sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

E 2010... Foi bom pra você?


Pois bem, caríssimos leitores, eis que 2010 acordou desenganado pelos médicos.

A família tentou de tudo o que era possível, ordenou que os médicos não economizassem, disporiam de todos os recursos que estivessem ao seu alcance, não mediriam esforços para salvar o ente querido, mas, não adianta. Neste momento 2010 agoniza moribundo, e o seu fim é certo, inapelável, inescapável, com a morte sentada a beira da sua cama, fechando um cigarrinho de palha e limpando a unha do dedão com a ponta da sua foice, enquanto aguarda o momento das vinte e quatro badaladas para ceifar a vida de mais um ano.

No primeiro dia deste ano que agora definha a passos largos rumo ao seu jazigo perpétuo, eu fiz um post com uma série de promessas possíveis, ao invés daquelas promessas incríveis que todos costumamos fazer no fim de cada dezembro.

Como compartilhei com meus queridos leitores as promessas, vamos ao resultado de cada uma delas para ver como me saí neste ano que já era:


1 – Prometo que vou engordar dois quilos.

Engraçado, nos quatro anos anteriores, prometi emagrecer e não consegui, pelo contrário.

Contudo, entretanto, porém e todavia, neste que prometi engordar, emagreci.

E não foi resultado de nenhum esforço dietético não. Em 2010, tive alguns probleminhas de saúde, nada grave, mas que me exigiram um pouco mais de cuidado do que os resfriados dos anos anteriores. Soma-se aí uma rotina exaustiva de trabalho e, como resultado, ao invés de engordar os dois quilos prometidos, emagreci três. Até minha indesejável barriga de cerveja deu uma considerável diminuída. Não acabou, é claro, mas já não me envergonha tanto.

Resultado: Promessa não cumprida.


2 – Prometo que não vou me matricular nas matérias de terça e sexta feira.

Esta promessa foi feita no intuito de não reprovar mais por falta nas matérias que coincidiam nos dias de jogos do meu amado, idolatrado, salve e salve Figueirense. Mas eu me matriculei.

E, óbvio, rodei por falta nas matérias que coincidiam nos dias de jogos do Figueirense.

Eu – embora possa não parecer – sou uma pessoa bastante politizada. Tenho uma série de sugestões e observações sobre as mais diversas melhorias que nosso país necessita.

Uma das considerações mais relevantes que eu faço sobre o nosso sistema educacional, mais do que o reajuste do salário dos nossos heróicos professores, mais do que a segurança nas escolas públicas, mais do que as obras de infra-estrutura, mais do que a reformulação do sistema de ensino, é o fato absurdo, até inescrupuloso, eu diria, de marcar aulas em dias de jogos do Figueirense.

Dias como este são de uma rara beleza e magia para toda a humanidade, logo, deviam ser respeitados por lei.

Mas o Brasil é uma casa da Mãe Joana, nem momentos importantes com este não são respeitados pelos nossos governantes.

Resultado: Promessa não cumprida.


3 – Prometo que vou beber melhor.

Pois bem, enquanto bebi, realmente bebi melhor. Melhorei a qualidade dos vinhos que me faziam companhia todas as noites, comprei algumas garrafas realmente especiais, coisa boa mesmo.

Contudo, entretanto, porém e todavia, em função dos supracitados problemas de saúde que me fizeram companhia neste ano, parei de beber.

Sim, sim, sim. Parei de beber por força das circunstâncias. No começo foi bem difícil. É complicado sair de um dia pesado de trabalho, e não tomar uma cervejinha para aliviar a tensão, é complicado chegar na noite de sexta-feira, dia de encontrar meus amigos langanhos na bela praia de Sambaqui, e tomar coca-cola enquanto eles bebericam suas heiniken’s. Mas eu sobrevivi. E hoje já estou praticamente habituado a essa nova configuração (não)alcoólica.

Acreditem, leitores amigos, existe vida além da cachaça.

Resultado: Promessa parcialmente cumprida.


4 – Não vou lavar minha moto semanalmente.

Para ser sincero, lavei a moto apenas uma vez no ano. Um daqueles dias que acordamos com a faxineira incorporada, dei uma geralzona no meu apartamento e, não satisfeito em ver cada um dos meus quatro cômodos brilhando (sala, cozinha, banheiro e quarto), ainda desci à garagem do edifício e dei um belo trato na pequena Gertrudes, ficou brilhando, linda, linda! Quem sabe no ano que já começa a mostrar a cabecinha na sala de parto, eu não torne isto um hábito. Quem sabe...

Resultado: Promessa cumprida!


5 – Não vou fingir que gosto de algo, só para ser educado.

Sabe aquele personagem imortalizado na interpretação do genial e saudoso Pedro Milani, o Saraiva? Então, ele foi inspirado em mim. Com a diferença que eu não sou tão elegante quanto ele nas críticas que faço.

Eu sou um cavalo, admito. Grande parte dos contos que publiquei neste ano, cujos personagens eram pessoas mal humoradas e grosseiras, busquei a inspiração em mim mesmo. Ou seja, além de grosseiro, narcisista.

Em função disto, ganhei um cantinho especial na lista dos mais detestáveis da banda Samambaia Sound Club, ou na imitação que os músicos atuais tentam fazer da ótima banda que um dia existiu. Mas eu gosto deles, mesmo. Enquanto pessoas e músicos individuais, enquanto banda, mantenho a mesma opinião dos polêmicos posts que fiz há meses atrás. Aliás, minhas opiniões daquela época foram até ratificadas depois de assistir aos vídeos do que a banda se tornou. Mas deixa pra lá, quero diminuir a probabilidade de apanhar na cara quando um deles me encontrar na rua, apesar de já saber que esta é uma possibilidade bastante grande.

Na época do texto sobre minhas promessas, eu escrevi:

“O infeliz que nasceu ali na Costeira do Pirajubaé, a viagem mais longa que o safado fez na vida foi até Águas Mornas, e aparecer na minha frente com uma bota de couro, medalhinha da Nossa Senhora Aparecida, imitando sotaque goiano e ouvindo no seu Gol rebaixado o último disco do “João Neto e Frederico”, vai ser mandado à merda sem dó nem piedade. Pode não adiantar porra nenhuma, mas tenho certeza que o desabafo vai me fazer muito bem! Ele pode ficar chateado? Foda-se ele! Foda-se ele e todas as duplas de “Sertanejo Universitário” do universo. Fodam-se todos batendo na palminha da mão, dançando na sola da bota, beijando a medalhinha da Santa protetora pregada no chapéu! Se foooooooooooooodaaaaaa peããããããoooooo!!!!!!

Mantenho a promessa.

Resultado: Promessa cumprida!


6 – Sacanearei com tantos argentinos quantos me for possível sacanear.

Não encontrei nenhum argentino na rua.

Resultado: Promessa não cumprida.


7 – Não vou dar moral pra gaúcho folgado!

Na época, escrevi:

“Para todo e qualquer gaúcho, seja ele colorado ou gremista, que vier tirar sarro me perguntando: “Bah, guri, mas me diz aí, o que o teu Figueira já ganhou na vida?”. Eu responderei de pronto: “Ganhou o coração da senhora sua mãe, ou tu achas que terias nascido se teu pai fosse gaúcho?”

Hoje, só me resta comprar uma camisa do Mazembe, que para deixar tudo ainda mais bonito, é alvinegro!

Resultado: Promessa cumprida.


8 – Prometo que vou parar de tirar o telefone da tomada para não ter que recusar convites de quase amigos para ir numa baladinha esperta. Vou cancelar minha linha telefônica!

Não cancelei minha linha telefônica, e não parei de tirar meu telefone da tomada. Continuo alimentando a lunática ideia de que, se tivesse a possibilidade, desinventaria o telefone. Além de mal-humorado, sou antissocial.

Resultado: Promessa não cumprida.


9 – Prometo que irei à mais almoços familiares nos finais de semana.

Olha, durante uns dez meses essa promessa não foi cumprida, mas na reta final do ano eu me tornei quase um bom filho e bom irmão. Frequentei com muito mais assiduidade os encontros familiares, e gostei.

Um beijo pro meu pai, pra minha mãe, pros meus irmãos e pra você.

Resultado: Missão parcialmente cumprida.


10 – Prometo que em 2011 eu tento uma listinha melhor.

Bom, esta nova listinha pretendo publicar só no ano que vem, na segunda dia 03 (talvez). Aí poderei avaliar se a promessa foi ou não cumprida.

Resumo da ópera.

2010 foi uma ano turbulento, mas de um modo geral foi bom. Muitos acontecimentos, crescimento em alguns aspectos, retrocesso em outros, mas o saldo foi positivo.

Tinha alguma expectativa, pois, de certo modo, era um ano cabalístico para mim. Afinal de contas nasci no dia dez de outubro as dez horas, ou seja, completei 31 anos exatamente as 10:00 do dia 10 do mês 10 do ano 10.

