

E foi para o caixa da lanchonete que o Amor apontou, Vai, otária, é aquele, caia de quatro agora!

Ela caiu.

Poucos sabem, mas o Amor é muito amigo da Morte. Encontram-se todas as sextas-feiras na casa de um ou de outro, para tomar cervejas e fumar charutos. Na juventude, um tempo antes de deus dizer, Faça-se a luz, saciavam as urgências hormonais das suas puberdades nos cantos escuros do universo. Mas, agora, são apenas bons e velhos amigos.

Se deus soubesse como o escuro era bom...

E foi exatamente por serem íntimos, que ao dizer o nome dela o Amor soube que em menos de dois anos a Morte ceifaria a vida daquela menina. Não tinha decidido ainda como, mas de dois anos não passaria. Nisso, o Amor viu ali uma ótima possibilidade de causar um sofrimento de dor rara, e por isso tocou também o rapaz que recebia os pagamentos na lanchonete.

Inocentes, como são todos diante do Amor, apaixonaram-se com a certeza de não haver sentido continuarem a viver se não fosse um nos braços do outro.

Namoraram, noivaram e casaram. Tudo em pouco mais de seis meses. Felizes como poucos. Respeitavam-se, acolhiam-se, saciavam-se como nenhum outro namorado ou namorada anterior, fora capaz de fazer por eles.

Estavam juntos há um ano, quando ela contou emocionada para o seu jovem marido que esperava um filho dele, o primeiro dos três que sonhavam ter.

Maquiavelicamente, Amor e Morte combinaram entre risadas que, então, ela morreria no parto. Mais do que isso, morreria também o bebê. Seria lindo o desespero dele ao deparar-se sem aquela que acreditava que teria ao seu lado até que os cabelos de ambos estivessem mais branquinhos que algodão, justo no dia que deveria ser o mais feliz da sua vida.

E assim o fizeram.

O jovem casal havia marcado a data da cesariana, mas para fazer da surpresa um tempero especial, Morte e Amor anteciparam a chegada do bebê, forçando um parto pré-maturo.

Na maternidade pública, os médicos preocuparam-se com a baixa pressão sanguínea dela, tão logo dera entrada na emergência. Depois de algumas horas de uma dor que só as mulheres que tornam-se mães conhecem e são capazes de suportar, apareceu o menino. Mesmo muito fraca, ela encontrou forças para perguntar para o médico de semblante muito tenso, por que não ouvia o choro do seu bebê. Visivelmente emocionado, o médico balançou a cabeça negativamente. Ela foi ficando cada vez mais debilitada, conseqüência de uma hemorragia inestancável. Terminou o abandono da vida minutos depois de já ter abandonado a consciência.

Amor e Morte gargalhavam, comemorando o sucesso da empreitada tão bem planejada, mas com uma pequena falha na execução.

Quando disse o nome da menina, o Amor esqueceu-se de dizer à Morte também o nome do rapaz. Se o tivesse dito, saberia que ainda antes da morte dela, estava programado para ele, naquele mesmo dia e horário, um atropelamento fatal.

Na sala da funerária onde os três caixões estavam lado a lado, as famílias de ambos encontravam o conforto que se é possível encontrar numa situação desta, no consolo de, ao menos, terem partido todos juntos. Se já eram felizes aqui na terra, onde tanto infortúnio se intromete na vida das gentes todas, plenamente agora o seriam no céu, pois lugar diferente para um casal que tanto e tão verdadeiramente se amara, não haveria de ter.

E, ao menos desta vez, o Amor se fodeu.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Do amor


Era uma vez uma menina linda. Linda mesmo.

Delicada em tudo, dos gestos, atos, palavras ao jeito de mexer nos cabelos. Sorriso puro, mas com uma malícia que ela provavelmente nem sabia que morava ali, naqueles lábios finos, mas muito bem desenhados.

Até os dentes um tantinho tortos, eram peça chave para todo o charme. Pecado seria algum ortodontista interferir naquele sorriso onde até o que em qualquer dos outros mortais pareceria falha, nela era uma parte importante do impacto que causava nos privilegiados que a viam sorrindo.

Aos dezessete, teve a certeza de ter encontrado seu definitivo amor.

Suas tantas amigas da mesma idade, já haviam tido, então, uns três ou quatro definitivos amores, mas ela não. Sabia que saberia quando o encontrasse. E agora não lhe restava dúvidas, o havia encontrado.

