quarta-feira, 30 de março de 2011

Cristal


Você já se sentiu uma fração do todo que pode ser?

É como tenho me sentido.

E sei lá por que cargas d’água dei para me lembrar daqueles dias que me foram tão bons.

Sabe aquela história que um sentimento bonito é como cristal, delicado, que depois de quebrado não se cola, por melhor que seja a cola? Então, acho que foi isso que aconteceu, né?

Éramos um cristal tão bonito, sem nenhuma imperfeição, uma bolhinha de ar sequer.

Mas sou meio estabanado e acabei esbarrando o cotovelo e quebrando o cristal lindo que poderia ter sido uma bela taça que serviria de casa para um Bordeaux de muito preço e qualidade compatível à etiqueta.

Ok, ok, sem vinho, sem bebida.

Que saudade de um bom vinho.

Que saudade de você.

Mas tu continuas cristal, e eu copo de requeijão.

Você já trocou pneu? Acho que não.

Quando se troca um pneu, fica uma desgraçada duma sujeira embaixo da unha que não tem jeito de sair. A gente lava, lava, e a desgramada não sai de jeito nenhum.

Meu cotovelo estabanado no cristal bonito é como essa desgramada dessa sujeira, não vai embora.

E suas unhas estão sempre bem feitas.

Você não troca pneus.

Talvez eu tenha nascido para borracheiro. Talvez eu seja só a sujeira embaixo das unhas.

Esfrega mais um pouquinho que eu acabo saindo.

Já tentou sabão mecânico? Sabão de lava?

São bons, removem tudo que é craca, até uma craca como eu.

Errar faz parte do meu metier, sou bom nisso.

E você parece programada para acertar. Precisa ser tão precisa?

Porra, você já é linda, precisa ser inteligente também? Precisa ser compreensiva também? Precisa ser amiga também?

Aí, quando os outros se apaixonam por você, outros como eu, jamais estarão a sua altura.

Mas lhe digo, aquele dia, no almoço que sei lá por qual motivo eu também estava presente, era para ser só você e sua amiga, aquele dia vocês me perguntaram por que é tão difícil achar um cara legal, por que os homens não acumulam o compêndio de virtudes que lhes satisfazem. Por quê o cara que é bonito não é gostoso? Por quê o cara que é gostoso e bonito não é inteligente? Por quê o cara bonito, gostoso e inteligente não é gentil? Por quê o cara que é bonito, gostoso, inteligente e gentil é tão apaixonado por si mesmo? Por quê ele se depila? Por quê ele gasta mais horas na academia do que com vocês? Por quê? Por quê? Por quê?

Por que esse cara não existe.

Homem de verdade tem barriga.

Desculpe lhe dizer isso assim, tão sem cuidado.

Desculpe lhe dizer isso, meu cristal tão lindo. Desculpe fazer com que você escute isso dum copo de requeijão.

O problema não está nele, está em você.

Pois é, pois é, pois é.

Mesmo sendo esse cristal tão lindo, sou obrigado a lhe dizer, o problema está em você, não nele.

Ou neles.

É que você já não faz o menor esforço para ter aquilo que quis ter com aquele primeiro. Ou segundo, mas o primeiro com quem você fez algum esforço.

Talvez vindo dum copo de requeijão, não signifique muita coisa para um cristal tão lindo, mas é que ele, o primeiro, era uma lata de pêssego sem tampa feita de copo, uma lata de ferro, nem para requeijão servia. E você se esforçou por ele, por vocês.

Acho que, depois dele, você cansou.

Mas quando você perceber que terá que fazer algum esforço para que algo com alguém dê certo, que nem todo esforço lhe trará cortes nos lábios, como trazem as latas de pêssego feitas de copo, talvez você consiga encontrar um copo suficientemente bom para merecer um brinde com o teu cristal. Um brinde que não lhe quebre, cristal tão lindo.

Pare de esperar demais, ninguém é demais.

Quando você aceitar que terá que se esforçar de novo para que as coisas deem certo, essa angústia aí dentro deve parar de coçar, e talvez você seja feliz.

Não o tempo todo, por que isso ninguém é.

Mas na maior parte do tempo, com certeza.

Só tome cuidado para não virar taça cara na cristaleira, por que lá junta pó.

É claro que será muito prudente da sua parte manter uma distância segura dos estabanados, cujos cotovelos insistem em trincar, quando não quebrar, os cristais que veem pela frente. Só não se enclausure na cristaleira. Os bons cristais foram feitos para bons brindes.

Não comigo, que eu já não bebo, mas não há de lhe faltar bons brindes, quando for aberta a temporada das concessões compreensivas às falhas que todos têm.

Enquanto isso, ficamos assim, você cristal lindo, taça sem bolhinhas de ar, e eu, quase digo pobre de mim, eternamente copo de requeijão.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Pai de verdade


Feche a porta, sente aqui do meu lado.

Prometo que não vou gritar. Vou falar baixo, ao menos dessa vez. Vou modular minha voz, prometo.

Eu não fugi de você, apenas te dei de presente a minha ausência. Sabemos que já fazia muito tempo que minha presença não lhe acrescentava muita coisa.

Tudo bem, você estava grávida e coisa e tal, mas, convenhamos, você ficou melhor sem mim. E tenho certeza que ele é muito melhor pai do que eu teria sido.

Não melhor pau, mas certamente melhor pai.

Crianças precisam de bons exemplos, e para isso eu não sirvo.

Aliás, não sirvo para muita coisa, não sirvo para a maior parte das coisas, mas sirvo menos ainda para bom exemplo.

A menina sabe que ele não é seu pai de verdade?

Melhor assim, nunca conte pra ela. Deixe que ela guarde na memória a imagem de um pai bom caráter, mesmo que esse pai não seja o seu pai de verdade.

Se bem que dizem que pai é quem cria, não é mesmo?

Então pronto, resolvido o problema. Ele é o pai.

Foi ele quem registrou a menina, não é mesmo?

Então pronto, resolvido o problema. Ele é o pai.

Prometo que nunca vou requerer minha paternidade, mesmo que um dia ela ganhe o Big Brother.

Não, não larguei nada daquilo que você não gosta e te fazia sofrer.

Ainda uso aquilo tudo, só que agora em maior quantidade.

Muito obrigado, mas não estou precisando de dinheiro. Não foi por isso que lhe telefonei, não foi por isso que pedi para que você viesse até aqui.

É que tenho andado nervoso, e me lembrei que nada me acalmava mais do que estar perto de você. E, lhe digo, a sensação é boa mesmo. Incrível como mesmo depois de tanto tempo, ficar perto de você continue a me fazer tão bem.

Eu quase fodi com a sua vida, não é mesmo?

Imagino que você deva ter sofrido pra cacete, sofrido pra caralho.

Eu também sofri, acredite. Mas sempre soube que, mais cedo ou mais tarde, você ficaria melhor longe de mim.

Já faz o quê, treze anos?

Ela deve estar enorme!

É parecida com você? Tomara! Mas, caso tenha puxado minhas infelizes características físicas, deixarei um presentinho para que ela possa fazer uma cirurgia e corrigir as orelhas de abano quando lhe parecer conveniente.

Ela não puxou as minhas orelhas? Melhor assim. Poderá fazer melhor uso do meu presentinho.

Bom, eu tenho que ir. Prometo que não vou lhe procurar mais. Deixarei você e sua família viverem em paz, na paz que vocês merecem.

Só peço que você entregue isso a menina, quando ela já tiver idade suficiente para fazer bom uso deste presentinho.

O que é?

Nada demais, um bilhete premiado da loteria. Bastante dinheiro, pode ter certeza. Saque o prêmio e deixe numa conta no banco para ela. Quando ela crescer e puder fazer uso do meu presentinho, diga que foi o padrinho dela que deixou, o padrinho que morreu antes mesmo dela nascer.

É sério, pegue o papel, quando chegar em casa vá na internet e confira, é bastante dinheiro.

Claro que você pode aceitar, permita que eu faça pelo menos uma coisa certa na minha vida.

Não, você não precisa fazer isso, não foi por isso que eu te chamei aqui. Eu não estou comprando mais uma noite ao seu lado. É para a minha filha. Ou melhor, para a sua filha. Para a filha dele. Pai é quem cria, não é mesmo?