Mas, no fim das contas, foi um dia igual aos outros.

Chega de papo que vou arrumar a minha casa para começar 2011 com as coisas limpas e organizadas.

A todos vocês que acompanham este espaço, um ótimo réveillon, e que 2011 seja o mais incrível ano das suas vidas (até agora).

Beijo do magro barrigudo.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

As três bitucas


Agora já era tarde.

Mas que ele pensou em ao menos nessa hora contar toda a verdade, ah, isso ele pensou.

Mas tadinha, ela ia ficar tão decepcionada se soubesse de tudo, melhor deixar assim mesmo. Pra ele não mudaria nada mesmo, que se preservasse a integridade da mentira de tantos anos.

Fato é que o cigarro o levara ao leito de morte. Justo ele, que sempre detestara cigarros, viu-se impelido a fumar durante mais de trinta anos, apenas para não decepcioná-la.

Foi no comecinho de uma noite quente como a casa do capeta, que ele chegou em casa, foi ao banheiro, lavou o rosto, as mãos, voltou para a sala para cumprimentá-la, beijou-lhe com a rotineira burocracia dos anos de convívio e foi até a cozinha quando, desta vez, era ela quem dirigia-se ao banheiro.

Abriu a geladeira, pegou uma lata de brahma, fechou a porta e deu de cara com ela, semblante contrito, cenho franzido olhando para ele a espera da resposta para a pergunta que o pobre desconhecia.

Que cigarros são aqueles? Perguntou ela.

Que cigarros? Devolveu a indagação.

Como, “que cigarros”? Aquelas três bitucas boiando no vaso.

Foi até o banheiro, levantou a tampa do bacio e contemplou as chepas navegando tranqüilas na água parada do vaso.

Respirou fundo, passou uma das mãos sobre a testa, levantou o olhar até os olhos dela, e disse:

São minhas.

Desde quando você fuma?

E faz diferença? São minhas, isso basta.

Você tá de brincadeira, né?

Não, são minhas. Eu gosto, fazer o quê?

Como assim, “eu gosto”. Você sempre odiou cigarros.

Não, eu nunca odiei. Eu adoro cigarros, fumo muito, inclusive. Só não deixava você saber por que sei que você odeia. Não queria te perder, e por isso fumava escondido.

Deixa eu ver o seu maço.

Não tenho, acabou. Esses eram os três últimos.

E que marca você fuma?

E faz diferença?

Ué, se você gosta tanto assim, deve ter um cigarro preferido.

Não, eu só fumo. Fumo o que tiver pra vender. Fumo o que couber no dinheiro que tiver na carteira. Só fumo. E daí? É algum pecado?

Você sabe que eu odeio cigarros, e sempre falei que jamais ficaria com alguém que fuma.

Eu sei, por isso que fumava escondido.

Você não tinha o direito de esconder uma coisa dessas sobre nós.

Isso não é sobre nós, é sobre mim.

Mas me afeta.

Não, não te afeta. Tanto que você nunca desconfiou. Isso só me afeta. Se alguém vai morrer de câncer ou enfarto por causa do cigarro, esse alguém sou eu.

Você sabe que eu odeio mentiras.

Eu não menti, apenas omiti, são coisas muitíssimo diferentes.

Você não tinha esse direito.

Claro que tinha, é algo meu, não nosso. Se eu fumasse na sua frente, na sua presença, se te importunasse com a fumaça do meu cigarro, aí sim seria um problema nosso. Mas eu sempre tomei o cuidado de reservar a fumaça somente para mim.

Mas, a partir de agora, se você quiser fumar vai ter que ser na minha frente.

Tudo bem, se você não se importar, eu fumo na sua frente.

Prefiro isso do que saber que você faz algo pelas minhas costas.

E assim, desde o dia em que tiveram aquele diálogo, mesmo odiando cigarros passou a fumar mais de uma carteira por dia, na frente dela. E agora lá estava ele, mergulhado na cama do hospital de onde só sairia no caixão. O câncer não perdoa os fumantes, mesmo aqueles que fumam por força das circunstâncias.

E ali, enquanto esperava a morfina diminuir um pouco aquela dor filha da puta que lhe fazia sentir-se o mais fodido dos semi-vivos, lembrou de uns meses antes daquele fatídico flagra, quando a convivência com sua esposa beirava o insuportável, tantos eram os desaforos recíprocos.

Mas ele a amava demais para sequer cogitar a possibilidade de uma vida sem tê-la ao seu lado.

Eis que um dia, sem mais nem menos ela amansara. Voltara a ser carinhosa, atenciosa, solícita, as brigas haviam cessado de uma hora para outra, e a convivência passara a ser tão boa que ele logo deduziu que tanto amor só podia advir da culpa.

Foi fácil descobrir que ela tinha um amante.

Ela se preocupava tanto em dar-lhe atenção, que faltava-lhe tempo para tomar o devido cuidado com as evidências do adultério que deixava por todos os cantos.

Mas ele escolheu fazer que não via.

Ela estava feliz, ele mais ainda. Que vivessem assim, então.

No dia do flagra das três bitucas de cigarro, tão logo entrara em casa ele percebeu que o outro passara a tarde ali, naquele lar cujas prestações cobradas pela Caixa Econômica Federal eram pagas com o suor do trabalho dele. Mas fez que não percebeu nada de diferente.

Quando ela saiu do banheiro inquirindo-o acerca dos cigarros, instantaneamente deu-se conta de que eram do outro, os cigarros. E de modo tão instantâneo quanto percebera a obviedade da sua constatação, concluiu que se ela soubesse da verdade, seria bem provável que abandonasse o amante, furiosa, e a vida voltasse a ser uma rotina de ofensas e agressões.

Preferiu assumir a paternidade daquela criança que não tinha absolutamente nada dele. Ele odiava cigarros. Mas, mais ainda, odiava a menor possibilidade de imaginá-la sofrendo pela mentira do seu amor escuso.

Assumiu de bom grado o fardo de ter que tornar-se um fumante após os quarenta anos, apenas para não despedaçar o coração da sua amada esposa infiel. O inconveniente foi ter que conviver com tragadas e fumaça de tabaco.

Pior ainda, ela aceitou o seu novo vício. Provavelmente pela culpa da traição, fez questão de ela mesma passar a comprar os cigarros do marido.

Agora, agonizando no leito do hospital, viu a esposa entrar no seu quarto com ar de cumplicidade. Esperou a enfermeira sair do quarto de paredes verdes e um ar de limpeza excessiva, abriu a bolsa e tirou de dentro dela um outro maço de cigarros, dizendo:

Tome, meu amor, sei que você está sofrendo. Se o médico já nos desenganou mesmo, não faz sentido te privar justo agora de algo que sempre te deu tanto prazer.

Ele olhou para o maço de Malboro nas mãos dela, sorriu, e foi neste exato momento que pensou em lhe contar toda a verdade. Afinal de contas, já fazia mais de dez anos que ela deixara o amante e passara a viver somente para ele e a família que haviam constituído.

Mas achou melhor manter aquela mentirinha apenas para ele. Olhou para ela, sorriu com o restinho de força que ainda lhe sobrava, e disse:

Hoje não, meu amor. Hoje não.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Ben é 10, mas Menino Jesus é 1000!


Nesta semana natalina, muito tenho escutado sobre a perda do significado desta data tão cheia de simbologias e afins.

Cristãos mais engajados naquelas histórias incrivelmente fantásticas de ficção científica que preenchem as páginas da Bíblia, parecem estar a cada ano que passa mais indignados com a abordagem quase totalmente consumista, ao invés de centrada na reflexão introspectiva que deveria - segundo eles - ser feita em torno do nascimento do menino Jesus.

Contudo, o que me parece é uma grande perda de foco, de eficiência na condução das estratégias de marketing dos Jardins do Éden.

Li no blogue do Jean Mafra, que seu sobrinho ganhou um bonequinho do Menino Jesus, e perguntou na inocência ferina que só as crianças possuem: "legal, o que ele faz?"

Perceberam a excepcional oportunidade de negócios que se escancara diante dos altos escalões eclesiásticos, para que recuperem o prestígio de eras atrás, aquele tempo em que o papa era pop?

O consumismo, diferente do cristianismo, veio pra ficar. Logo, se não podes vencê-lo, junte-se a ele.

Meus sobrinhos são obcecados pelo desenho animado Ben 10. E sei que eles não são os únicos, isso é realmente uma febre generalizada entre a gurizada de 2 a 8 anos. Se existe a demanda por um herói menino, por que não revitalizar a imagem do menino Jesus com o lançamento de bonequinhos, camisetas, bonés, chaveiros, jogos de roupa de cama, joguinhos de video-game para playstation III e Wii. A demanda existe, só falta um diretor de marketing um pouco mais antenado.