E para fazer da felicidade uma entidade plena, a recíproca era verdadeira. Ele também a amava. Muito, com verdade, com devoção.

Pela certeza do amor que sentia – e sentiam -, ele a quis por inteira, para fazer dela a mulher que pedia passagem para a adolescente que se preparava para o vestibular de naturologia.

Mas ela pediu-lhe paciência, não havia dúvidas que seria ele o homem que primeiro – e por sua vontade também o último – que a teria, mas o momento ainda não era aquele.

A mãe e a avó, que com ela moravam, notaram a mudança no seu comportamento. Ainda que fosse uma garota feliz, jamais havia estado tão radiante. Seu sorriso, que sempre fora luminoso, agora parecia um toque de mágica, tão surpreendentemente lindo que se tornara.

É amor, confidenciavam-se felizes mãe e avó cada vez que a viam sair, chegar, comer, dormir, cantar e, até, calar. Até no silêncio o amor que trazia no coração se fazia notar.

Queriam conhecê-lo, certamente tratava-se de um bom rapaz. Ela era, além de linda, muito inteligente e com ótima presença de espírito, não seria um qualquer que a cativara de forma tamanha.

Mas ela relutava, Ainda não é chegada a hora, dizia com a certeza de quem sabe que o momento oportuno não tardaria por vir.

Fosse pela vontade irresistível da paixão que sentia, já o teria apresentado à família, aos amigos, aos vizinhos, ao padre, ao leiteiro, ao carteiro, mas ainda não era chegada a hora.

Tinha medo do julgamento alheio.

Ela sabia que as intenções dele eram verdadeiras, tanto quanto o sentimento que a cada dia fazia da necessidade de verem-se uma urgência irresistível.

Mas ele era vinte e cinco anos mais velho que ela, e isso a fazia tremer de pavor da mínima possibilidade de rejeição por parte de alguém dos tantos que ternamente amava.

E assim passaram-se dias, semanas e uns poucos meses, ela, a cada menor fração de segundo mais e mais submergida naquele amor verdadeiro, mas com proporcional medo da desaprovação dos outros.

Ele sonhava dia e noite em ser parte por inteiro da vida dela. Não queria ser escuso, queria o passeio de mãos dadas, o namoro no sofá, o almoço de domingo, as risadas em família, e tudo o mais que o amor generosamente concedia aos outros casais, mas parecia negar-lhe sem maiores explicações.

Queria casamento, filhos, casa, cachorro. Queria realizar cada menor capricho da sua amada. Sabia, desde o momento em que a vira pela primeira vez, que sua vida estava desde sempre traçada para servir-lhe até o fim dos dias.

Mas ainda não era chegada a hora, ela dizia.

Mas a hora, que caminha desde sempre alheia aos desejos das gentes do mundo, impôs-se autoritária como quem diz, Eu decido se é ou não chegado o tempo de me fazer presente.

A mãe, como é natural nas mães que amam verdadeiramente seus filhos, ficou preocupada com a recusa da filha em lhe apresentar o namorado.

Um dia, enquanto a filha tomava banho para encontrá-lo, na ansiedade da proteção vasculhou as coisas da menina, e entre bilhetes e anotações diversas na agenda surrada pelo avançar dos meses do ano, encontrou uma foto dos dois, beijando-se apaixonados enquanto ele distanciava a máquina com o braço esquerdo, para que a lente não perdesse qualquer dos detalhes daquela cena amorosa.

A mãe entrou no banheiro gritando desesperada, balançando a foto aos prantos, num pânico sem precedentes, É teu pai, esse homem é teu pai, isso não pode acontecer, isso não pode estar acontecendo, esse filho da puta é o filho da puta que me abandonou grávida, é o filho da puta do teu pai!

A avó, assustada com o desespero vindo do banheiro, foi ver o que motivara o pandemônio. Ao deparar-se com a foto, enfartou fulminantemente. A mãe parecia menos transtornada com morte daquela que lhe dera todo o suporte quando, dezessete anos atrás, fora abandonada grávida por um representantesinho comercial metido a sedutor, do que pelo desagravo da sorte para com sua filha.

A menina permanecia estática, catatônica, sentada no chão do Box enquanto a água do chuveiro desabava-se sobre suas costas, indiferente a tragédia familiar recém instaurada.