É claro que eu adoraria, nunca tive mulher igual a você, de verdade! Tive várias outras antes, durante e depois de você, mas nenhuma sequer parecida.

Que bom que você sente o mesmo em relação a mim. É como eu lhe disse, ele pode até ser melhor pai, não melhor pau.

Bom, já que você insiste, tenhamos agora, depois de mais de treze anos, a nossa noite oficial de despedida.



No dia seguinte ele realmente foi embora e nunca mais voltou.

E não durou muito tempo além daquela noite, eram tantos os seus excessos, que não precisaria ser cartomante para prever o seu desfecho.

O outro, o melhor pai, estranhou as crises de choro que a mulher teve durante semanas, mas que com o passar dos dias acabaram arrefecendo. Dizia que não era nada, era coisa dela, coisa passageira, já, já estaria bem.

Chegou a suspeitar de algo, mas deixou de lado quando soube que sua esposa estava novamente grávida. Grávida de um menino.

Criou-o também como se fosse filho seu. Aliás, este segundo, acreditava realmente que era filho seu.

Sequer estranhou o fato do menino não ter nada de parecido consigo.

E mesmo tendo conhecido o homem anterior da sua esposa, pai verdadeiro das duas crianças, não associou a imagem do menino a dele. Talvez percebesse alguma coisa quando o menino se tornasse maior, pois a semelhança era assombrosa.

Nem mesmo as orelhas grotescas do menino, lhe despertaram qualquer suspeita.

Só estranhou quando, anos mais tarde, a mulher apareceu com um montante absurdo de dinheiro. Mas, mesmo estranhando, ficou feliz por terem recursos para pagar a faculdade de ambos os filhos, encaminhá-los muito bem na vida e, mais do que isso, poderem oferecer ao menino a cirurgia plástica que corrigiria as dimensões desproporcionais de suas orelhas.

Mas o menino nunca quis a cirurgia. Tinha orgulho das orelhas. Não sabia dizer por que, mas orgulhava-se delas como se fossem uma marca só sua, uma herança que, por mais feia que fosse, tinha orgulho de ostentar.

A mãe amava aquelas orelhas obscenas.

E assim, marido e mulher envelheceram juntos, sempre um ao lado do outro.

E em todos os dias da longa vida que teve, ela acordou feliz por saber que tinha escolhido para os filhos o melhor pai.

E em todas as noites da longa vida que teve, ela dormiu triste por saber que tinha abdicado para sempre do melhor pau.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Meu anjo


Impressionar as mulheres, para ele, era fácil. Na sua exagerada auto-confiança embebida em soberba, afirmava para quem quisesse ouvir que não havia mulher capaz de lhe dizer não. Bastava conversar cinco minutos com qualquer mulher que fosse, que saberia o que dizer, como agir, de que modo se comportar. Saberia o que dizer para fazer a mulher pretendida rir, e quando um homem consegue fazer uma mulher rir, o trecho mais tortuoso do percurso da conquista já foi superado. De fato, sua assertividade era assombrosa.

Mas ela era um anjo e, no céu, as conquistas possuem uma mecânica toda própria, diferente daquela que os galanteadores da terra estavam habituados.

E aqui vale uma importante elucidação, a afirmação que diz que os anjos são assexuados, é apenas mais uma das tantas falácias de deus. Os anjos, todos eles, são seres femininos. Até por isso são protetores. Fossem eles masculinos, não se dedicariam com tanto afinco em proteger as almas que deus lhes concedeu a tarefa da vigília. Os homens não se atentam aos detalhes, e proteção exige atenção aos detalhes, caso contrário, no menor descuido as almas desvirtuam-se. E, se mesmo sendo seres femininos existem tantas almas desvirtuadas, é que deus é um cara pão-duro, há eras não abre nova seleção para anjos protetores. Elas, os anjos femininos, estão sobrecarregadas, a demanda por proteção não é compatível à oferta de zelo.

Outra razão para a falácia divina, é que, além de pão-duro, deus é um cara muito ciumento. Afirmar que os anjos não possuem o saudável desejo inerente a todos os seres, é conseqüência da possessividade divina. Ele criou as almas, mas por tê-las criado à sua imagem e semelhança, morre de medo que os seres do céu passem a se interessar mais pelas criaturas do que pelo criador. Assim sendo, contaminou a espécie criada com a ideia do hermafroditismo angelical.

Masculinos, só os arcanjos. Seres responsáveis por promoverem a quantidade medida de desordem no cotidiano do mundo. Cabe a eles causar uma tragédiazinha aqui outra acolá, para que a existência na terra não caia numa modorrenta monotonia.

Anjos enlaçam-se aos arcanjos, e deles nascem os querubins. Estes, responsáveis em desalinhar com maléfico ardil os caminhos do amor.

Pensam os seres da terra que os querubins são os folclóricos cupidos, responsáveis na mitologia humana em fazer com que as pessoas se apaixonem, que as almas gêmeas cruzem umas o caminho das outras.

Ledo engano. A eles, os querubins, cabe descarrilar o trem do bem querer recíproco.

Mas isto são esclarecimentos de ordem científico-celestial, e não é este o mote da narrativa. Voltemos, então, ao cerne da questão.

Eis que ele, o galanteador infalível, saiu de casa para comprar cigarros.

Não gostava de fumar, detestava a fumaça e morria de medo daquele cheiro de nicotina diminuir o impacto do seu perfume amadeirado. Mas tinha para si que o cigarro era ferramenta importantíssima para o figurino de algumas conquistas, conferia-lhe uma virilidade meio bruta e contraventora em tempos politicamente corretos e anti-tabagistas, que certamente serviria de isca para determinados tipos de mulheres.

De tão auto-confiante, vez ou outra era descuidado. Quando atravessou a rua rumo ao boteco onde comprava seus cigarros, por muito pouco não foi atropelado por uma Honda Biz Preta. O impacto na pequena motoneta não o mataria, mas, na queda, estava endereçado ao seu crânio um choque no meio fio, este sim, fatal.

Foi nesta hora que seu anjo feminino da guarda interveio a seu favor. Aí o leitor mais ansioso, deve estar antevendo que seu anjo da guarda feminino puxou-o pelo braço para evitar que o galanteador infalível se chocasse à Honda Biz preta.

Nada disso.

Na verdade, era o anjo quem guiava a pequena motoneta. Ela valia-se daquele veículo para rondar a alma que lhe coubera, pois sabia que se utilizasse suas portentosas asas, chamaria demais a atenção dos ignorantes humanos. Cada anjo escolhe para si o meio de locomoção que lhe parecer mais conveniente. Aquela escolhera a motoneta para zelar por seu protegido.

Ele atravessou a rua desatento, mas ela, por estar com seus celestiais olhos castanhos sempre voltados a ele, teve reflexo suficiente para desviar dele, causando apenas um susto e um tombo que por conseqüência, não trouxe mais do que uns arranhões no peito, outros poucos nos braços e uma dorzinha bem ali, nas costelas.

Todavia, ela parou a motoneta para ver se estava tudo bem com o seu incumbido, e foi no momento em que ela tirou o capacete e deixou à vista daqueles indefesos olhos humanos seus cabelos loiros, que pela primeira vez ele não soube o que dizer diante de uma mulher.

Ela, o anjo, perguntava se ele estava bem desviando o olhar, pois sabia que para os homens da terra seus olhos seriam irresistíveis. Mas, ainda que zonzo pela queda, ele insistia em procurar os olhos castanhos do anjo da guarda feminino, e no segundo em que os olhares se cruzaram, o arrebatamento foi imediato, tanto quanto a ineficácia em buscar palavras que a fizessem apaixonar-se por ele, como era tão fácil fazer com as humanas.

Você está bem? Perguntou ela, Quer que eu chame alguém? Os bombeiros, os médicos, algum familiar?

Uma pizza, disse ele, para em seguida se sentir o mais estúpido dos homens.

Você se machucou e quer uma pizza? Indagou com surpresa o anjo da guarda feminino.

Com você, quero comer uma pizza com você. Vamos?

Ela riu, ele sentiu-se ainda mais idiota. Não bastasse a estupidez do descuido de quase ser atropelado por uma motoneta que mal chega a oitenta quilômetros por hora, ao invés de dizer algo que a impressionasse, o que lhe ocorreu foi uma pizza. Estúpido!