Na próxima vez que o sobrinho do Jean Mafra perguntasse o que faz o menino Jesus, ele poderia responder:

"Nossa, você não sabe? Menino Jesus é foda! O bonequinho é impermeável,anda sobre as águas. Se você tiver um outro bonequinho estragado, o bonequinho do menino Jesus ressucita o seu brinquedo antigo. Se a sua irmão perder as comidinhas das suas bonecas, o bonequinho do menino Jesus multiplica os pãezinhos das bonecas da sua irmã. É preciso tomar cuidado, não podem ser comprado produtos piratas, pois se o produto for do camelô, o bonequinho do menino Jesus quebra tudo o que for falsificado. Tem a versão do bonequinho do menino Jesus DJ, que vem acompanhado de uma boneca italianda bem antiga. O bonequinho do menino Jesus tem uma incrível tecnologia chamada 'Ressucitation', que caso você quebre o seu bonequinho do menino Jesus, no terceiro dia após ele ter sido estragado, ele se conserta sozinho e ganha um gás extra, passa até a voar!"

É,meus amigos, não se renda ao consumismo, mantenha o apego pela história cristã.

Vá até a loja mais próxima e garanta já o seu bonequinho do Menino Jesus.

Por que o Ben é 10, mas o Menino Jesus é 1000!

Palavra da salvação!

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

O Brinde


Ela ficou surpresa quando, no brinde dos noivos, ele recusara a taça de champagne que lhe fora oferecida, substituindo-a por uma outra de água mineral com gás. Ainda mais um champagne daqueles, tão fino, tão saboroso ao ponto de fazer cada gole parecer uma carícia.

Ela fez questão de beber a dose que lhe cabia, até por que, diferente do que manda a tradição, afirmando que é de responsabilidade dos pais da noiva arcar com os custos da festa, nesta, o noivo fez questão de assumir cada centavo da celebração.

Passado o brinde, a foto com as taças empunhadas por braços entrelaçados e o som das palmas ornando a atmosfera iluminada pelos sorrisos dos convidados, ela fez questão de aproximar-se dele e perguntar se estava bem. Não conseguia conceber uma cena daquelas, festa, bebida, alegria, e ele sóbrio.

Ele sorriu meio sem jeito, respirou fundo na esperança que o ar que lhe inflava os pulmões maltratados pelo cigarro, trouxesse além de oxigênio as palavras certas para dizer àquela que fora durante muito tempo a mulher da sua vida.

No breve instante de uma respiração, toda a vida voltou a sua memória.

Lembrou da cena mais linda que ainda hoje habitava seus pensamentos cada vez que se deitava, daquele dia a tantos anos atrás, ela entrando na igreja toda de branco, concentrando-se para não desabar no choro da emoção, amparada pelo senhor que sempre amparara a sua família, vindo até ele com os lábios exibindo o sorriso mais puro, verdadeiro e sincero que já vira. Aquele sorriso era a felicidade, o resto era ensaio sobre o tema, divagações tão imprecisas quanto incapazes de descrever a complexidade do sentimento que naquele sorriso se mostrava tão natural.

Lembrou que na festa do casamento daquele mesmo dia de muitos anos atrás, ele entrelaçou o seu braço ao dela, e bebeu uma champagne de qualidade não tão refinada quanto a que a poucos minutos lhe fora oferecida, mas, mesmo sem ter provado esta última, sabia que não poderia ter sabor melhor do que aquela primeira. Vinha também na sua memória o gosto exato daquele gole, o adocicado do frisante descendo-lhe a garganta eufórica, os olhos de ambos se olhando com uma ternura profundamente amorosa, marejados pelas lágrimas do carinho recíproco do momento encantado. Podia agora sentir o calor da pele dela naquele exato momento de anos atrás, embora não a estivesse tocando.

Em seguida, lembrou também que aquele não fora o único gole que bebera na festa. Já não havia sido o primeiro, e foram tantos os goles noite adentro, que a certa altura da festa o seu estado de descompostura era tanto, que definitivamente não era adequado a um nubente.

Lembrou que no quarto do hotel onde passaram as núpcias, antes mesmo de beijá-la quando encontraram-se enfim a sós, fora ao frigobar buscar uma cerveja. Abriu a lata e tomou-a toda de uma só vez para, só depois, reparar nos braços abertos da então esposa apaixonada.

Lembrou de cada risada que deram no apartamento de um quarto que alugaram graças a dedicação dela em encontrar algo que coubesse no pequeno orçamento somado de ambos.

Lembrou de como foram felizes naquele apartamento que, se na época já era antigo, agora tornara-se antepassado, de tão velho que era o prédio diante dos vários arranha-céus que se erguiam ao redor dele.

Lembrou de como era boa a sensação de sentir os pés dela encostando-se aos seus embaixo do edredon, embora gostasse de esparramar-se sozinho na cama que, mesmo sendo de casal segundo o fabricante, era bastante estreita. Aquele toque compartilhado era melhor do que o espaço exclusivo e egoísta.

Lembrou de como ela aceitara deixar de comprar uma massa um pouco mais refinada, para que não faltasse a ele a cervejinha sagrada que bebia todo fim do dia.

Lembrou de como ela concordou que seria saudável ele beber uma tacinha de vinho por dia, ainda mais com o histórico de problemas cardíacos que a família dele pendurava na árvore genealógica.

Em seguida lembrou-se que não demorou para que uma tacinha tornasse-se duas, em pouco tempo meia garrafa, depois uma garrafa e, quando menos perceberam, já mais de duas eram esvaziadas a cada dia. Os demais acréscimos de quantidade, preferiu não lembrar. O orçamento permanecia curto, mas, cada vez mais, os prazeres a dois eram cerceados para que não faltasse a ele o vinho. Ela fazia isso por amor, ele por desentendimento. Talvez pela tontura da embriaguez.

Lembrou que no início do casamento, era muito comum reunirem-se com amigos em suas casas, ou estes no pequeno apartamento de um quarto deles. Com o tempo, ela passou a aceitar que ele saísse sozinho a tais encontros, pois começava a cansar-se de ser a inconveniente que podava os goles que o tornavam cada vez mais eloqüente. Falava alto, compunha músicas que esqueceria na ressaca do dia seguinte, obrigava a todos tê-lo sempre como o centro dos encontros. No início era até engraçado, depois cansou.

Lembrou que no segundo ano do casamento, ela começou a falar em terem filhos. Ela dizia que queria um filho com a inteligência dele, mas também com a sobriedade dela. Lembrou que quando ela lhe disse isso, ele pensou que preferia que o filho tivesse tudo dela, tanto a sobriedade quanto a inteligência. Um dos fatores que o fizera se apaixonar por ela, fora exatamente a sua inteligência e sensibilidade para as artes e tudo o que é belo.

Lamentou não lembrar se alguma vez disse isso a ela.

Lembrou de como era encantadora a companhia dela, sempre sorrindo, companheira, carinhosa, cúmplice, tolerante. E lembrou-se de como ao fim de cada noite, ela amparava-o junto ao vaso lavado pelo vômito do excesso.

Lembrou que jamais fora violento fisicamente, mas tinha consciência de que se a violência física marca, a psicológica crava. E essa ela suportou resignada por muito tempo.

Lembrou do dia em que foram visitar um pequeno apartamento ainda em construção num bairro distante, minúsculo pelas exigências do mercado imobiliário em fazer do menor espaço algo vagamente semelhante a um lar, e como ela ficara encantada com a possibilidade da prestação do imóvel caber no limitado orçamento de ambos e, assim, poderem ter algo cujas paredes poderiam pintar da cor que bem entendessem, já que não haveria um locador determinando a aparência do recinto.

Em seguida, lembrou da madrugada em que chegou totalmente embriagado depois de gastar no bar um dinheiro que não tinha, mas que o cartão de crédito lhe dava a ilusão da posse e, ao entrar no quarto que abrigava a cama estreita fingida de cama de casal, ela estava encolhida no seu canto do colchão, chorando um choro contido por não terem em três anos de casados conseguido juntar a menor quantia que fosse e, com isso, embora a prestação do apartamento que haviam visitado fosse pequena, não tinham o dinheiro suficiente para dar entrada no imóvel. E era tão pouco o dinheiro necessário... Menos do que o exigido pela posse de um automóvel usado. Mas nem isso eles tinham.

Lembrou que foi pouco tempo depois deste episódio que ela percebeu que o imenso e incondicional companheirismo que oferecia ao marido alcoólatra, era inversamente proporcional ao que recebia. Não tardou para ela perceber que merecia mais e, assim, exigir do ébrio cônjuge o divórcio libertador.

Lembrou que relutou, prometeu mudar, parar de beber, mas lembrou também que aquela não era a primeira vez que prometia isso. Sendo assim, desta vez ela partiu.

Nem por isso parou de beber, agora sozinho no mesmo velho apartamento alugado de um quarto.

