sexta-feira, 2 de julho de 2010

Doce, simples.


Ficou surpreso quando ela, sufocantemente linda, lenço de fino pano ao redor do pescoço, vestida sempre com uma elegância tão rara que a maior parte das mulheres passa a vida sem sequer conhecer, o convidara para ir à uma reunião da família. Eles, a família, todos ricos. Ele, pobrezinho, tão pobre.

Tudo bem, pobre é exagero, mas estava naquela idade em que já não se espera muito da vida, as coisas todas estão meio que encaminhadas, o salário vai ser aquele mesmo, a preguiça já demovera dos seus ideais a disposição de transformar o mundo, enfim, a vida estava sossegada e tudo de que necessitava para sentir-se feliz era pouco. E isso era bom.

Mas ela o convidara para ir à uma reunião da família e ele não sabia o por quê, mas aceitou. Ela sabia.

Gostava das coisas simples, descomplicadas, e ele lhe transmitia exatamente isso.

Ele era tão doce, e tinha a pele morena. Ela tinha um fraco por homens de pele morena.

A voz grave e musical com que ele lhe falava “Bom dia” com um sorriso largo e branco, cada vez que ela ia tomar café na padaria sofisticada que ele gerenciava, provocava-lhe arrepios inconfessáveis. Os olhos espremiam-se no sorriso de quem é cortês por saber que, ainda que o trabalho seja simples, não há por que não fazê-lo bem feito.

Receberam-no muito bem. Todos tão educados quanto ricos, mas alegres como normalmente só os pobres são.

Um dos tios, percebendo o modo como os olhos dele brilhavam admirando o piano de calda no canto da sala, disse, Você tem cara de quem sabe tocar, chegou a hora de nos oferecer o espetáculo, ou acha que vai ficar bebendo de graça a noite inteira?

Ele riu. Todos riram.

Não fingiu timidez, ficou tímido de verdade. Disse que só sabia dois ou três acordes, mas nada clássico, o que seria muito mais apropriado naquele belo instrumento.

Música clássica dá sono, disse um dos primos.

Sentou ao piano, brincou com os cabelos revoltos agitando a cabeça, e fez ecoar na sala Great Balls of Fire, imitando inclusive os trejeitos de Jerry Lee Lewis. A alegria que estava instalada, agora tinha trilha sonora.

Os olhos dela brilhavam, observando-o ao piano.

O Buffet encomendado não veio, a avó ficou nervosa. Ele, já solto pelas teclas do piano, antecipou-se à pizza que cogitavam pedir, O que tem na geladeira?, Ih, meu filho, disse a avó, contávamos com o jantar encomendado, devo ter no máximo algumas fatias de bacon, alguns tomates e essas azeitonas de aperitivo, Tem massa? Um, talvez dois pacotes de espaguete, O que vocês estão bebendo? Um Shiraz, espanhol, 2005, Esse ano deveria ter durado pra sempre, acho que não vou estar vivo para presenciar outra safra igual, Mas até de vinhos você entende? Deixemos de conversa fiada, me dê uma panela e uma colher de pau que em trinta minutos estará saindo um belo Matriciana.

Os olhos dela, vendo-o tão desenvolto ao fogão, agora cintilavam.

E comeram e beberam e riram e brincaram. Alguém sugeriu gamão, mas ele convenceu a todos de que truco seria mais divertido. E foi.

Conversou com o pai sobre política, com uma das primas sobre Dostoievski, com o avô sobre truques de marcenaria, deu dicas para o bobó de camarão da mãe, com um dos tios discorreu sobre Chopin, com outro sobre charutos cubanos, encantou as crianças explicando como aquele brinquedo que haviam ganhado no chocolate, na época dele era feito de madeira, com um preguinho em uma das pontas, e era um barbante que o fazia girar, e não a fricção daquelas engrenagens de plástico modernas.

Os olhos dela estavam maravilhados.

No fim da noite, quando a alegria já dividia os espaços da enorme sala com o encantamento recíproco, ela perguntou-lhe com a voz baixa, quase um sussurro para que só ele pudesse ouvir, Existe algo que você não saiba?

Ele sorriu e respondeu divertido, Mousse de chocolate. Não sei fazer mousse de chocolate.

No dia seguinte, e em todos os outros que depois vieram, nunca mais voltou àquela padaria. Durante algumas semanas o seu telefone soara impertinente, mas ela desligava-o antes mesmo que o recado da secretária eletrônica deixasse claro para a pessoa do outro lado da linha o seu desinteresse em receber aquela ligação.

Ele aceitou o consolo da resignação, e em pouco tempo abdicou da possibilidade de um segundo encontro. Mas nunca soube o por quê.

Ela sabia.

De que adiantava tanto conhecimento acessório, se lhe faltava o essencial, o básico.

Gostava das coisas simples, descomplicadas.

Seria complicado demais dispor do resto da sua vida ao lado de uma pessoa que não sabia fazer algo tão simples quanto um doce, como uma simples mousse de chocolate.

4 comentários:

jean mafra em minúsculas disse...

david, teu instrumento está ficando cada vez mais afiado.

Shuzy disse...

Cara...!
Esse retrata perfeitamente como existe mulher besta nesse mundo ¬¬

julie disse...

e tu david, sabe fazer mousse de chocolate?

Daca disse...

a-dó-go