Vamos, disse ela.

Na pizzaria, ela continuava a desviar o olhar, não queria piorar o estrago que já sabia ter feito naquele coração humano e burro.

Sem conseguir olhá-la nos olhos, restava a ele sentir o inebriante perfume que ela exalava, tão puro, tão doce, que lhe furtava o ar que já era pouco, dada a dor que sentia nas costelas em função da queda, cada vez que tentava respirar fundo.

Queria retribuir de alguma maneira a sensação de bem-estar que aquele aroma lhe dava, mas o máximo que conseguiu foi comprar uma rosa embrulhada em papel celofane que uma gordinha ofereceu, uma dessas que invadem restaurantes para atrapalhar – ou, dado o ponto de vista, ajudar - conversas de casais lambuzados de romance.

Mais uma vez se sentiu um cataclísmico imbecil. Ela merecia o mais belo buquê já confeccionado, merecia uma chuva de pétalas de rosa, e ele lhe oferecia uma florzinha mixuruca que não valia os cinco reais cobrados.

Sobrou uma fatia da pizza e, nela, uma apetitosa e gigante azeitona preta que ele estava louco para comer, mas julgou que seria deselegante. Isso, sem contar o fato do gosto e cheiro forte que estas azeitonas têm. Vá que ele desse sorte e conseguisse daqueles lábios angelicais um beijo, e ela não gostasse de azeitonas. Preferiu não arriscar, e deixou que o garçom levasse embora a apetitosa azeitona.

Voltou para casa na garupa da Honda Biz preta, sentindo nos dedos o sabor da pele da cintura dela que segurava para equilibrar-se na motoneta.

Quando chegou à sua casa, no momento em que ela tirou o capacete, puxou-a para perto de si e beijou-a. De início, os dentes esbarraram, algo meio desajeitado, depois, diminuída a pressa do beijo dado de surpresa, a velocidade inicial tornou-se calma, o beijo tornou-se lento, e ele percebeu que por mais bocas que seus lábios tivessem visitado, nenhuma língua tinha aquele sabor. Não era um embate de esgrima o encontro das línguas. Era um carinho recíproco, que tanto lhe afogava de ternura, quanto de um calor incontrolável.

Convidou-a para entrar. Ela, mais uma vez, desviou o olhar. Sorriu e disse que não, embora no fundo, algo inconfessável tentava-a a dizer, Sim, vamos subir, deixe que eu te mostre algo que você jamais vai entender. Mas sabia que a mera cruza de olhares já havia causado um estrago suficientemente avassalador, não precisava fazê-lo sofrer ainda mais, permitindo que ele provasse a totalidade dos sabores dela, sem jamais poder repetir a experiência.

E foi embora batendo suas asas lindas, grandes e brancas, mas o que aparecia aos olhos dele, era a motoneta partindo rumo sabe-se lá para onde.

Nunca mais a encontrou e, do mesmo modo, nunca mais qualquer outra mulher pareceu-lhe interessante. Passou o resto dos seus dias suspirando pelos olhos castanhos que não abandonavam sua memória.

Mesmo com a depressão dele, ela estava radiante de felicidade, pois sabia que, embora ele ainda não tivesse descoberto, ali naquele peito humano habitava um câncer incurável. Para felicidade dela, a morte dele estava marcada para o mesmo período em que se abriria um processo seletivo para novos arcanjos.

Assim que ele chegasse ao Olímpo, ela lhe ajudaria nos estudos, e sendo ele aluno aplicado, passaria no concurso celestial e, aí sim, poderiam passar o resto das suas eternidades juntos, dando vida a uma quantidade infinita de querubins que se divertiriam desalinhando os amores terrenos, enquanto eles deleitar-se-iam para todo sempre naquele amor angelical com gostinho de terra.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Amor bandido


Em sua carta de despedida, Jeremias dizia que escolhera pular da cabeceira da ponte por dois motivos, primeiro que lá é alto pra caralho, não teria a menor chance de sobreviver, segundo, que fora lá que dera o primeiro e único beijo em Consuelo, a balconista da farmácia, seu único e verdadeiro amor.

Jeremias pulou. Pulou e morreu, conforme havia premeditado.

E conforme haviam escrito em sua carta de despedida, fizera tanta merda em vida que sequer passou pelo burocrático julgamento, foi direto para o quinto dos infernos.

Jeremias não acreditava em Deus, logo, não poderia amá-lo sobre todas as coisas.

Jeremias blasfemava, o nome de Deus era nada para ele.

Jeremias festava de segunda a segunda, para ele, não tinha essa de guardar domingos e feriados.

Jeremias crescera num orfanato, não tinha pai e mãe para honrar, quando referia-se a eles, era sempre para desmerecê-los.

A segunda vez em que Jeremias foi para a cadeia, foi por obediência. Um playboyzinho não pagou o que devia para o dono da boca, Jeremias fez o serviço. Deus não se importa com os senões e poréns, só considera quem aperta o gatilho.

Jeremias se casou muitas vezes, e o casamento seguinte era sempre com aquela com quem tinha traído a anterior.

A primeira vez que Jeremias foi para a cadeia, foi por roubar o som de um carro para comprar maconha. Jeremias adorava fumar maconha.

Na terceira vez que foi para a cadeia, Jeremias não entregou o dono da boca. Mais do que isso, disse que o responsável era um outro, um rival do dono da boca.

Jeremias era pobre, mas bonito. Muito bonito. E sabia que sua marginalidade associada a sua beleza, atraía as mulheres. Não foram poucas as amizades perdidas por Jeremias ter dormido com as esposas daqueles que, então, eram seus confidentes.

E, muitas vezes, Jeremias fazia isso por que cobiçava tudo o quanto não tinha.

Por ser sabedor de que transitava diariamente pelo avesso de cada um dos sagrados mandamentos, Jeremias sabia que o inferno era o lar que lhe caberia como derradeira morada.

Mas no dia em que foi à farmácia comprar alguma coisa pra limpar a ferida da bala que lhe acertara de raspão, numa briga qualquer pelo comando da boca mais lucrativa do morro, Jeremias conheceu Consuelo.

Consuelo não era bonita. Tinha a pele marrom, mas não era bronzeada, era um marrom meio sujo. Consuelo tinha os cabelos lambidos, oleosos e as unhas roídas. Mas Consuelo cuidou de Jeremias. Quando percebeu do que se tratava, puxou-o para os fundos da farmácia e cuidou dele de um jeito que ele não merecia. E não aceitou o muito dinheiro que ele lhe ofereceu pelo silêncio dela. Disse que se quisesse contar a alguém, não o teria levado para os fundos da farmácia.

Jeremias se apaixonou por Consuelo.

Jurou-lhe virar um homem direito, largar a boca, o tráfico, as brigas, a bebida, só não o cigarro. De resto, seria homem sério, homem bom, só não deixaria o cigarro. Poderia diminuir de três para dois maços por dia, mas não largaria, e admitir isso era uma prova da sinceridade dos seus sentimentos. Faria carteira de trabalho, seria servente de pedreiro, auxiliar de almoxarifado, frentista, aprenderia mais combinações de letras do que aquelas que resultavam no seu nome.

Mas Consuelo, mulher direita e evangélica, temente a Deus e seus mandamentos, merecedora do Olimpo mais do que a maioria dos mortais, terminou o curativo e disse para ele deixar aquela sandice de lado, ela se casaria em menos de um mês com o filho do pastor.

Jeremias convenceu Consuelo a encontrá-lo na cabeceira da ponte da cidade, ponte enorme, e a esperou com um buquê de flores do campo, era o que dava o dinheiro que tinha no bolso, as rosas estavam um assalto de caras. Jeremias estava barbeado e vestia camisa de botão, abotoada até em cima. Era sua primeira camisa de botão, e quase se sentia bem com ela. A camisa de botão lhe dava a sensação de ser homem de bem.

Quando Consuelo chegou, olhando para os lados com medo de ser reconhecida por alguém e pensarem mal dela, achando que depois de uma vida tão correta, havia tornado-se adúltera, disse que não poderia aceitar as flores, era mulher direita, e aceitar o presente não seria direito.