Lembrou que foi somente no dia em que soube que ela se casaria com outro, que a decisão da abstinência desabou sobre ele. Não pararia de fumar, pois como já havia fraseado aquele tal escritor semi-desconhecido, “não é saudável viver sem algum vício”, mas no exato momento em que lhe contaram do novo matrimônio da mulher da sua vida, ele erguera um copo de cachaça na intenção do brinde pela felicidade do casal que se formava, e neste gesto, desabou num choro convulsivo que deixou a todos no boteco a surpresa do espanto, e em meio ao pranto percebeu que o brinde que mais a faria feliz, era o feito com um copo d’água. Desde então, nunca mais bebeu.

Muitos anos depois, quando se encontraram pelas vias mais imprevisíveis que se pudesse imaginar, ele tentou conversar sobre o assunto, mas ela disse que não lhe interessava remoer em algo que já estava fossilizado nas eras passadas das lembranças desnecessárias. Ele insistiu, dizendo que não precisavam tapar o sol com a peneira, mas desistiu quando ela disse que o sol já havia se posto, não havia o que tapar.

Agora, na frente dela naquele dia de celebração, copo de água com gás na mão, ele terminava aquela inalação profunda que precisava para responder-lhe o por que de não estar bebendo, e disse-lhe:

Bebendo fiz a mãe sofrer, mantendo-me sóbrio até o fim da minha vida será a oportunidade de fazer a filha feliz e, assim, reparar ainda nesta encarnação o erro que cometi com meu maior amor. Farei agora feliz a mulher que hoje amo como homem, mas, caso antes não tivesse errado tanto, poderia agora estar amando como filha.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

O fardo de ser preto


Você me disse outro dia que eu não aceito o fato de ser preto.

O fato até que eu aceito, difícil é aceitar o fardo.

Talvez você não me entenda, mas ser preto é um fardo.

E não estou falando da certeza de que se for apresentado para a sua família de brancos, num desses almoços de domingo que toda a brancalhada se reúne na casa da mãe, dos avós, ao redor da macarronada, um tiozinho qualquer, depois de tomar umas e outras vai olhar pra mim e perguntar o que eu acho das cotas de negros nas universidades.

Todos torcendo para que eu diga que sou a favor, só para depois poderem discorrer a tarde inteira sobre como aceitar o regime de cotas é aceitar que os pretos não são tão inteligentes quanto os brancos. Vão dizer que o certo seria cotas para alunos das escolas públicas, já que elas são ruins tanto para os pretos quanto para os brancos, e mais um monte de argumentos de brancos para manterem suas universidades de paredes brancas cheias de gente branca, mantendo para os pretos o lugar cativo da portaria, da segurança, da limpeza.

Como se tua família branquinha da silva não fosse aceitar levar uma vantagenzinha, se tivesse oportunidade.

Se eles soubessem que ontem você não devolveu aqueles dez reais a mais que a menina do caixa te deu quando voltou o troco do lanche, e você ainda argumentou dizendo que aquele é o trabalho dela, se ela não o faz direito, a culpa não é sua; se a sua família branquinha da silva soubesse daquilo, provavelmente não ficariam horas discutindo sobre a moral apodrecida da sociedade que quer sempre levar vantagem em tudo, até no troco do big-mac. Até por que você é branca, e a menina do caixa, se não servia pra preta, pra branca também não bastava.

E quando digo fardo, também não estou falando do fato de você entrar no banco com sua bolsa gigante, cheia de tudo que é desimportante, um punhado de penduricalhos de metal e, mesmo assim, a bendita da porta giratória rodar livremente para que você desfile sua pele branca e seus cabelos loiros até o gerente para pedir dinheiro emprestado, enquanto eu, quase azul de tão preto, tenho que voltar quinze vezes até a faixa amarela e só posso entrar depois de ameaçar tirar a roupa, já que meus bolsos, mochila, qualquer coisa que tiver nas mãos, estarão totalmente vazios. Aí sim, poderei entrar – acompanhado do segurança, claro. Também preto, claro – para ir até o gerente e aplicar o meu dinheiro em algum fundo de investimento que vai render muito mais para o dono do banco – branco, é claro – do que pra mim.

E quando digo fardo, também não estou falando do fato de que, quando brancos, Josés viram Zés, Franciscos firam Chicos, Antônios viram Toninhos, João Carlos viram Jucas e, quando pretos, Josés, Franciscos, Antônios, João Carlos, Pedros, Rauls, Alfredos, todos viram Negão, Jamelão, Buiú, Toner, “Alemão”, Mussum, Mandela, Obama, Pelé, Cirilo, Blecaute e daí pra baixo.

E quando digo fardo, também não estou falando do fato de que se numa blitz o teu irmão branco for parado, terá apenas que mostrar os documentos dele e do carro, e se eu for parado na mesma blitz, vou ser interrogado, terei que explicar o que estou fazendo na rua àquela hora, de onde vim, pra onde vou, e serei revistado pelo avesso, se duvidar, até no útero que não tenho vão dar uma fuçadinha.

E quando digo fardo, não estou falando do fato de que quando sua mãe se referia ao seu ex-namorado, aquele calouro da faculdade particular de direito com sobrenome alemão, ela dizia: "minha filha está namorando um advogado", e se fosse se referir a mim, mesmo eu sendo médico formado na federal com especializção no exterior em neurocirurgia, ela diria: "ah, a minha filha está de caso com um pretinho".

E quando digo fardo, também não estou falando do fato de que se alguém encontrar o teu pai branco na rua vestindo um terno, vão lhe perguntar se virou executivo, e se me virem de terno, vão perguntar se virei pastor.

E quando digo fardo, também não estou falando no fato de que se seu primo branco estacionar o seu carro novo num restaurante chique qualquer, o cara que estacionar do lado vai afirmar que os negócios devem estar indo muito bem, e se eu estacionar o meu importado novo no mesmo restaurante, o mesmo cara vai me perguntar quanto custa o serviço de manobrista.

E quando digo fardo, também não estou falando do fato de que, mesmo sendo formado em violão clássico e saber mais peças de Bach do que a orquestra municipal inteira, se naquela mesma macarronada da sua mesma família branquinha da silva alguém souber que eu sei tocar, aquele seu mesmo tio branco que tomou umas e outras a mais vai trazer um violão, e dizer: “vai lá, negão, toca um sambinha aí pra gente”.

Quando digo fardo, o que realmente torna um grande fardo ser preto é conhecer uma branca loira deliciosa igual a você, gostosa até onde é possível uma mulher ser gostosa, com uma bunda melhor do que a da melhor mulata, te convencer a vir para o motel, perceber que você é ainda mais linda nua do que com aquele indescritível vestido curtíssimo, tirar a minha roupa e ver a sua cara de frustração por descobrir que eu tenho o pau pequeno.

Isso sim, é o verdadeiro fardo de ser preto.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Valsa triste


Pela falta de um par que a tirasse para dançar, posicionou no chão sujo da sala três velas vermelhas, distanciadas assimetricamente, para que o sopro fraco e sem fôlego do vento que vinha da rua, entrando pela fresta da janela entreaberta, fizesse as chamas bailarem descoordenadas ao som da valsa triste que colocava para tocar cada vez que tinha vontade de sentir saudade dele.

Na mão esquerda girava a bela taça de cristal vazia, ávida por ceder seu colo a algum bom vinho, como se vinho nela houvesse, mas não havia. Nem haveria.

Levava a taça ao nariz fino, respirava fundo para tentar extrair do cristal empoeirado pelo desuso, algum resquício do bouquet de meses atrás. Talvez uma sobrinha do aroma daquele pinot noir que por último estivera ali. Mas a taça, egoísta que só ela, consumira todo o aroma sozinha, não deixando para a bailarina solitária um restinho que fosse do perfume daquelas notas precisas que só os bons franceses possuem.

Rodopiava sozinha entre as velas vermelhas, lembrando das mãos ásperas dele invadindo seu vestido com uma delicada violência consensual, tomando-lhe a parte interna das coxas, seus dedos deslizando levemente sobre sua intimidade ainda vestida, sentindo na memória do seu corpo o calor intenso que a umedecia até a alma, e na boca o sabor ocre do fel da raiva de igual intensidade, que sentia daquela mulher que a privara dele.

Embriagada da valsa triste, alimentava sua raiva com a dedicação do cigarro que alimenta o câncer, lamentando a tirania do destino que fizera da outra a esposa dele, embora soubesse-se ser sua única e verdadeira mulher. Até por que, como bem se sabe, não há nos registros disto que se chama vida, a existência de almas trigêmeas. Assim sendo, fosse Deus realmente justo, o mundo deveria servir apenas como cenário para a consumação daquele amor que ela sentia por ele. Sem a outra, a esposa, apenas ela e ele.