A mãe sentou-se no vaso, ao lado do corpo da avó falecida, e copiosamente chorava em desespero.

A filha desligou o chuveiro, respirou fundo para conter o pranto, foi até a mãe, afagou-lhe os cabelos, beijou-lhe a testa, e em seguida acertou-lhe com o antigo e pesado secador de cabelos na nuca. E golpeou-lhe uma vez mais, e outra, e outra, e mais uma, até ter certeza que o sangue que escorria já era o de um corpo sem vida.

Voltou para o chuveiro, e terminou seu banho.

Vestiu-se com o mais belo dos vestidos, maquiou-se com tons suaves, tão delicados quanto ela era na sua totalidade, e foi encontrar o seu amado.

O que farias por mim? Perguntou tão logo chegara ao lugar marcado.

Tudo.

Tudo?

Tudo!

Então vamos embora.

Para onde?

Para longe, o mais que pudermos.

E tua família?

Faremos uma nova, nós dois.

Você é muito nova, não pode estar falando sério.

Você disse que faria tudo.

E faço.

Então vamos?

Então vamos!

Naquela noite, entregou-se a ele por inteira, concedendo a sua pureza intacta na cama de um hotel de beira de estrada, a mais de seis municípios de distância.

Emocionada, chorou baixinho no abraço daqueles braços largos, menos pela dor do inevitável desconforto da primeira vez, do que pela emoção de saber que era a mais certa das coisas a serem feitas.

E assim foi também no dia seguinte. E no outro, no outro, no outro, cada vez mais juntos e distantes daquela cidade, agora antepassada.

E eles viveram felizes para sempre.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Gourmet


Não apague ainda, meu amor, deixe que eu enxugue as suas lágrimas. Quero que você me enxergue bem enquanto eu estiver falando, não quero sua visão nublada por uma nuvem de água.

Foi você que perguntou quem eu era para o garçom, quando você e suas amigas foram fazer um happy hour lá no pub anexo ao restaurante.
Eu estava chegando para assumir a cozinha, e você, já meio bêbada, quis saber quem eu era.
Trocamos telefones, emails, mas achei que não daria em nada.

Você impressiona e, particularmente, tenho um fraco por mulheres altas. Negras então, sou vítima fácil.

Eis que você me mandou uma mensagem convidando para jantarmos em algum lugar, era dia 29 e você conhecia uma cantina ótima que servia o nhoque da fortuna, com tudo o que o ritual pede. Davam, inclusive, uma nota de um dólar para cada um dos clientes fazer a tal da simpatia de São Genaro.
Mas claro, não perderia a oportunidade de exibir meus anos de estudos culinários, levando uma mulher linda como você para comer num restaurantezinho qualquer.

Você aceitou vir ao meu apartamento.
Enquanto eu preparava a massa do nhoque, sovando lentamente as batatas com a farinha, lhe servi uma taça de frisante brut.
Você fez cara feia após o primeiro gole, e disse que preferia sidra. Da rosinha.

Foi como se você tivesse arrancado o meu dedo mínimo com um alicate de desossar aves.

Servi finas fatias de Pata Negra para que você saboreasse como entrada, você disse que preferia mortadela, ou melhor, “mortãdela”.
Meu amor, aquele presunto custa mais do que o seu décimo terceiro inteiro. Não é justo que você o compare com “mortãdela”.

Foi como se você tivesse feito uma incisão no meu abdome, insuficiente para me matar, mas de tamanho bastante para que minhas entranhas aparecessem.

Quando servi o nhoque com molho calabrês, você disse que não sabia para que tanto trabalho, falou que eu devia ter comprado meio quilo de nhoque Massita, daria na mesma.

Não, meu amor, não daria na mesma.

Essa sua observação foi como se você enfiasse alfinetes enferrujados embaixo das unhas dos dedos dos meus pés.

Mas você é linda, e a habilidade desinibida que você demonstrou após o jantar, no chão da minha sala, me fizeram esquecer as suas indelicadas observações.
E foi por saudade da sua falta de pudor e total ausência de restrições para o sexo, que acabei por lhe convidar para jantar novamente na minha casa.

Preparei um risoto de camarão que, modéstia a parte, ninguém faz igual a mim.
Você me perguntou por que eu coloquei colorau no arroz.