Jeremias puxou Consuelo e deu-lhe um beijo que, sem querer, ela correspondeu. Em seguida o empurrou e saiu correndo, chorando, culpando-se, julgando-se a maior das pecadoras já nascidas.

No dia seguinte, Jeremias foi à farmácia pedir desculpas à Consuelo. Ela perguntou se ele já tinha lido “O Pequeno Príncipe”. Envergonhado em admitir que não sabia ler, disse que havia lido vários livros, mas aquele não. Ela disse que a frase mais importante do livro, dizia, “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”, e completou, tu me cativou.

Jeremias apenas disse que nunca tinha lido o livro, ficou com medo de admitir o seu analfabetismo.

Na tarde daquele dia, quando um viciado o procurou, ele não cobrou pelas pedras requisitadas, pediu apenas que o vagabundo escrevesse para ele uma carta de despedida. O vagabundo aceitou feliz da vida, e disse, Vai se matar, malandro? E tu não tá se matando, safado? Respondeu Jeremias.

Deixou a carta de despedida embaixo da porta da farmácia e se jogou da ponte.

Quando Consuelo chegou à farmácia, feliz por ter terminado o noivado e pronta para dizer a Jeremias que o ajudaria a mudar de vida, que ficaria ao lado dele para fazer dele homem direito, viu a carta endereçada a ela, a abriu, leu-a e entrou em desespero.

Sabia que pelos tantos pecados, somados ao suicídio, só o inferno estaria guardado a Jeremias.

Tomada pela dor do amor perdido, Consuelo entrou gritando no meio do culto, mandando todos às putas que lhes pariu, falando que Deus é o caralho, que todos tinham mais é que se foder. Roubou a cestinha onde os pobres da comunidade depositavam em envelopes o dinheiro que lhes faltaria para por uma comida um pouco mais decente à mesa das suas famílias. Roubou e saiu correndo. Foi à casa dos seus pais e mandou-lhes a merda. A irmã, que jantava na casa dos pais, Consuelo disse que tinha muita inveja da casa própria que ela já tinha. E falou para todos ao redor da mesa que o Deus que eles adoravam era um filho da puta do caralho. Palavras de Consuelo.

Depois saiu correndo rumo ao centro da cidade, chegou à cabeceira da ponte, lembrou do beijo e caiu num pranto avassalador. Em seguida, atirou-se da ponte, tal qual fez Jeremias.

Quando chegou para o seu julgamento, Deus disse-lhe que a perdoaria pelas faltas recém feitas, pois sabia tê-las feito num momento impensado, de desespero, que sempre fora pessoa boa e reta, não seria o deslize final que a condenaria as chamas infindas.

Consuelo ficou possessa, e disse, Vai tomar no olho do teu cu santo do caralho, seu Deus de merda, eu quero ir para a porra do inferno.

Deus ficou puto. Sem dizer nada, com um único gesto fez com que Consuelo descesse direto às profundezas.

Jeremias gemia de dor no mar de lava do Diabo, mas quando viu a porta se abrir e por ela passar Consuelo, que ao avistá-lo abriu um sorriso lindo, que fazia cessar qualquer espécie de dor e sofrimento, Jeremias olhou para ela e disse, O que tu tá fazendo aqui, Consuelo? Você não me esperou lá, vim aqui pra ficar contigo, te amo, porra. Te falei que tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas, vim pra cá para que possas tomar conta daquilo que te tornaste responsável, disse Consuelo. Jeremias sorriu e disse, Não sei o que isso aí quer dizer, mas tô feliz pra caralho de te ver aqui do meu lado, Eu vim só pra ficar do teu lado, Até o inferno é lugar bom, se tu ficar do meu lado, disse Jeremias.

E assim, mesmo sofrendo pra cacete no quinto dos infernos, eles foram felizes para sempre.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Last Kiss, ou, O homem que amava mulheres pequenas


Mesmo acostumado a chorar por mulheres pequenas que o abandonavam relacionamento após relacionamento, aquele abandono era diferente.

Tinha sono, mas não queria dormir. Não naquela noite.

Ela já havia mergulhado há horas no seu sono profundo e indiferente ao barulho da televisão.

Permanecia na casa mais por caridade do que por qualquer outra coisa, mas o prazo para recolher suas coisas e ir morar noutro lugar esgotava naquela noite.

Tivera insônia tantas vezes, por que justo naquela noite em que ele pretendia passar cada segundo contemplando-a, o sono resolveu dar as caras?

Cada vez que a cabeça pendia com força pra baixo, com os olhos traidores insistindo em fechar, levantava-se, ia até a geladeira e abria outra cerveja. Era a sétima longneck até então.

Em cada uma destas vezes, parava em frente à porta do quarto para vê-la dormindo. Que cena...

Em cada uma destas vezes, segurava o choro que vinha ao vê-la deitada sem poder se aninhar ao seu lado, e voltava ao sofá para deixar o choro lavar sua barba rala. Continha o soluço, não queria admitir o desespero que o possuíra como um demônio faminto, por saber que a partir de amanhã já não poderia gastar seus anos fazendo as vontades dela, fossem quais fossem.

Sempre teve um fraco por mulheres pequenas, delicadas. Encantavam-lhes os pés pequenos, as mãos pequenas, e nela tudo parecia ainda menor, de tão delicado que era cada milímetro que a compunha.

Calçou o all star velho sem pressa, pegou a caixa de papelão onde estavam seus discos e livros, e, com a lentidão de um acorrentado, desceu as escadas para acomodá-la no porta-malas do carro, ao lado da outra que continha suas roupas.

Voltou ao apartamento, voltou à cozinha, abriu a oitava Stella e tomou-a toda num só gole, iluminado pela porta aberta da geladeira como o artista em fim de carreira no centro de um palco escuro sem plateia, iluminado por um canhão de luz amarela. Limpou o bigode na manga da camisa xadrez, pegou mais quatro garrafas para ter companhia na viagem e voltou à porta do quarto dela.

Sabia que ela tinha o sono pesado. Aproximou-se devagar, acariciou-lhe as mãos pequenas, o rosto, inclinou-se e beijou-lhe muito de leve a testa. Nem quando fez naqueles cabelos macios um último afago, ela se mexeu. Só mostrou alguma reação instintiva, quando o gelado de uma lágrima fujona escapou dos olhos dele com destino a bochecha dela.

Fechou a porta devagar, entrou no carro, e dirigiu sem reconhecer nenhuma das ruas por onde rodava gastando a pouca gasolina, como se a cidade em que nascera e vivera desde sempre, sem ela, tornara-se um lugar estranho, desconhecido.

Desde o início a mulher fora clara, o fim do seu casamento era história mal resolvida, complicada de lidar. E a sombra do ex-marido pairava sobre eles como uma nuvem pesada, gorda e preta, só esperando o momento certo para fazer despencar o temporal guardado.

Mas estavam juntos já fazia sete meses, e da separação da mulher, fazia mais de ano.

Quando ele, o ex-marido, acenara com a intenção de um recomeço, ela não pensou duas vezes e mandou que arrumasse suas coisas e saísse de vez da vida dela.

Na verdade, estava pouco se fodendo para a mulher. Em poucas semanas de convivência descobrira que ela não era lá grande coisa.

A dor que o incinerava por dentro, era saber que quando grande, por mais que ele jamais viesse a se esquecer dela, a menina nem se lembraria dele. E imaginou tantas vezes que em mais dois ou três meses ela já estaria dando seus primeiros passinhos, dizendo suas primeiras palavrinhas e, provavelmente, uma delas seria “papai”, apontando para ele os dedinhos da mão pequena quando o visse chegando em casa.

Mas agora seria o outro, o filho da puta do ex-marido que seria chamado de papai pela pequena. Talvez ela jamais venha a saber que o filho da puta do marido ganhara o prefixo “ex”, exatamente quando descobriu que a mulher estava grávida, acusando-a de ter engravidado apenas para tentar salvar um casamento considerado por ele acabado, recusando estupidamente a delícia de conviver com aquela coisinha pequena e sorridente.

No auge do desespero, pensou até em raptá-la. Tinha certeza que, sozinho, seria melhor pai e mãe do que aquele casal de merda.