Remoia-se de raiva de si mesma cada vez que lembrava que chegara até a tratar a outra, a esposa, com algum afeto. Talvez, desde sempre, tenha sido apenas alguma espécie de pena, de culpa, mas na época parecia-lhe afeto. Até amor, a certa altura, pareceu ser o nome adequado do sentimento que sentia pela outra, a esposa. Mas, desde a primeira vez em que ele a teve, que a outra, a esposa, tornou-se desprezível, indigesta, intragável. Apenas um obstáculo entre ela e a plenitude que a felicidade lhe acenava de longe, mas a outra, a esposa, impedia de aproximar-se.

Durante meses, poucos, é verdade, fora feliz no segredo de oferecer a ele o amor que ninguém poderia desconfiar. A cumplicidade do sigilo era parte importante da chama que os consumia, cada vez que a outra, a esposa, ausentava-se. Mas a outra, a esposa, no ardil da inveja a privara dele.

Se tivesse a oportunidade, faria da morte da outra, a esposa, uma experiência inesquecivelmente dolorosa, lenta, morosa. Mas a clausura impossibilitava o deleite que imaginava que teria em arrancar do corpo da outra, a esposa, a vida que julgava não merecer mais carregar, depois de tirar-lhe para sempre o seu homem.

Ela não chegou a contar-lhe, o tempo não foi suficiente, mas o êxtase que ele sentiu naquela noite pela sofreguidão com que ela se entregava inteira a qualquer dos seus desejos, era uma celebração ainda não compartilhada, pois ao fim da noite ela lhe contaria que, enfim, ele teria o filho homem que sempre sonhara, e que a outra, a esposa, não fora capaz de dar-lhe.

Sentindo a força viril do seu homem puxando-lhe os cabelos, lambendo-lhe o pescoço enquanto apertava seus seios contra a porta do guarda-roupas, ela chorou de felicidade por sentir-se detentora da rara sorte de poder ter dentro de si, aquele que seria para sempre seu único amor.

Mas quando seus corpos fundiam-se urgentes pela proximidade do ápice, a outra, a esposa, surpreendeu-lhes horrorizada.

Em pânico pelo que via, a outra, a esposa, pegou a tesoura que dormia tranqüila sobre a penteadeira, e projetou-se sobre as costas do seu marido, perfurando-lhe incontáveis vezes até perder as forças.

O marido desabou ensangüentado, e a outra, a esposa, pegou um lençol para abraçar a filha que chorava nua, vendo seu pai caído com os olhos abertos, mas opacos, já pela ausência da vida.

Se naquele dia seu choro fora de prazer, agora, enquanto rodopiava sozinha ao som da valsa triste, era de raiva por não ter tido a agilidade de pensamento e atitude, para pegar a mesma tesoura e projetar-se sobre a mãe desgraçada, que lhe furtou a dádiva de ter num mesmo ser o amor de pai e homem.

Lamentou a chegada da polícia que, na delação do flagrante, encarcerou de imediato a mãe assassina.

Para ela, sobrou apenas a lembrança do aroma daquele vinho que seu pai tanto gostava, mas que não tinha coragem de beber sem a sua presença, e a esperança de trazer no ventre um outro homem que, quem sabe quando crescido, mostrasse-se a reencarnação do avô e, assim, um dia poder novamente entregar-se a ele.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

FELIZ NATAL, HOHOHO!!! (reeditando)


Lupércio foi batizado, fez dois anos de catequese, renovação de batismo, primeira comunhão, grupo de jovem, crisma, tudo direitinho.

Lupércio teve um filho, o Ariovaldo.
Ariovaldo percorreu todos os ritos, excetuando-se a crisma. (mas mantendo o grupo de jovens, por que ninguém é de ferro, e lá se pode ter gratuitamente a iniciação que em outros lugares se cobra).

Ariovaldo teve um filho, o Genésio.
Genésio seguiu os passos do pai, mas deixou de lado também o grupo de jovens, pois para aquilo que o grupo servia na época de Ariovaldo, existia na rua de Genésio uma menina alguns anos mais velha e bastante solícita aos vários requerentes da sua caridade carnal.

Genésio teve um filho, o Roberval.
Roberval chegou a fazer a primeira comunhão, mas sem cursar os dois anos de catequese. Fez uma espécie de supletivo super-ultra-mega-intensivo, toda a história cristã em uma tarde de sábado.

Roberval teve um filho, o Wescleysson.
Wescleysson chegou a ser batizado, mas só por que seu avô, Genésio, fez aquela pressão. Mas Wescleysson já não entendia direito por que tudo aquilo acontecia, quais as motivações e tudo mais. Roberval ainda contou para seu filho, Wescleysson, aquilo que se lembrava do supletivo catequético, tentou dar detalhes, mas era tudo muito vago, não tinha como ensinar algo que ele mal tinha aprendido. Trocava o nome dos santos, das datas, confundia o motivo das festas. Mas para diminuir a ladainha, Wescleysson fez de conta que entendeu tudo e encerrou a conversa por ali mesmo.

Wescleysson teve um filho, o Luarionésio Robercleysson (bela homenagem aos seus ancestrais).
Luarionésio Robercleysson não foi batizado. Seu pai falou que aquilo era palhaçada, que não fazia sentido nenhum. Mas mesmo que já não fossem exatamente um exemplo de família cristã, aproveitavam todas as festas religiosas para encher a cara e forrar o bucho.

No natal do ano em que Luarionésio Robercleysson completou oito anos, ele resolveu metralhar, Wescleysson, com uma infinidade de perguntas:

_O que se comemora no dia 25 de dezembro? Por que todo mundo troca presente? Quem é o Papai Noel?

Wescleysson, pensou, pensou, pensou, tentou lembrar do resumo do supletivo catequético que seu pai, Roberval, havia lhe dado, e começou a sua explicação:

_Bom, é mais ou menos assim, tinha uma menina novinha que namorava com um eletricista. Quer dizer, acho que não era eletricista, acho que era pedreiro. Não, não. Era bombeiro hidráulico. Não, era... CARPINTEIRO! Isso mesmo, era carpinteiro!
Então, a menina namorava com o tal carpinteiro, mas naquele tempo os casamentos eram arranjados entre as famílias. Ela deveria casar com um cara bem mais velho, que seria o Pai de todos, uma história assim. Era o Chefão, quem mandava na parada, e ela deveria se guardar para Ele. O Cara, pediu para um grande amigo Seu, um parceiro de gelada, dar uma vigiada no namorico da sua prometida com o tal carpinteiro para não deixar que os dois se passassem, e assim garantir que na época do casamento ela estivesse purinha para o Cara. Mas o amigo, não lembro o nome dele, era alguma coisa do Espírito Santo... Como era mesmo o nome do vagabundo... NOEL! Isso, era Noel do Espírito Santo. Isso mesmo, aí o Noel, puta dum fura-olho, foi lá e créu na menina. Ela engravidou do cara, mas Noel não soube disso na época. O Chefão soube, mas não contou nada para o amigo fura-olho, e simplesmente não quis mais saber de casamento, mandou a menina passear, casar com o tal carpinteiro e se virar para cuidar do moleque.
Noel só soube dessa história muito tempo depois, o moleque já estava crescido e andava pelo mundo trocando uma ideia com quem encontrasse pela frente, ele e mais doze camaradas, todos barbudos. Parece que eram do ABC paulista, fundaram o primeiro sindicato, uma coisa assim, mas isso não vem ao caso. Noel ficou puto com o Chefe que escondeu isso tudo dele, os dois fecharam o pau feio. Mas o Chefe era o Chefe, deu um cacete no Noel e disse que se o encontrasse de novo ia acabar com a raça dele. Noel se mandou e, inconformado que ficou, resolveu passar o resto da vida tentando descobrir onde estava o seu filho. Por ter um filho, não aceitava mais ser chamado apenas de Noel, tinha quer ser: PAPAI NOEL!
A noite de natal, é o dia do aniversário do filho do Papai Noel. O nome do moleque era Natalício, se eu não me engano, por isso que se chama festa de Natal. E é por causa disso que todo dia 25 o Papai Noel sai por aí distribuindo presente para a gurizada, ele tem esperança de com isso, encontrar finalmente o seu filho.
E se ele vai sempre de madrugada entregar os presentes, sempre na surdina, é para evitar que o Chefe o descubra, e dê outra camaçada de pau nele.
É isso, ou quase isso. Não tenho bem certeza, mas tenho quase certeza que foi assim.
Agora chega de papo, vai lá na cozinha e traz outra cerveja pro papai.

Feliz natal, hohoho!

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

1 ano de Don Mattos


Há exatamente um ano, no dia 10 de dezembro de 2009, eu abria os trabalhos deste blogue.

Desde 2007, quando assinava a coluna Mattos Sem Cachorro no site Tô Puto!, havia abandonado os textos. O tal site, que durante um bom tempo foi divertidíssimo e onde eu escrevia crônicas voltadas exclusivamente para o humor e para a sátira, tinha se tornado desinteressante.