Foi como se você tivesse me amarrado numa cadeira, vedado a minha boca e, bem devagar, fosse cortando com uma faca bem afiada o meu couro cabeludo, sem pressa, só para que eu sentisse lentamente a dor da lâmina escalpelando minha cabeça.

Não, meu amor, aquilo não é colorau. Colorau é o que provavelmente a sua mãe colocou na comida do seu pai, considerando a diferença entre a cor da sua pele e a dele. Aquilo que eu coloquei no arroz se chama açafrão, é espanhol, e daquela qualidade você só encontra em uma única barraca do Mercado Municipal de São Paulo. O quilo deste tempero é certamente mais caro do que a prestação do seu carro popular.

Como eu lamento esta sua estupidez sem precedentes, meu amor.

Mas, considerando o fato de que após o jantar, você pediu para que eu permanecesse sentado na cadeira, quietinho, enquanto você me agradeceria a sua maneira, eu relevei mais uma vez a insensibilidade do seu paladar.
E foi na esperança de receber mais uma vez este mesmo agradecimento, que pela terceira vez eu lhe chamei para jantar na minha casa.

Resolvi preparar algo mais simples, mas muito saboroso.
Preparei um farfalle com massa dura italiana, tentei lhe explicar as nuances do sabor, da textura da massa, mas ouvir você dizer, Ah, se fosse um macarrão Galo, Isabela, pra mim ia dar tudo na mesma, foi como se você cortasse fora os meus mamilos com uma faca para cortes especiais de peixes.

Não, meu amor, não dá tudo na mesma.

Um cachorro vira-latas sente diferença no sabor de dois pacotes diferentes de ração, mas você não consegue diferenciar uma massa dura italiana de um macarrão Galo, Isabela.

Como você é estúpida, meu amor.

Servi um Pinot Noir, e você disse, Ui, que coisa ruim, parece vinagre. Não tem nenhum vinho docinho aí não?

Não, meu amor, não tenho nenhum vinho docinho. Vinhos docinhos não são vinhos, meu amor.

É incrível como a beleza do seu corpo é inversamente proporcional à sua desenvoltura intelectual.

Você colocou gelo numa taça de Pinot Noir.

Você quis colocar açúcar, no Pinot Noir.

Desta vez não consegui sequer aguardar a retribuição que seu corpo perfeito me ofereceu nas oportunidades anteriores.

Você devia ser presa, condenada a reclusão perpétua por desacato à civilização.
Mas a prisão não seria pena suficiente para tamanhas atrocidades ditas por você.

Você consegue me entender?

Entende agora por que arranquei o seu dedinho mínimo com o alicate para desossar aves?

Entende agora por que suas entranhas estão começando a aparecer, nessa incisão que fiz no seu abdome?

Entende agora por que eu enfiei esses alfinetes enferrujados embaixo das unhas dos dedos dos seus pés?

Entende agora por que arranquei lentamente o seu couro cabeludo?

Entende agora por que extirpei os seus mamilos com a faca de cortar peixes?

Imagino que deva estar doendo bastante. Não sei se tanto quanto a dor que as agressões da sua estupidez causaram na minha alma, mas, ainda assim, acredito que seja muito.

Mas fique tranqüila, meu amor, você já perdeu bastante sangue.

Já, já o seu sofrimento acaba.

O seu, e o meu.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Não se ama sem dinheiro


Se pudesse, pagava para você um bom jantar.

Um cachorro quente, que fosse.

Mas não posso.

Ao menos hoje, eu não posso.

Queria ter dinheiro para levar você a Paris.

Tiraríamos fotos lindas, lá.

Eu e você, bem abraçadinhos, tentando espantar o frio europeu no calor que só nós podemos nos oferecer.

Quem sabe até faríamos um filho, lá.

Ou uma filha, bem bochechudinha, com pezinhos tão lindos quanto os seus.

Mas estou sem grana.

Queria ter dinheiro para levar você à Nova Zelândia, só para você poder pular de bung jump naquelas paisagens lindas que aparecem no filme do Senhor dos Anéis.

Você sabe, eu não pularia de jeito nenhum. Mas sei que você gostaria.

Mas meu dinheiro acabou.

Queria ter dinheiro para levar você para jantar em São Paulo todas as noites, e depois pegarmos o avião e voltarmos para dormirmos juntinhos aqui no sul.