Mas desistiu da ideia por medo de causar na menina algum trauma, detestaria ser o motivo de algum sofrimento para aquela que tanto amava. Abriu mais uma cerveja e aceitou a sina que lhe coubera nesta vida, de chorar indefinidamente por mulheres pequenas, mas sabendo que, de todas, nenhuma seria igual àquela.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Esse seu olhar


Olha, se eu pudesse voltar atrás, não teria dito tudo aquilo. É que eu achei que você estava tirando sarro da minha cara, por que convenhamos, você chegou pra mim dizendo que estava interessada e tal, que me achava um cara bacana, até aí, tudo bem. O problema foi o que você falou depois, achei que estavas brincando comigo,aí eu fiquei puto e te mandei a merda, te mandei a puta que o pariu, te mandei tomar no cu e mais aquele monte de delicadezas que costumo guardar só para os juízes que apitam os jogos do meu time. Não que eu não gostasse de você. Na verdade, eu estava louco por você, faria qualquer merda por você. Faria serenata, te mandaria um carro de tele-mensagem, colocaria uma faixa no viaduto perto da tua casa com nossos nomes dentro dum coração com uma flecha atravessada, alugaria um helicóptero e faria chover pétalas de rosa sobre a tua casa, num dia em que o vento sul desse um tempinho, sei lá, qualquer merda que fizesse você ficar sensibilizada com o que eu estava sentindo, eu faria. Se você dissesse que não gostava muito de mim, mas daria uma chance para eu te provar que era um cara legal, eu teria aceitado, teria tentado. Se você dissesse que meu perfume te deixava enjoada, eu compraria outro. Se você dissesse que é por que eu não gosto de sertanejo, eu compraria um chapéu com medalhinha da Nossa Senhora Aparecida e tudo. Compraria um par de botas, aprenderia a dançar vanerão, o que fosse. Eu estava louco por você, louco, maluco. Aí você chorou, eu fui embora, chorei também, fiquei magoado pra cacete, mas o tempo passou, você casou, eu casei, nos separamos, nos casamos de novo com outras pessoas, tivemos filhos com outras pessoas, e eis que tua mãe aparece no meu consultório e conversa vai, conversa vem, começamos a lembrar do passado e ela me diz que você de fato me amava, que demorou meses para superar minha enxurrada de desaforos, que não saía do quarto, que mal comia, que não saía mais com suas amigas, ficava só abraçada no seu travesseiro ouvindo Tom Jobim mesmo sem gostar, só por que sabia que eu gostava, sempre a mesma música, e só muito tempo depois resolveu me esquecer e tocar a vida pra frente. Porra, eu também sofri pra cacete, fiquei mal, muito mal mesmo, enchia a cara todo dia, quase que fui jubilado da faculdade de medicina de tanto que eu chorava por sua causa, por causa do meu orgulho ferido. Você podia ter me dito qualquer coisa que eu teria aceitado, qualquer coisa. Mas quando você me disse que o que te encantava era o meu olhar, eu fiquei puto, achei que você estava tirando sarro da minha cara. Eu sou vesgo, caralho!

quarta-feira, 16 de março de 2011

O Samurai


Igual a um amputado que sente coceiras no membro que já não tem, ao chegar, sua alma ainda sentia as dores do acidente que despedaçara seu corpo. Ainda estava confuso, mas já imaginando do que se tratava a cena armada ao seu redor.

Sente-se ali, disse a voz grave que vinha do centro da cena armada.

Me dá um cigarro, respondeu a alma, girando o ombro esquerdo pra trás, tentando aliviar a dor que não se desprendia.

Aqui não se fuma.

Ouvi dizer. Não se trepa também, né? Vidinha de merda, essa eterna.

Sugiro um pouco mais de cuidado na escolha das palavras, esse não é exatamente um vocabulário adequado para quem está prestes a ser julgado.

A alma fez o mesmo esforço que o corpo fazia há minutos atrás para abrir os pequenos olhos puxados que mostravam-lhe as coisas do mundo para fitar os olhos da voz grave, e olhando-os, deu um sorriso de desdém.

Não é prudente me olhar, e você sabe disso.

Vai fazer o quê? Me matar? Já estou morto. Você não sabe tudo? Deve saber disso também. Talvez não seja prudente para você, me olhar com esse ar de superioridade. Sou – ou fui – oriental, os orientais são bons nas artes marciais e você sabe disso.

Eu sei de tudo.

Sabe porra nenhuma.

Seu caso só vai se agravando com essa sua atitude.

Minhas atitudes não são nada perto das suas.

O medo deste momento é mais comum, mas a raiva não chega a ser uma coisa rara. Apesar de você saber, ira é pecado.

Não se trata de raiva, ira ou seja lá o que for. Não estou revoltado. Na verdade, eu queria isso há mais tempo. Você sabe que eu já tentei me matar, queria ter vindo antes te encarar de frente, só para você saber que pelo menos algum dos idiotas lá de baixo não tem medo de você. Quem você pensa que é para julgar os outros?

Eu sou o que tudo criou.

O que você criou é um monte de merda. Você criou um monte de gente ruim que vive num mundo mal acabado e que está cagando e andando para quem está ao seu lado. O que você criou é a sua imagem e semelhança.

Você foi um péssimo pai. Poderia ter ajudado o seu filho quando ele passou por necessidade, tinha condições para isso. Ele só queria um pouco de dinheiro para dar entrada num apartamento de dois quartos e poder ter um lar para criar um filho com a sua esposa. Você tinha esse dinheiro sobrando, não deu por que não quis. Avareza é pecado.

Mas não matei nenhum dos meus filhos. E jamais os expulsaria de casa por terem pego uma maçã sem me pedir.

Você foi um péssimo marido.

Mas me casei e, algumas vezes, a fiz feliz. Muito feliz. Você não sabe tudo? Deve saber disso também.

Você traiu a sua mulher e, mais do que isso, contava para todos os seus amigos suas aventuras amorosas como se isso fosse merecedor de crédito, de louvores. Orgulho é pecado.

Mas nunca engravidei a mulher dos outros para depois escrever um livro sobre isso, dizendo que esse livro é o guia da moral e dos bons costumes. Não deixaria meu filho para que o marido corno o criasse. Pior, se tivesse feito isso, quando aparecesse seria para pagar pensão, não para crucificá-lo.

E não foi uma vez só que você a traiu, você era promíscuo, sujo. Luxúria é pecado.

Sujo? Fico admirado de esta sua túnica ser tão branquinha. Deve ser ótimo o alvejante que se usa por aqui. Tanta carnificina e nem uma gotinha de sangue nessa túnica. Você diz isso por que, até onde se sabe, só comeu uma virgenzinha de dezesseis anos. Você deve ser broxa, qualquer um fica de pau duro com uma menina de dezesseis anos. Quero ver ficar a vida inteira, mais de trinta anos do lado da mesma mulher e ser fiel a ela.

Você bebia demais. Gula é pecado.

E isso que eu não sabia multiplicar o vinho. Imagina se soubesse...

Você mentiu para seu melhor amigo, para quem mais confiava em você. Você corrompeu a mulher dele. Você roubou a TV à cabo dele. Você arranhou a lataria do carro importado dele. Inveja é pecado.

Não se trata de corromper a mulher dele. Acontece que nem todo japonês tem pau pequeno. Você não sabe tudo? Deve saber disso também. Mas ele tinha, eu não. A mulher dele merecia um pouco de felicidade. Uma gozadinha na vida, que fosse. Mas foram mais. Você não sabe tudo? Deve saber disso também. Mas, se tratando de confiança, nunca pedi para que ele matasse o seu filho por mim.

Você poderia ter sido demitido por desídia, nunca fez seu trabalho direito, sempre prorrogando prazos, comprando atestados para ficar em casa, inventando mortes na família para não precisar ir trabalhar. Preguiça é pecado.

Não me parece uma acusação válida vinda de quem trabalhou seis dias e passou o resto da eternidade coçando o saco.

Você está condenado, vai para o inferno.

Foda-se. Só não te mando para o inferno também, para não precisar te encontrar por lá.

Você vai arder no fogo, no enxofre.

Não deve ser pior do que não saber de onde tirar dinheiro para pagar o financiamento da casa, a fatura do cartão de crédito, escolher entre atrasar o telefone ou a luz, aguentar um imbecil que sabe um terço do que você sabe, e ganha quatro vezes mais do que você.