Saí pela porta dos fundos, sem me despedir, sem um texto de adeus. Apenas parei de escrever, como seu tivesse atrasado a entrega do texto da semana, depois o atraso se estendeu para duas semanas, depois um mês, dois, três, e quando perceberam eu já não estava mais lá, como aquela história do marido que diz que vai sair para comprar cigarros, e nunca mais volta.

E foi do momento em que alguns dos meus leitores mais assíduos da época se deram pela minha falta, que uns tantos destes passaram a me sugerir criar algo meu, um blogue próprio para publicar os meus escritos. Jean Mafra(músico, compositor, contador de histórias, escritor, dançarino e sexy symbol do Bairro Ipiranga) e Marquinhos Espíndola (jornalista responsável pelo caderno Contracapa do Diário Catarinense, e maior fomentador de toda e qualquer manifestação artística de Santa Catarina), foram desde sempre os meus maiores incentivadores para esta empreitada. Jean, inclusive, antes mesmo de lançar o seu blogue em minúsculas no ar, havia me convidado para fazermos um blogue juntos durante um show da Rita Lee, uma vez que ele também era colunista do To Puto!, com a diferença que saiu de lá pela porta da frente, um pouco antes de mim, com direito a post oficial de despedida e tudo mais. Topei fazer o blogue com ele, mas nunca levei a ideia em frente.

Relutei bastante até começar, pois havia tomado a séria decisão de tornar-me um hippie digital, deixando de participar de toda e qualquer rede social, abandonando indefinidamente msn’s e afins, para me dedicar mais a viver a vida real do que a virtual. Não parei de escrever nesse período, foi nele que escrevi meu primeiro romance, “Mais vinho pra mim”, que será publicado entre maio e junho do ano que se aproxima. Contudo, deixei de lado a periodicidade de tempos anteriores.

Em dezembro do ano passado, em meio a maior turbulência pessoal da minha vida, resolvi fuçar no tal do blogspot para ver como era aquela coisa de fazer um blogue.

Achei divertido, parecia um joguinho de videogame, como aqueles de futebol em que tu vais montando a cara dos jogadores do teu time (o meu se chama Côzamaxquerida Futebol Clube, e eu, o primeiro atacante do mundo a jogar com a camisa 4, estou perto de marcar o meu milésimo gol!), mas aqui tu vais montando a cara daquilo que tu queres dizer.

Na hora de batizar o blogue, tentei endereços com ligação ao meu nome, como, davidmattos.blogspot.com, mattosdavid.blogspot.com, mattos.blogspot.com, mas todos já estavam ocupados. Não tinha muita ideia de que nome colocar, até que, do quarto, ouvi um barulho vindo da minha sala. Achei que meus gatos haviam derrubado um dos meus capacetes. Quando fui até lá, percebi que haviam derrubado o meu Box dos filmes do Poderoso Chefão, juntei, olhei para a capa do primeiro DVD que havia caído do Box, e ao olhar a imagem imperiosa de Don Corleone, veio a idéia. Voltei ao computador, arrisquei donmattos.blogspot, e estava disponível. Gostei da brincadeira-homenagem a um dos meus filmes preferidos e apertei “salvar”.

Criado o blogue, ou ao menos o endereço dele, faltava decidir o que fazer com aquele espaço que agora era de minha propriedade. No início foi realmente difícil decidir o que escrever. Não estava muito afim de continuar a mesma linha da minha findada coluna, mas também não estava interessado em fazer do blogue um diário pessoal, como o fazem a maioria das pessoas.

Um postzinho aqui, outro ali, ora com uma crônica nova, ora com uma piadinha que recebia por email, ora a republicação de algo que tinha escrito para o Tô Puto!, de repente veio o meu primeiro conto que meio que me dizia, “é por aqui, é por essa porta que você deve entrar e ver o que tem lá dentro”.

Embora antes deste conto eu já houvesse gostado de algumas outras coisas que tinha escrito, foi com "Cruel", que decidi realmente o que queria fazer deste espaço.

Fiquei um pouquinho temeroso de início, pois ele representava uma mudança significativa na maneira de escrever que os meus leitores da coluna Mattos Sem Cachorro estavam acostumados, era outra direção que, embora tenha procurado manter a ironia e uma boa dose de humor negro e provocação naquilo que começava a escrever, não tinha a comédia escrachada de tempos atrás.

Desde então, tenho procurado fazer deste blogue o meu livro de contos virtual, e se meu medo inicial de que viesse a perder meus primeiros leitores em conseqüência da mudança de rumo, qual não foi minha surpresa quando o efeito foi justamente o contrário. Lembro que na época, ali naquele quadradinho do lado havia 12 seguidores, todos conhecidos, amigos e familiares. Hoje são 44, sendo que mais de 30 destes, eu não faço a menor ideia de quem são, o que fazem, de onde vem, e lhes digo, amigos, isso é o que mais me realiza!

Adoro quando um desconhecido se junta aos que já estão por ali, principalmente pelo fato de não fazer o menor esforço em divulgar este espaço. Fora o blogue, permaneço um hippie digital, não tenho orkut, facebook nem twitter, logo, o que aparece ali do lado não vem por camaradagem, e sim por interesse nas coisas que tenho escrito, e por isso a sensação é tão boa quando aparece uma nova fotinho, até por que na minha cruzada contra a interação social-virutal, remo na direção contrária. Os blogues mais populares que eu conheço, mantém a prática segura dos textos curtos e objetivos, sintéticos, que não tomem muito tempo do leitor. A pressa que a internet exige. Um saco.

Eu, Don Mattos Quixote contra os moinhos de ventos do cyber-espaço, só escrevo textos longos, enormes, desafiando a paciência e disponibilidade do tempo dos meus queridos leitores. Este é outro deles.

Enfim, talvez para você seja um dia comum, para mim é um dia feliz, sinto-me realizado com a forma que este blogue está tomando, tanto quanto desafiado a mantê-lo interessante aos seus já habituais visitantes, e àqueles que espero que venham a se juntar aos primeiros. Tenho procurado publicar três contos por semana, nem sempre me é possível, pois, infelizmente, não é de escrever que eu vivo.

Como forma de celebração, comunico oficialmente que dentro de um, no máximo dois meses será publicado meu primeiro livro, uma reunião dos contos publicados aqui neste espaço, não todos, mas alguns cuidadosamente selecionados, revisados e devidamente editados, que trará no título o nome do conto publicado na última quarta-feira, “Sobre deus, morte, amor e outras mentiras sinceras.”, e cuja capa eu terei a honra de estampar uma obra do artista plástico florianópolitano, Mausé.

Obrigado pela sua audiência, volte sempre. Como diria meu querido amigo Daca, entre, fique a vontade, mas não abuse, recebo bem as visitas, mas a casa continua sendo minha.

Que em 10 de dezembro de 2011, sejam 88 as fotinhos ali do lado!

Saravá,

David Mattos.

(PS 1: Sim, aquele ali da foto no começo do texto sou eu, com um ano de idade mas já mostrando muito bom gosto ao me vestir, trajando o que de mais belo um ser-humano pode trajar: a camisa do Figueirense!)

(PS 2: Sim, este aí abaixo também sou eu, servindo "pinissilina", uma cachaça muito tradicional nos piores botecos de Florianópolis, para um gambá empalhado, trinta anos depois da foto de cima)

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Sobre deus, morte, amor e outras mentiras sinceras


Foi logo após enxugar da sua testa o suor oriundo do grande esforço que teve que fazer para desprender aquela alma assustada do corpo já sem pulso, que a Morte deu-se conta da cagada que fizera.

Tinha nos braços a alma de Maria Alice, uma jovem de vinte e três anos, mas era a alma de sua idêntica irmã gêmea, Maria Eduarda, que ela, a Morte, deveria ter ceifado.

Talvez para os que não são sabedores dos meandros que envolvem este árduo trabalho que só faz com que seja odiada, uma morte a mais outra a menos, não lhes pareça grande coisa, mas é importante frisar que existe toda uma calculada metodologia na execução desta fatídica tarefa.

A ordem dos acontecimentos depende diretamente da precisão com que as vidas são colhidas da terra. Mesmo nas grandes catástrofes, jamais houve excesso ou esquecimento. Morre-se somente o número exato de pessoas, colhe-se a medida precisa de almas para que o equilíbrio dos fatos não se desordene além do tolerável, o que tornaria impossível a manutenção da harmonia entrópica do universo.

Fora rigorosíssimo o processo de seleção pelo qual passara a Morte, até receber diretamente das mãos sagradas de Deus a foice responsável pelo serviço mais sério e importante de todos os tempos.

