quarta-feira, 30 de março de 2011

Cristal


Você já se sentiu uma fração do todo que pode ser?

É como tenho me sentido.

E sei lá por que cargas d’água dei para me lembrar daqueles dias que me foram tão bons.

Sabe aquela história que um sentimento bonito é como cristal, delicado, que depois de quebrado não se cola, por melhor que seja a cola? Então, acho que foi isso que aconteceu, né?

Éramos um cristal tão bonito, sem nenhuma imperfeição, uma bolhinha de ar sequer.

Mas sou meio estabanado e acabei esbarrando o cotovelo e quebrando o cristal lindo que poderia ter sido uma bela taça que serviria de casa para um Bordeaux de muito preço e qualidade compatível à etiqueta.

Ok, ok, sem vinho, sem bebida.

Que saudade de um bom vinho.

Que saudade de você.

Mas tu continuas cristal, e eu copo de requeijão.

Você já trocou pneu? Acho que não.

Quando se troca um pneu, fica uma desgraçada duma sujeira embaixo da unha que não tem jeito de sair. A gente lava, lava, e a desgramada não sai de jeito nenhum.

Meu cotovelo estabanado no cristal bonito é como essa desgramada dessa sujeira, não vai embora.

E suas unhas estão sempre bem feitas.

Você não troca pneus.

Talvez eu tenha nascido para borracheiro. Talvez eu seja só a sujeira embaixo das unhas.

Esfrega mais um pouquinho que eu acabo saindo.

Já tentou sabão mecânico? Sabão de lava?

São bons, removem tudo que é craca, até uma craca como eu.

Errar faz parte do meu metier, sou bom nisso.

E você parece programada para acertar. Precisa ser tão precisa?

Porra, você já é linda, precisa ser inteligente também? Precisa ser compreensiva também? Precisa ser amiga também?

Aí, quando os outros se apaixonam por você, outros como eu, jamais estarão a sua altura.

Mas lhe digo, aquele dia, no almoço que sei lá por qual motivo eu também estava presente, era para ser só você e sua amiga, aquele dia vocês me perguntaram por que é tão difícil achar um cara legal, por que os homens não acumulam o compêndio de virtudes que lhes satisfazem. Por quê o cara que é bonito não é gostoso? Por quê o cara que é gostoso e bonito não é inteligente? Por quê o cara bonito, gostoso e inteligente não é gentil? Por quê o cara que é bonito, gostoso, inteligente e gentil é tão apaixonado por si mesmo? Por quê ele se depila? Por quê ele gasta mais horas na academia do que com vocês? Por quê? Por quê? Por quê?

Por que esse cara não existe.

Homem de verdade tem barriga.

Desculpe lhe dizer isso assim, tão sem cuidado.

Desculpe lhe dizer isso, meu cristal tão lindo. Desculpe fazer com que você escute isso dum copo de requeijão.

O problema não está nele, está em você.

Pois é, pois é, pois é.

Mesmo sendo esse cristal tão lindo, sou obrigado a lhe dizer, o problema está em você, não nele.

Ou neles.

É que você já não faz o menor esforço para ter aquilo que quis ter com aquele primeiro. Ou segundo, mas o primeiro com quem você fez algum esforço.

Talvez vindo dum copo de requeijão, não signifique muita coisa para um cristal tão lindo, mas é que ele, o primeiro, era uma lata de pêssego sem tampa feita de copo, uma lata de ferro, nem para requeijão servia. E você se esforçou por ele, por vocês.

Acho que, depois dele, você cansou.

Mas quando você perceber que terá que fazer algum esforço para que algo com alguém dê certo, que nem todo esforço lhe trará cortes nos lábios, como trazem as latas de pêssego feitas de copo, talvez você consiga encontrar um copo suficientemente bom para merecer um brinde com o teu cristal. Um brinde que não lhe quebre, cristal tão lindo.

Pare de esperar demais, ninguém é demais.

Quando você aceitar que terá que se esforçar de novo para que as coisas deem certo, essa angústia aí dentro deve parar de coçar, e talvez você seja feliz.

Não o tempo todo, por que isso ninguém é.

Mas na maior parte do tempo, com certeza.

Só tome cuidado para não virar taça cara na cristaleira, por que lá junta pó.

É claro que será muito prudente da sua parte manter uma distância segura dos estabanados, cujos cotovelos insistem em trincar, quando não quebrar, os cristais que veem pela frente. Só não se enclausure na cristaleira. Os bons cristais foram feitos para bons brindes.

Não comigo, que eu já não bebo, mas não há de lhe faltar bons brindes, quando for aberta a temporada das concessões compreensivas às falhas que todos têm.

Enquanto isso, ficamos assim, você cristal lindo, taça sem bolhinhas de ar, e eu, quase digo pobre de mim, eternamente copo de requeijão.

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