Você não merece a minha bondade, o meu perdão.

Já tive dose suficiente de coisas vindas de ti, não quero mais nada. Mas, te aviso, não sou só eu que se deu conta da sua farsa. De onde eu vim, a gente costuma estar um passo a frente do resto do mundo, e não digo isso só na tecnologia, mas no raciocínio de um modo geral, na percepção das coisas ao nosso redor. Posso até ter sido o primeiro, mas não serei o último a te confrontar, a confrontar a fraqueza dos teus argumentos. Na minha terra somos todos samurais, preferimos ser condenados com honra, do que viver sem ela.

Levem-no pra fora, levem-no pra baixo. Agora!

A alma, que ainda sentia as dores do acidente de carro, desceu ao inferno gargalhando por saber que em pouco tempo outros mais o confrontariam.

Preocupado com a possibilidade de ver ruir em ideias humanas todo o trabalho que tivera em camuflar suas malvadezas divinas sob a égide de pecados superficiais, no dia seguinte, deus deu ordens expressas para que seu exército de arcanjos sanguinários tomassem as providências necessárias para que ninguém mais além das fronteiras onde vivia aquele que o afrontara, alimentasse pensamentos iguais aos dele. E foi tão repentina a ação, que mesmo preparados, só conseguiram fazer soar o alarme um minuto antes da tragédia. Insuficiente.

E do alto do seu trono iluminado e branco, fez que um terremoto de proporções apocalípticas, seguido por uma onda gigante, engolisse todo o Japão.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Cicatriz


Não é engraçado?

Mal nos conhecemos, já nos amamos e já estamos em crise.

Não é engraçado?

E isso que não tenho Facebook.

Poderia postar fotos minhas fumando, bebendo, poderia postar fotos minhas tiradas por ti, com legendas que só nós dois entenderíamos. Eu sonho com fotos minhas tiradas por ti. Espero de verdade poder tirá-las.

E talvez já seja até uma cicatriz. Não a maior, não a melhor, mas acredito que também não a menor.

Pois você está sozinha, e dos cortes que acontecem quando estamos sozinhos, mesmo quando pequenos, guardamos as marcas com mais carinho.

Talvez seja exatamente por não nos conhecermos tão bem, que não compreendamos os motivos das nossas ausências. Talvez seja pela nossa solidão. Talvez a solidão, que dói mesmo quando é boa, faz o outro, ainda que longe, parecer um oásis tão bonito.

Nenhum de nós é bonito.

Quase nunca somos oásis.

Quase sempre somos deserto.

E é bastante provável que o que nos una tão fortemente seja essa sensação de oásis que um representa ao outro.

Mas, de um modo geral, oásis quase sempre é miragem. Não gostaria de ser apenas miragem.

Prefiro ser cicatriz. Ela é real.

Deixe ao menos gravar a marca das minhas mãos no teu pescoço.

Não quero te matar, mas quero te deixar um pouquinho sem ar.

Quero te dar um tapa.

Quero ver a marca vermelha dos meus dedos espalmados na tua bunda branca.

Ainda que em dois dias suma, quero a marca das tuas unhas nas minhas costas.

Por favor, não roa suas unhas.

E talvez não meta com força suficiente para te fazer feliz. Talvez sim. Mas com as mãos no teu pescoço talvez seja alguma maneira de te deixar sem ar por minha causa.

Que seja assim, então.

Prometo não te matar.

Prometo fazer o meu melhor para que gozemos juntos.

Talvez não seja o bastante, mas farei o meu melhor, eu garanto.

E talvez você goste da ideia de tirar fotos minhas, fumando, bebendo, pelado só do tronco pra cima, para que os outros vejam minhas tatuagens, mas que só você saiba que eu estava pelado naquela hora.

E talvez eu crie uma conta no Facebook para postá-las, para criar legendas que só nós dois entenderemos.

Mas, para que me torne cicatriz, permita-me ao menos te fazer sangrar.

São essas as cicatrizes que valem a pena.

Como o desenho que fica depois da agulha do tatuador. O resultado é sempre uma cicatriz que vale a pena. Mesmo quando feia.

É essa a cicatriz que eu quero ser, ainda que feia.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Tudo acaba em pizza. Ou não.


Sentado na mesa de plástico do bar vendo um bando de velhos jogando dominó e rindo sem eles mesmos saberem do quê, tentava lembrar por que raios fora tão descuidado. Por qual maldito motivo aceitara para si mesmo que paixão era coisinha de adolescente, que depois de certa idade todos, homens e mulheres, tornam-se imunes àquele sentimento esquisito, trocando os suspiros que tanto se suspira no início da puberdade, pela escolha do par ideal balizada em afinidades e preferências equivalentes.

E suspirou lembrando dos olhos castanhos dela. Intensos, profundos e puros.

Um alguém desimportante parou ao seu lado, abriu uma mochila e lhe ofereceu filmes pirateados. Tinha de tudo, das últimas novidades recém chegadas aos cartazes dos cinemas, aos pornôs mais inimagináveis, de tão bizarras as combinações. Não, obrigado, ele respondeu para em seguida dizer, Sim, obrigado, ao garçom que lhe acenava com mais uma garrafa de cerveja.

E suspirou pensando em qual tipo de filme ela deveria gostar. Acho que comédias bobinhas, disse para si mesmo. Um romancezinho água com açúcar, talvez. Dublados, provavelmente. Deve ficar linda gargalhando num filme besta qualquer. Depois sentiu-se culpado por menosprezar as preferências dela. Vá que ela gostasse dos franceses, dos italianos. Vá que ela tenha um cartaz de algum Almodóvar na parede do quarto. Não deveria ter, seria perfeita demais.

O beijo indevido que lhe dera, sem que ela esperasse por aquele gesto e que retribuíra meio sem jeito, talvez pelo risco do local, do flagra, causara um estrago muito maior nele do que nela. Provavelmente, nela só tenha causado espanto. Nele, encanto.

Depois do beijo, deixou um bilhete de letras apressadas dizendo, Que tal uma pizza hoje a noite? Ela ficou linda com o rosto vermelho da timidez delatora, e instintivamente pensou que ela ficaria linda de lingerie vermelha, com aquela pele tão branquinha... Ela não disse nada, mas fez que sim com a cabeça.

Era tanta coisa importante que ele tinha pra pensar naquele momento, mas nenhuma delas capaz de se sobrepor a euforia pelo sim silencioso que ela lhe presenteara, que lhe dava vontade de abraçá-la, de gritar, de pegá-la no colo, de beijá-la de novo, agora na frente de todo mundo, com mais calma, do jeito que ela merecia, com o tempo medido para que se desprendesse daqueles lábios lindos e bem desenhados o sabor que ele sonhava há tanto tempo provar. E só conseguia pensar se aquela camisa que gostava estava limpa, será que tinha incluído ela na última maquinada de roupas que vencera a preguiça que ele sempre cultivara? Ainda que não fosse lá muito bonito, queria estar ao menos arrumado. Queria estar cheiroso. Queria saber o que dizer. Queria saber o jeito certo de se comportar para impressioná-la. Queria que ela gostasse do homem que veria. Queria estar parecido com o homem que ela sempre sonhara em ter. Queria ouvi-la dizer, Sim, eu também sinto o mesmo, foda-se o resto, fodam-se os outros, fiquemos juntos, oras.

Passados bem poucos minutos depois desse turbilhão de pensamentos , ele recebeu também um bilhete dela, agora virtual, na tela do computador, dizendo que havia se esquecido, que marcara há dias com as meninas de sair com elas. Não tinhas desculpas para desmarcar agora. Dizia com uma delicadeza buscando oferecer algum consolo, que talvez houvessem outras oportunidades. No futuro ela estaria presente, dizia o bilhete virtual.

Desligou o que havia para ser desligado, sorriu para ela um sorriso meio sem graça de compreensão frustrada, um sorriso um tantinho triste, e foi-se embora. Foi para o bar, observar os velhos jogarem dominó e rirem dos motivos que não conheciam. Foi beber, não para esquecer, mas para lembrar dela com a leveza que o álcool traz. Foi fumar os cigarros que ela não sabia que ele fumava. Talvez desconfiasse, mas certeza não tinha.