Para produzir a vida, não se faz necessário qualquer preparo. Até os irresponsáveis o podem. Até adolescentes, quiçá crianças, são capazes de fazê-la. Mas, para matar, não. Para matar é preciso esmero, preparo, uma efetividade inequívoca, alheia ao erro.

E, até então, assim havia sido a conduta da Morte.

Desde o primeiro instante de existência desta Terra em que trabalhava, a Morte jamais havia falhado, sendo condecorada diversas vezes pela competência com que desempenhava suas tarefas atribuídas pelos desígnios divinos.

Seu descuido acarretaria em todo um desacordo generalizado na ordem estabelecida.

Diferente daquilo que se tem propagado pelos profetas diversos, que se auto-intitulam mensageiros dos caprichos de Deus, mas que na verdade não passam de seres com um pouco mais de astúcia do que a maior parte dos homens, e uma oratória um bocadinho mais apurada, não existe o livre arbítrio. Existem muitas coisas divinas, presentes de Deus às suas criaturas, como o gozo, por exemplo. Mas não o livre arbítrio.

Tudo o quanto sucedeu e que está ainda por suceder, já estava previamente deliberado por Deus. Mas, ainda que onipresente e onisciente, são tantas as coisas que envolvem a administração de um local onde diferentes espécies de vida se interseccionam, que mesmo do alto da Sua divindade, Deus não daria conta de tudo. Por isso, designou entidades chaves para Lhe auxiliarem na gestão do todo. A Morte, até pela excelência que lhe era de praxe, há muito era a mais importante destas entidades.

Maria Eduarda deveria morrer.

Na verdade, sequer nasceria, mas Antonio, seu pai, desenvolvera ainda na juventude uma cardiopatia que só seria curada com transplante. Entretanto, dada a raridade do seu tipo sanguíneo e particularidades do seu genoma, não havia entre as pessoas já existentes um doador compatível.

Foi por isso que, ao conceber Maria Alice, Deus fez com que se dobrasse o feto no ventre da esposa de Antonio. Deste modo, enquanto a primeira nasceria com uma importante missão já pré-estabelecida, a segunda serviria de estepe para o pai adoecido, cabendo-lhe por finalidade ceder ao pai, no momento oportuno, o coração que um atropelamento faria parar de bater. Assim, apesar da dor pela perda de uma das filhas, haveria o conforto de ela ter se perpetuado no próprio pai, ao permitir que Antonio permanecesse vivo no sacrifício de Maria Eduarda.

Maria Alice deveria viver.

Ela conheceria Pedro. Apaixonar-se-iam, se casariam e trariam à vida Cecília.

Cecília seria a peça chave da obra de Deus. Mais importante do que a lenda cristã, ela existiria de fato, e de fato mudaria o mundo.

Nasceria com uma inteligência e sensibilidade superior. Aglutinaria o raciocínio lógico dos cientistas mais brilhantes com a sensibilidade humana dos filósofos mais apurados.

A filha de Maria Alice e Pedro desenvolveria toda uma estrutura logística, então inexistente, capaz de fazer escoar de maneira rápida, barata e segura, todo o excedente de alimentos das regiões produtoras, àquelas que morrem desnutridas na míngua da fome.

Desta solução logística que Cecília criaria, surgiria uma nova estrutura social, um modelo de organização política e econômica que aliaria os ideais igualitários do socialismo, com a prosperidade econômica do capitalismo.

Havendo abundância suficiente para saciar as mais severas abstinências alimentares, tantas outras pessoas notáveis passariam a se destacar e, assim como na administração divina as entidades se dividem na coordenação do todo, na Terra, várias novas pessoas brilhantes se fariam notar, convergindo suas inteligências na reorganização do mundo. Mas somente seriam possíveis estes notáveis, a partir da interferência de Cecília na Terra. Sem a solução logística inicial que só ela seria capaz, nada do resto que estava previsto, aconteceria.

Deus projetara Cecília, pois estava cansado. Ela seria, finalmente, a sua chance de descanso. Depois dela, as coisas entrariam nos eixos, e não mais haveria a necessidade da interferência de Deus para que o mundo permanecesse a existir.

Contudo, agora que Maria Alice estava morta, após o equívoco da Morte, nada disso seria viável.

Maria Eduarda não seria capaz de gerar Cecília. Até por que, como nascera apenas para oferecer um coração suplente ao pai cardiopata, sequer fora dotada de fertilidade. E mais, Pedro não se apaixonaria por ela, pois ainda que fosse esteticamente igual à Maria Alice, a centelha nos olhos desta última, que faria com que Pedro se encantasse de imediato, não havia naquela primeira.

Sabedora do estrago que seu erro havia causado nos planos de Deus para aquela família de predestinados, a Morte entrou em desespero absoluto.

Ao perceber que o olhar confuso da alma que tinha nas mãos era de Maria Alice, e não de Maria Eduarda, a Morte caiu num pranto apavorado de culpa e medo, deixando aquela alma que já não entendia nada do que estava acontecendo, ainda mais desorientada.

Largou a alma de Maria Alice no mesmo local onde havia ido buscá-la, e foi direto ao encontro de Deus. Apesar do medo do castigo que certamente teria, precisava da Sua intervenção para tentar reajustar as coisas que, pelo seu descuido primeiro, haviam saído do prumo na exata medida do caos.

Deus ouviu a confissão da Morte com o semblante cerrado. Esfregava suas mãos fortes e grossas sobre a barba muito negra que trazia no rosto, sua testa franzia com uma expressão de preocupação e desalinho, realçando suas rugas de tantas eras.

Afogada no seu choro convulsivo, a Morte se ajoelhou diante de Deus a espera da penitência que lhe caberia, e aceitaria o que lhe fosse declarado merecido, pois tinha plena consciência da gravidade imperdoável da sua falha.

Mas Deus, diferente daquele tirano deus cristão e de todos os vários outros que as pessoas da Terra se habituaram a adorar, era bom.

Com carinho, passou sua mão áspera e calejada do trabalho árduo que realizara desde sempre, pelo rosto encharcado de lágrimas da Morte. Afagou-lhe os cabelos loiros e disse sorrindo, Não fique assim, minha amiga, a culpa não é sua.

O olhar da Morte, agora, tinha ainda mais espanto do que o da alma de Maria Alice.

Eu me demorei demais em trazer ao mundo a solução para o caos que permiti se formar entre as espécies que inventei. Talvez meu erro maior tenha sido o de dar razão a uns bichos, e a outros, asas. Com isso, permiti que se acreditassem uns, melhores do que outros, apesar de terem todos, desde sempre, o mesmíssimo valor. Esqueçamos disso tudo, disse Deus.

E o mundo? Questionou a Morte.

Esqueçamos dele também.

Tudo por causa do meu erro?

Não, minha amiga querida, tudo pelo meu erro em ter feito tanta força boa, como a sua, empenhar sua existência na sustentação de um tipo de vida que nunca fez muito esforço para manter o mínimo de harmonia nem mesmo entre os seus, que dirá com as espécies transversais com que compartilham o mundo.

Mas o Senhor não vai conceder a eles a graça do Seu amor infinito?

Já concedi, eles não fizeram questão de tê-lo. E no pouco caso que fizeram da minha oferta amorosa, acabei lhe sobrecarregando com a impossível tarefa de manter em harmonia aquela gente tão desinteressada pela paz.

Mas e agora, o que devo fazer?

Voltemos todos pra casa, você precisa descansar, foram cansativas demais tuas últimas eras. Vivamos agora com um pouco daquela paz tão boa que conhecemos bem, mas que aquela minha experiência na Terra não fez questão de ter.

E assim, num plano existencial incompreensível para as gentes da Terra, Deus, Morte e todas as demais entidades, voltaram a sua rotina de felicidade perene e imperturbável.

Antonio morreu na fila de espera por um coração compatível.

Maria Eduarda fora abandonada por Flávio, seu marido, quando este descobriu que a jovem esposa não lhe poderia dar o filho que sonhava ter para levar ao campo de futebol.

Ela envelheceu ao lado da mãe, que morrera bem velhinha.

Pedro casou-se com uma outra moça, teve filhos medíocres, sem soluções sequer para suas próprias vidas, que dirá para as mazelas da Terra.

O mundo, algumas poucas décadas depois da morte de Maria Alice, morreu de fome.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Severina Xique-xique


Quando nova, coitadinha, era tão pobrezinha, magrinha, feinha que mesmo naquela cidade de mulheres subnutridas e pele cor de sujeira, não havia quem quisesse lhe namorar.

Genival, seu pai, dizia, Severina, minha filha, só existem dois tipos de mulheres no mundo, as bonitas, jeitosas, que conseguem um bom casamento e estão com a vida feita, ou as inteligentes, que estudam, arranjam trabalho e ficam independentes.

Severina ouvia atenta aos ensinamentos de Genival, que completava sua lição de vida dizendo, Estuda, minha filha, estuda bastante.