Só se come bem em São Paulo, você sabe.

Só se dorme bem no sul, você sabe.

Mas meu salário já era.

Queria ter dinheiro para dar a você um New Beetle vermelho, combinaria com suas unhas. Sei que você é louca por esse carro.

Um fusquinha verde, que fosse.

Mas não sei sequer se meu dinheiro dará para o ônibus até o fim do mês.

E falta tanto mês desde que meu salário acabou...

Queria ter dinheiro para levar você a um show do Frank Sinatra, sei do seu fascínio pelos olhos azuis.

Ainda bem que ele morreu.

Mas a maior falta que a falta de dinheiro agora me faz, é a carência de alguns míseros reais para eu poder ir ali no bar da esquina comprar um maço de cigarros.

Um varejinho, que fosse.

Não sinta-se desprestigiada, por favor. Você sabe que faz quase uma década que eu amo você desmesuradamente, e faço por você tudo o quanto estiver ao meu alcance.

Mas entenda, meu amor, o cigarro eu amo desde os quatorze.

Como ele me faz falta agora.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Puta Amor


Não esperava forjar naquele fogo indecente os rumos da sua vida, cuja bússola o norte já não encontrava. Eram muitos os meses em que o imã da sua bússola surtara, e fazia a seta que deveria apontar-lhe o caminho certo girar com tamanha velocidade, a ponto de despetalar a indefesa rosa dos ventos. Fora apenas levar alguns poucos clientes de cidade distante para divertirem-se longe das esposas que dormiam, presumidamente sozinhas, a quilômetros dali.

Puteiro de qualidade média-baixa. Se lhe comprassem mais e melhor, aqueles clientes de merda, levaria-os a corpos mais bem cuidados, talvez no centro da cidade, mas para quem eram, estava mais do que bom.

Os clientes dele maravilhados com aqueles shows de mulheres nuas. Mulheres esquisitas, alguns bons corpos precedidos por rostos lastimáveis, outras o inverso.

E foi no escuro permeado pelas fumaças misturadas de cigarros de marcas diversas, que ele a viu.

Ao lado de uma outra ela esperava, com o cigarro em punho, por uma brasa que despertasse sua fumaça adormecida.

Chamou o garçom e pediu o balde de cervejas que o custo da sua consumação lhe dava direito. Pediu de tal modo que ela percebesse que ele estava ali, sozinho naquela mesa pequena, com espaço suficiente apenas para a bebida e para o cinzeiro imundo.

Não era feia, e era bem gostosa.

Vestido curtíssimo, pernas lindas.

Um pequeno regime talvez lhe caísse bem, mas nada grave. Nada que desabonasse o desejo que suas pernas deviam despertar noite após noite.

Não subia ao palco, guardava seu espetáculo para a alcova de quem arcasse com os custos altos que cobrava por seus préstimos.

Me chamo Raquel, ela disse, e você?

E faz diferença? Ele respondeu.

Tens cara de Rodrigo.

Passou longe, mas me chame assim, se te parece adequado.

Eu é que devo te dar nomes falsos.

E qual o teu verdadeiro?

Raquel.

Muito prazer, Raquel, me chamo Rodrigo.

Me pagas um drink?

O mais barato.

Ela pediu.

Ele pagou.

Não era falso o prazer que a companhia dele lhe despertava. Não era exatamente um homem esbelto, estava algo descuidado, mas, nem por isso, menos interessante.

Os clientes entretiam-se com as outras putas, enquanto a conversa deles fluía com tal flerte, que sequer parecia apropriado ao recinto.

Na pouca intimidade que se estabelecera no início da conversa, confessara-lhe ter um filho. Ela.

Já haviam ido embora os clientes dele, e uns poucos alcoólatras, assíduos do recinto, ainda permaneciam bravamente a espera de algum desconto misericordioso que qualquer das outras putas lhes pudesse oferecer. Mesmo para os bêbados, é triste terminar a noite sozinho.

Na verdade eu tenho quatro.

O quê?

Filhos. Vivem todos comigo. Tive a primeira aos quatorze.

Quantos anos tens?

Vinte e oito.

Achei que tinhas dito vinte e três, no começo da nossa conversa.

E faz diferença?

Ele sorriu.