Desligou seu celular, já que não receberia um telefonema dela dizendo, Estou pronta, pode vir me buscar. Não tinha outro telefonema que lhe interessasse.

Quando terminou aquela cerveja que o garçom lhe oferecera há minutos, depois da recusa aos filmes piratas, percebeu ao ridículo a que se prestara. Não era o tipo de homem que ela gostava, por mais que se esforçasse em se tornar um homem do agrado dela, dificilmente viria a se tornar tal homem.

Voltou para a casa que sua irmã lhe emprestava por caridade, dada a dificuldade financeira pela qual passava, com dinheiro suficiente apenas para pagar uma pizza à mulher que há algumas semanas passara a amar desmesuradamente, arrumou seus poucos pertences numa mochila velha, e resolveu aceitar o convite do seu melhor amigo de montarem cada um na sua moto, deixar tudo pra trás e seguirem rumo a Goiás, à Bahia ao Chile. Que fique pra trás o que o retrovisor mostrar. Sem ela, nada daquilo lhe interessava. Como não a teria, foda-se o retrovisor.

Foi embora e nunca mais teve notícias dela. Passou o resto dos dias lembrando da intensidade daqueles olhos castanhos, de como adoraria ter tido uma filha com a mão delicada e pequena igual a dela, que algumas vezes ele alisara fingindo ser de brincadeira, em como prestava atenção nas curvas dela cada vez que ela mostrava-se de costas à ele, em como o sorriso dela fazia os seus dias valerem a pena.

O que ele nunca soube, é que segundos após ter desligado o celular, ela ligou de volta para dizer que havia desmarcado o encontro com as meninas, e que estaria disposta a todas as reprovações pelas quais certamente passaria para ficar ao lado dele. Que apesar das inúmeras diferenças, estava disposta a superá-las todas para ter um filho com os olhos dele, com as mãos firmes dele, com o sorriso amarelado pela nicotina mal disfarçada dele.

Mas ele foi embora.

Ela pensou que ele não havia gostado do beijo, do gosto dos seus lábios.

As noites todas depois da partida, ele dormiu rememorando aquele beijo desajeitado, o gosto daqueles lábios pequenos. Mas, disso, ela nunca soube.

Passado o tempo, ela casou com outro e foi feliz. Mas todas as noites após o beijo, ela dormiu pensando em qual sabor teria sido a pizza escolhida por ele. Seria quatro queijos, a preferida dela?

Ele nunca mais comeu pizza.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Que maraviiiiilha, chegou o carnaval!!!! (estou indo deitar, por favor, só me acordem na quarta-feira de cinzas)


Aaaaahhhh moleeeeque...
Tá bonito de ver
Todo mundo sambando
Batendo na palminha da mão
Vai, vai, vai, vai!
Chora, chooooooraaaaa cavaaaaaco!!!
Se orguuuuuulhaaaaa comunidade que essa é tua escoooola, esse é teu barraaaacããããoooo!!!

Para aproveitar o espírito carnavalesco que paira no ar, vamos a algumas análises importantíssimas sobre as festividades de Momo para que você não faça feio neste carnaval.

Dos Sambas-Enredo:

Um samba enredo só é bom de verdade se o título do samba for maior do que a própria letra do samba-enredo, por exemplo: “Saravá meu pai Ogum-megê: As aventuras brasileiras sobre a ritualidade mística da influência da África setentrional na égide dos orixás e entidades do candomblé de raiz na batuta do Babalorixá Pai Cleosvaldo do terreiro de Feira de Santana até Biguaçu, passando por Guaxupé e Iomerê”

Um título desses é sucesso garantido na avenida!

Dos carnavalescos:

Carnavalesco que é carnavalesco viaja o mundo, não importa o tema, ele viaja pelo mundo, mais especificamente pela África, Ásia e um tatinho da Europa. Se o tema do samba enredo é a favela da rocinha, por exemplo, o Carnavalesco vai explicar: “Nossa escola esse ano na avenida vai explicar a importância da favela da Rocinha na cultura brasileira, fazendo uma viagem pela África, passando por Egito, buscando na cultura grega e romana com um pouco da magia Indiana, sobrevoando Vigário Geral e favela da Dona Marta até chegar na Rocinha.”
Se o tema for Futebol, a explicação: “Vamos falar da magia do futebol para o brasileiro, iniciando por uma viagem mística na África, passando pelo Egito, pedindo as bênçãos dos deuses gregos, brindando com a magia da Índia até chegar aos gramados do Brasil.”
Resumindo, não interessa o assunto, sempre vai ter alguma coisa no desfile falando da África, da Ásia, do Egito, da Grécia. Ao mesmo tempo.

Das madrinhas de bateria:

Todas elas nasceram na comunidade. Mesmo quando são gaúchas, e a comunidade fica em Vila Isabel. Elas cresceram no barracão da escola, e ai de quem contestar!

Das passistas:

Para que uma mulher seja aprovada como passista, saber sambar é supérfluo, desnecessário. Importante mesmo é ter em seu currículo um atestado que comprove a sua condição de sub-celebridade semi-esquecida. Pode ser algo como ter ficado dançando no fundo do cenário num episódio da turma do Didi, enquanto o Didi derrubava um balde de água na cabeça do Jacaré. Hoje em dia isso já é notoriedade suficiente para se conseguir um bom posto de passista. Ex-BBB’s têm na avenida uma boa possibilidade de dar um último suspiro de fama, uma última tentativa de diferenciar-se da gigantesca massa anônima da qual sempre fizeram parte, e de onde nunca deveriam ter saído. Numa dessas até descolam um novo ensaio em revistas de mulher pelada, mas é preciso cuidar na escolha da fantasia. Ela tem que mostrar o suficiente para que dê vontade de ver mais, mas não pode mostrar demais, a ponto de já ter aparecido tudo o que tinha para ser visto.

Das fantasias:

Toda fantasia é cheia de significado. Uma mulher vai aparecer na televisão explicando que a sua fantasia representa a Rainha Elizabete, numa concepção africana com a benção dos faraós egípcios chegando à Inglaterra onde Charles Muller idealizou o futebol, tema do samba enredo. Você olha para a tal mulher enfiada na fantasia, e percebe que a fantasia se resume à um punhado de lantejoulas. Nas sandálias.
Só nas sandálias.
E talvez você se pergunte: “quando foi que a Rainha Elizabete saiu por aí vestindo apenas uma sandália cravejada de lantejoulas?” E vai ficar feliz, por não se lembrar de tal ocasião.
Comentário bastante comum, também, é essas sub-celebridades sem-esquecidas aparecerem uma semana antes do carnaval em um desses programas de fofocas do meio da tarde, dizendo que neste ano vai utilizar uma fantasia linda, inovadora, muito rica, que vai surpreender pelo luxo, e quando você vê a tal da fantasia ela se resume à um penacho na cabeça, e só. Um luxo!

Das baterias:

Bateria que se preze tem nome. Furiosa, Raivosa, Poderosa, Indecorosa, Glamurosa, enfim, algum adjetivo dessa natureza que imponha poder ou luxo aos batuqueiros. No meio do desfile, no auge do sambão, vão dar um jeito de enfiar uma paradinha para em seguida fazer uma batida de funk nos tamburins. Todas farão isso!
Há, inclusive, quem denfenda a paradinha-funk da bateria como um dos quesitos de avaliação dos jurados.

Dos Carros alegóricos:

A equipe de carnavalescos passa o ano inteiro planejando a porra do carnaval, mas vai ter um estúpido de um estagiário, que não vai atentar ao pequeno detalhe da altura dos carros, e quando estes chegarem à Avenida, um deles, provavelmente o principal, não vai conseguir entrar pois não passará pelo portal, de tão alto que é o pescoço da girafa no centro do carro. Aí vai ser aquele afobamento diante das câmeras de televisão, a velha guarda-chorando, presidente da escola em desespero, suando como o diabo dentro do seu terno branco e embaixo do chapéu Panamá, um furdunço danado para tentar desmontar o pescoço da girafa que mostra a influência da África e seus orixás no sotaque mineiro (essas equações que só carnavalescos são capazes de criar, justificar e compreender), para em seguida montar tudo novamente dentro do tempo mínimo. Vão conseguir, mas na hora de entrar na avenida, o eixo do carro vai quebrar. Uma legião de guerreiros vão sustentar o carro nos ombros e vão terminar o desfile lavados pelo próprio sangue, mas felizes por terem se sacrificado pelas suas escolas.