Contudo, Severina sonhava com um marido amoroso que lhe amparasse e desse a ela uma vida destas de folhetim, casamento na igreja, casinha com cercado, cachorro, gato, papagaio, uma penca de crianças barrigudas correndo pra lá e pra cá, e ela se multiplicando em mil para dar conta de cuidar das crias enquanto prepararia a janta do seu marido que estaria no serviço.

Mas não havia quem quisesse lhe namorar.

Em alguns dias pensava até em virar freira, pois se era para morrer virgem, que pelo menos fosse por alguma causa nobre.

Também pensava em virar freira, pois corria na cidade o boato de que não era apenas para estudar o Evangelho que os seminaristas visitavam o convento.

Não raro, algumas das freirinhas do convento sumiam por meses, e voltavam depois com um filho no colo.

Virar mãe solteira lhe parecia menos penoso do que morrer virgem.

Para piorar ainda mais o destino que se desenhava diante do avançar dos seus anos, Severina apaixonou-se por Pedro Caroço, um pinguço que não valia seu peso em cachaça.

Na verdade não sabia exatamente se aquilo que sentia era paixão, mas ficou eufórica quando ele a convidou para dançar um rala-coxa dos quentes num show da banda Calcinha Preta, que teve na festa de aniversário da cidade.

Era uma quentura estranha que ela sentia cada vez que ele apertava a cintura dela contra a sua, fazendo roçar as pernas entre os rodopios do arrasta pé. Nem o bafo de cachaça e o cheiro forte e azedo que a falta de hábito de usar desodorante que Pedro Caroço tinha, arrefecia aquela quentura boa que só fazia aumentar.

Pedro Caroço, percebendo que a pequena Severina parecia estar gostando daquelas encoxadas que as outras meninas evitavam, tratou logo de puxá-la pelo braço para um canto escuro atrás das caixas de som e, sem a preocupação de ser delicado, romântico ou algo que o valha, enfiou a mão por baixo da saia de Severina e arrancou-lhe a calcinha com violência. Virou-a de costas para si, tapou-lhe a boca com uma das mãos, com a outra ergueu a saia na altura da cintura, abaixou as suas calças sujas e arremeteu-lhe com força de uma só vez. E depois outra, e outra, e de novo, e com pressa, e com vontade, indo e voltando, segurando o grito de Severina que comprimia os seus olhos enquanto apoiava-se com as mãos na caixa de som, sentindo aquele misto de dor e uma outra sensação desconhecida vindo por trás.

Quando Pedro Caroço terminou, ela virou-se para ele e viu seu sorriso careado cheio de saciedade, já esperando o choro convulsivo da menina deflorada. Um tapa, talvez.

Severina olhou para ele com os olhos marejados, e disse, Eu te amo!

Pedro Caroço ficou assustado, Tá maluca, menina? Não é pra me amar não, endoidou, foi?

Namora comigo?

Que é isso, menina? Quem bebe sou eu! Eu não presto, vai procurar coisinha melhor que não vai ser difícil de arranjar.

Eu sei que você não presta. Você não vale nada, mas eu gosto de você, disse Severina, inspirada na música que vinha de cima do palco.

Eu sou só um pobre bêbado, e pelo que sei, rica você também não é. Se fosse, quem sabe até eu namorasse, mas prefiro ser pobre sozinho do que acompanhado.

E foi embora deixando Severina ali no canto escuro, calcinha arriada e aquela viscosidade leitosa misturada com o vermelho da sua pureza rompida escorrendo-lhe pelas coxas magras.

Naquela mesma semana Severina mudou-se para a capital. Tratou de seguir os conselhos do seu pai e estudou. Estudou muito, fez até um curso de empreendedorismo no Sebrae da região.

Depois de dois anos longe, voltou a sua cidade natal para cuidar do pai que adoecera. Alguns dias depois, morreu Genival. Cirrose. Sua freqüência ao boteco era muito parecida com a de Pedro Caroço, mas o fígado não era tão resistente quanto.

Para surpresa de Severina, seu pai deixara em seu nome uma pequena herança. Uma quantia de dinheiro que, se não era muita, era o suficiente para usar os conhecimentos que o cursinho do Sebrae lhe dera, e abrir o seu próprio negócio.

Em poucas semanas Severina abriu na casa de seu falecido pai a empresa. Na frente do portão uma placa pintada a mão dava nome ao estabelecimento: “Boutik Xique”.

O negócio prosperava, e ela passou a ser chamada na cidade de Severina Xique-xique.

Foi por esses dias que Pedro Caroço apareceu na sua loja como quem não quer nada, dizendo que já não era o mesmo de tempos atrás e que estava procurando serviço, na esperança que Severina lhe oferecesse algo.

Severina sentiu de novo aquela quentura de anos atrás. Suas funcionárias, duas meninas filhas do vizinho, alertaram-na para que não caísse na conversa do pinguço, pois ele só estava de olho é na boutique dela.

Mas os anos na cidade fizeram dela mulher esperta, apesar da quentura que não diminuía.

Pediu que ele voltasse as seis, depois do expediente, que ela pensaria em algo para ele.

No fim do dia, Pedro Caroço apareceu de banho tomado, cabelo penteado e barba feita. Mas o bafo delatava que a cachaça continuava a ser sua companheira mais fiel.

Severina pediu que ele entrasse no cômodo da casa que agora lhe servia de escritório, e fechasse a porta. Ele fez o que ela mandou, e sentou-se na cadeira em frente da mesa da jovem empresária. Severina levantou-se, caminhou até a porta e passou a chave. Pedro Caroço olhou para ela com espanto.

Levanta, ela disse.

Ele obedeceu assustado.

Empurrou-o contra a parede e, sentindo aquele cheiro forte de cachaça vagabunda, sentiu as pernas tremerem e a quentura de um vulcão em lavas entre as suas pernas. Beijou a boca daquele bêbado disfarçado de homem direito, enfiando a mão por dentro das calças de Pedro Caroço. Com os olhos arregalados, assustados, ele sentia a língua dela agitar-se dentro da sua boca.

Severina afastou-se, virou de costas para Pedro Caroço. Ergueu sua saia mostrando que já estava sem calcinha, apoiou as mãos sobre a mesa do seu escritório caseiro e disse, Anda, vem!

Ele titubeou, Mas Severina, não é assim, eu só vim aqui atrás de serviço.

Então, disse ela, se você quer trabalho, vem e faz o serviço direito.

Ele foi.

Por estar um tanto acuado, não teve o mesmo desempenho da primeira vez, mas foi o suficiente para satisfazer Severina.

Terminado o trabalho, ele sentou-se na cadeira com as calças arriadas.

Fora daqui! Disse Severina.

O quê? Retrucou Pedro Caroço sem entender nada.

Anda, vagabundo, fora daqui agora.

Mas Severina, e o serviço que você me prometeu?

Você já fez o serviço, agora fora daqui.

Que é isso, Severina? Eu tô precisando de trabalho de verdade.

Toma.

Que é isso? Trinta reais?

Por esse negócio meia bomba que você me ofereceu, tá mais do que bom.

Ei, peralá, o que você tá pensando que eu sou?

Deixa de frescura, ô vagabundo. Sei que você só quer dinheiro pra cachaça, você não vale nada! Mas faz assim, volte amanhã mais bem disposto, que talvez eu melhore o pagamento.

E assim os dias passaram rápido, com a visita religiosa de Pedro Caroço após o expediente.

Um dia, Pedro Caroço disse meio sem jeito, Por que a gente não namora de verdade? A gente podia namorar, casar, ter filhos.

Eu? Namorar com você? Casar com você? Filhos com você? De jeito nenhum, você não vale nada!

Não valho nada, mas você gosta de mim.

Hahaha, não, eu não gosto de você.

Então por que você faz isso?

Por que você não vale nada, mas eu gosto de comer.

Na manhã seguinte, Pedro Caroço procurou um advogado e acionou Severina judicialmente, processando-a por assédio sexual.

O juíz estipulou uma grana preta como indenização. Para poder pagar, Severina teve que vender tudo o que tinha, inclusive a Boutik Xique. Foi a falência e, mais uma vez, viu-se pobre, pobrezinha.

Pedro Caroço torrou metade do dinheiro da indenização na cachaça. A outra metade ficou com o advogado malandro, que passou a perna no seu cliente na cobrança dos honorários.

Severina entrou em depressão.

Apesar de estar se divertindo com aquela relação de poder que passou a exercer sobre Pedro Caroço, ela começava a considerar seriamente a possibilidade de assumir um compromisso com o velho cachaceiro mas, no excesso de confiança, terminou na falência.

Ele demonstrava estar realmente apaixonado, parecia que o seu interesse era de fato casar com Severina, que nunca entendeu o por que daquela atitude.

Mas as filhas do vizinho avisaram Severina. Ela é que não quis escutar.

Desde o início, ele só estava de olho é na boutique dela.