Talvez descuido de fim de noite, mas entre uma música sertaneja e outra, surgiu Caetano cantando Cajuína.

Ela gargalhou do equívoco do DJ sonolento.

Dança comigo?

Ela sorriu.

Eles dançaram.

A música arrastava-se swingada, como que derramando-se nas coxas de ambos, que a cada passo procuravam-se mais.

Ele trazia para perto de si, puxando a cintura fina dela com uma firmeza muito delicada, aquele corpo que quanto mais a música evoluía, mais o apetecia.

Seus rostos cruzavam na melodia, aproximavam-se os lábios, mas a ética profissional negava-lhes o beijo ansiado.

O perfume dela era bom.

O dele, melhor.

Essa noite eu vou te ter, mas não vou pagar.

Já faz algumas horas que parei de negociar.

Se tiveres um quinto, e ele for meu, faço questão de que seja criado por mim.

Ela sorriu, quase com emoção.

No apartamento dele, tudo fora tão lento e malandro quanto a canção de minutos atrás.

Nem ele sabia-se capaz de tamanho carinho e cuidado.

Explorou-a sem pressa, com as mãos, com os lábios, com o corpo inteiro.

Ofereceu-lhe os arrepios que toda mulher deve experimentar ao menos uma vez na vida.

Ela retribuiu-lhe substituindo os gritos fingidos de outras noites, por sussurros verdadeiros.

As peles crispadas ferviam, gelavam e tornavam a ferver.

Ele serviu a ela com a mesma dedicação que era obrigada a oferecer a outros por ofício.

Não pediu o telefone dela, nem retornou ao puteiro. Deixou-lhe o seu cartão.

Se me quiseres, me ligue.

Raquel sorriu, mas não ligou.

Dez meses depois, sua secretária transferiu-lhe uma ligação em que uma voz feminina dizia que Raquel morrera no nascimento do seu quinto filho. Filha, na verdade.

Antes, porém, deixara com a amiga que agora telefonava o cartão dele, com a orientação de que caso lhe acontecesse algo, deveria ligar para aquele número e entregar-lhe o bebê. Só o último, os outros quatro a mãe dela se encarregaria de encaminhar na vida.

A menina era linda.

Olhos escuros, castanhos profundos, iguais aos da mãe.

O rapazinho do cartório recusara-se em aceitar o registro de Cajuína, mas nada que cinqüenta reais não bastassem para corromper a conduta profissional do jovem escrivão, e chegarem a um acordo satisfatório para ambos. Raquel Cajuína, constava na certidão da pequena. Nome mais verdadeiro, impossível, e essa verdade fazia diferença.

É pouco provável que outro homem tenha sido pai tão amoroso quanto ele.

Dias antes de completar quinze anos, ela veio aos prantos, tremendo de medo da reação paterna, confessar-lhe que estava grávida de um namoradinho da sua escola.

Com os olhos marejados ele sorriu. Sorriu e abraçou sua pequena criança a espera de uma outra. Beijou sua testa, secou as lágrimas que escorriam daqueles belos, grandes e amedrontados olhos castanhos, e disse com a voz mais doce e cheia de amor de toda a sua vida:

Mas tu és mesmo uma filha da puta...

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Doce, simples.


Ficou surpreso quando ela, sufocantemente linda, lenço de fino pano ao redor do pescoço, vestida sempre com uma elegância tão rara que a maior parte das mulheres passa a vida sem sequer conhecer, o convidara para ir à uma reunião da família. Eles, a família, todos ricos. Ele, pobrezinho, tão pobre.

Tudo bem, pobre é exagero, mas estava naquela idade em que já não se espera muito da vida, as coisas todas estão meio que encaminhadas, o salário vai ser aquele mesmo, a preguiça já demovera dos seus ideais a disposição de transformar o mundo, enfim, a vida estava sossegada e tudo de que necessitava para sentir-se feliz era pouco. E isso era bom.

Mas ela o convidara para ir à uma reunião da família e ele não sabia o por quê, mas aceitou. Ela sabia.

Gostava das coisas simples, descomplicadas, e ele lhe transmitia exatamente isso.

Ele era tão doce, e tinha a pele morena. Ela tinha um fraco por homens de pele morena.