Enfim, seguindo estas premissas, é bem provável que você faça muito sucesso no carnaval de 2011, caso você não queira participar, pelo menos irá entendê-lo melhor.

Valeeeeeu comunidaaaaaade!!!

PS 01: Publiquei este mesmo texto no carnaval do ano passado, o que não significa que esteja sem criatividade. Mas como a consciência sócio ambiental está na moda, resolvi reciclar este texto por fins exclusivamente de responsabilidade social.

PS 02: O vídeo abaixo é uma generosa contribuição/sugestão do meu querido amigo Rodrigo Daca, um folião de mão cheia que quando o carnaval se aproxima, já vai dois meses antes a Bahia para começar o esquenta atrás de algum trio-elétrico, e só volta a realidade depois da Páscoa. Como gosta de carnaval, esse cara!

quarta-feira, 2 de março de 2011

Até que a morte os separe


A noite passada foi a mais triste da vida dele.

Apesar das determinações expressas de que não poderia entrar naquele espaço do hospital, o médico que acompanhara ele e sua esposa durante mais da metade da vida de ambos, e que até por isso conhecia de perto a história de amor que haviam construído, deixou de lado as tais ordens e permitiu que ele entrasse na sala fria da UTI, onde oito pessoas nuas e semi-mortas faziam-se companhia inconscientemente, para que na sétima cama pudesse passar mais uma vez suas mãos antigas sobre os cabelos brancos da esposa, e beijar-lhe a testa uma vez mais.

Apesar de já caminhar pela segunda metade dos oitenta anos, ainda eram muito firmes os seus passos. Mas ao ver sua companheira de tantas estações ali naquela sala que nada tinha da alegria que ela sempre exalou, precisou apoiar-se no braço do médico amigo para que a fraqueza intuitiva de suas pernas não o derrubasse no chão.

Eu que deveria estar alimentando ela, não estas sondas, disse para o médico enquanto desviava sua mão antiga dos vários tubos que trabalhavam dedicadamente noite e dia para mantê-la viva, não cozinho muito bem, mas ela adora a sopinha que eu faço. Talvez não goste, eu sei que não é lá grande coisa, mas ela sempre disse que adora a minha sopinha. Sopinha é bom para doente, não é doutor? Eu faria para ela a melhor sopinha que ela já tomou na vida. Por que a vida passa tão rápido, doutor?

Emocionado, o médico buscou uma cadeira para que ele pudesse se sentar ao lado dela por alguns minutos. Pela experiência que o exercício da medicina lhe dera, sabia que eram ínfimas as chances do trabalho dos dedicados tubos surtir efeito por mais uma noite além daquela.

Sentou-se ao lado da esposa e com muito cuidado, passou delicadamente o dedo sobre a mão que parecia indiferente ao carinho.

Lembrou do dia de muitas décadas atrás, quando encheu-se de coragem para ir até a casa dos pais dela e, muito sem jeito, disse para o pai da namorada, Deixa eu casar com a sua filha? Prometo fazê-la feliz pra diabo. O sogro, que na época já gostava dele, riu da maneira desajeitada que ele tentava encontrar para deixar claro o amor que sentia pela sua filha, abraçou-o e disse, Bem-vindo à família.

Nem mesmo as eventuais ausências do ansiado dinheiro foi capaz de fraquejar aquele amor tão grande, como costuma acontecer aos casais comuns. Aquele nunca fora um amor comum. Foram de uma cumplicidade e companheirismo raros, se é que em algum momento tenha havido outro parecido.

Cumpriram a risca cada frase do juramento feito diante do padre, e agora a morte se aproximava deles para separá-los e exigir o cumprimento da promessa feita, como se fosse uma praga rogada pelo sacristão.

Precisamos sair daqui, disse o médico, logo chega o outro plantonista e eu posso me complicar se ele souber que permiti a sua entrada.

Ele aproximou-se do ouvido da esposa inconsciente, e disse com a voz trêmula, Na estante da nossa casa tem sete porta-retratos, cada um deles com uma foto nossa, abraçados, segurando cada um dos nossos netos nos dias em que nasceram. Daqui a menos de um mês, deve nascer a nossa oitava netinha. Ela vai receber o seu nome... Respirou fundo para não desabar em prantos, ergueu os óculos, passou a mão sobre os olhos cansados, represas ineficientes à força das lágrimas, e continuou com a voz ainda mais embargada, mas num volume que só ela poderia ouvir, Eu não quero segurar nossa netinha sozinho, fica mais um pouco comigo, por favor... Para os meninos eu sempre fiz brinquedinhos de madeira, mas é você quem faz as bonecas de pano para nossas netinhas. Fica mais um pouco comigo, por favor... Só mais essa foto comigo, por favor...

Vocês tiveram uma vida linda, arranje a força que agora lhe falta nas lembranças boas que vocês construíram, e eu sei que lembranças boas são o que vocês mais proporcionaram um ao outro, disse em tom de consolo o médico amigo, enquanto acompanhava-o até a saída do hospital.

Caminhando com passos demorados para chegar à casa que parecia enorme desde que ela mudara-se contra a vontade para o leito do hospital, viu na praça do bairro um casal jovem se beijando num dos bancos. Sentou em outro, e permitiu que seus olhos cansados trouxessem à face o choro que continha a semanas. Ele tremia de tanto chorar. O casal se aproximou preocupado para saber se ele passava bem, se queria que chamassem alguém. Ele sorriu com o queixo tremendo pelo pranto incontrolável, e disse, Estou bem, obrigado.
Só dormiu muitas horas depois, com os olhos ardendo de tanto chorar.

Na manhã seguinte, um pouco antes da hora do almoço o telefone de casa chamou. Ele teve medo de atender, antecipando o assunto indesejado que a ligação trataria. Do outro lado da linha o médico amigo pediu com a voz embargada para que ele fosse até o hospital, seus filhos já estavam todos lá.

O taxista ajudou-o a caminhar pelos corredores verdes, já que não teria forças para percorrer o trajeto sozinho. No quadrado de vidro da porta da UTI, viu a cena que mais temera durante as últimas semanas, o leito em que ela estivera encontrava-se vazio, o lençol esticado, uma organização irritante do espaço que antes estava amarrotado por ela. O taxista não teve forças para segurá-lo, tão imediato foi o desmaio.

Quando acordou e percebeu-se sentado numa poltrona com os quatro filhos ao seu redor, mais uma vez tremeu de tanto chorar.O filho mais velho beijou a mão do pai, acariciou sua cabeça calva e pediu que os irmãos saíssem da frente dele.

Na cama em frente à poltrona, a esposa ainda muito fraca e alimentada por sondas, sorriu com a pouca força que passava a recuperar, e com os olhos marejados esticou a mão na direção do marido.

Não quis dizer para o senhor pelo telefone, para não lhe privar da alegria de ver com os seus próprios olhos a recuperação que eu não entendo como aconteceu.

Os tubos dedicados agora podiam descansar, pois, se ainda não tinha condições de se alimentar, pelo menos de respirar já dava conta sozinha.

Recebeu dele o abraço mais amoroso que se pode receber, e mesmo sem força para retribuí-lo a altura, disse baixinho para que só ele ouvisse, Prometo que vou te fazer feliz pra diabo.

Ela permaneceu ainda mais três semanas se recuperando no hospital até poder voltar para casa e tomar a sopinha que ele prometera e que, de fato, para ela fora a mais deliciosa que tomara em sua longa vida. Em função disto, no oitavo porta retrato na estante da sala, ela estava sentada na poltrona do hospital que ele havia sido acomodado quando desmaiou, enquanto segurava a netinha recém nascida ao lado dele. E ainda vieram outros porta retratos juntar-se àqueles cada vez que uma nova pessoinha vinha fazer parte da família, todos com fotos iguais as anteriores.

E as muitas noites seguintes a daquele dia em que estivera sentado ao lado dela na UTI, foram as mais felizes da vida dele.