A voz grave e musical com que ele lhe falava “Bom dia” com um sorriso largo e branco, cada vez que ela ia tomar café na padaria sofisticada que ele gerenciava, provocava-lhe arrepios inconfessáveis. Os olhos espremiam-se no sorriso de quem é cortês por saber que, ainda que o trabalho seja simples, não há por que não fazê-lo bem feito.

Receberam-no muito bem. Todos tão educados quanto ricos, mas alegres como normalmente só os pobres são.

Um dos tios, percebendo o modo como os olhos dele brilhavam admirando o piano de calda no canto da sala, disse, Você tem cara de quem sabe tocar, chegou a hora de nos oferecer o espetáculo, ou acha que vai ficar bebendo de graça a noite inteira?

Ele riu. Todos riram.

Não fingiu timidez, ficou tímido de verdade. Disse que só sabia dois ou três acordes, mas nada clássico, o que seria muito mais apropriado naquele belo instrumento.

Música clássica dá sono, disse um dos primos.

Sentou ao piano, brincou com os cabelos revoltos agitando a cabeça, e fez ecoar na sala Great Balls of Fire, imitando inclusive os trejeitos de Jerry Lee Lewis. A alegria que estava instalada, agora tinha trilha sonora.

Os olhos dela brilhavam, observando-o ao piano.

O Buffet encomendado não veio, a avó ficou nervosa. Ele, já solto pelas teclas do piano, antecipou-se à pizza que cogitavam pedir, O que tem na geladeira?, Ih, meu filho, disse a avó, contávamos com o jantar encomendado, devo ter no máximo algumas fatias de bacon, alguns tomates e essas azeitonas de aperitivo, Tem massa? Um, talvez dois pacotes de espaguete, O que vocês estão bebendo? Um Shiraz, espanhol, 2005, Esse ano deveria ter durado pra sempre, acho que não vou estar vivo para presenciar outra safra igual, Mas até de vinhos você entende? Deixemos de conversa fiada, me dê uma panela e uma colher de pau que em trinta minutos estará saindo um belo Matriciana.

Os olhos dela, vendo-o tão desenvolto ao fogão, agora cintilavam.

E comeram e beberam e riram e brincaram. Alguém sugeriu gamão, mas ele convenceu a todos de que truco seria mais divertido. E foi.

Conversou com o pai sobre política, com uma das primas sobre Dostoievski, com o avô sobre truques de marcenaria, deu dicas para o bobó de camarão da mãe, com um dos tios discorreu sobre Chopin, com outro sobre charutos cubanos, encantou as crianças explicando como aquele brinquedo que haviam ganhado no chocolate, na época dele era feito de madeira, com um preguinho em uma das pontas, e era um barbante que o fazia girar, e não a fricção daquelas engrenagens de plástico modernas.

Os olhos dela estavam maravilhados.

No fim da noite, quando a alegria já dividia os espaços da enorme sala com o encantamento recíproco, ela perguntou-lhe com a voz baixa, quase um sussurro para que só ele pudesse ouvir, Existe algo que você não saiba?

Ele sorriu e respondeu divertido, Mousse de chocolate. Não sei fazer mousse de chocolate.

No dia seguinte, e em todos os outros que depois vieram, nunca mais voltou àquela padaria. Durante algumas semanas o seu telefone soara impertinente, mas ela desligava-o antes mesmo que o recado da secretária eletrônica deixasse claro para a pessoa do outro lado da linha o seu desinteresse em receber aquela ligação.

Ele aceitou o consolo da resignação, e em pouco tempo abdicou da possibilidade de um segundo encontro. Mas nunca soube o por quê.

Ela sabia.

De que adiantava tanto conhecimento acessório, se lhe faltava o essencial, o básico.

Gostava das coisas simples, descomplicadas.

Seria complicado demais dispor do resto da sua vida ao lado de uma pessoa que não sabia fazer algo tão simples quanto um doce, como uma simples mousse de chocolate.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Pergunta

Vem cá, me diz
Deixa eu perguntar:
O que te faz assim, taça esperando o vinho?

Vem cá, assim
Diz o que tu fizeste
O que esperas de mim?
Como confundes o que eu sinto?

O meu eu
Gosta do teu n'eu
Quando não seu
Sendo enfim nós

O meu eu
Gosta do teu n'eu
Quando não seu
Sendo enfim nós dois

Pois bem, o amor é pra quem tem
Sem ter nele um bem


(canção/poema para ser cantada na voz de Rafael Lange)