quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

O Brinde


Ela ficou surpresa quando, no brinde dos noivos, ele recusara a taça de champagne que lhe fora oferecida, substituindo-a por uma outra de água mineral com gás. Ainda mais um champagne daqueles, tão fino, tão saboroso ao ponto de fazer cada gole parecer uma carícia.

Ela fez questão de beber a dose que lhe cabia, até por que, diferente do que manda a tradição, afirmando que é de responsabilidade dos pais da noiva arcar com os custos da festa, nesta, o noivo fez questão de assumir cada centavo da celebração.

Passado o brinde, a foto com as taças empunhadas por braços entrelaçados e o som das palmas ornando a atmosfera iluminada pelos sorrisos dos convidados, ela fez questão de aproximar-se dele e perguntar se estava bem. Não conseguia conceber uma cena daquelas, festa, bebida, alegria, e ele sóbrio.

Ele sorriu meio sem jeito, respirou fundo na esperança que o ar que lhe inflava os pulmões maltratados pelo cigarro, trouxesse além de oxigênio as palavras certas para dizer àquela que fora durante muito tempo a mulher da sua vida.

No breve instante de uma respiração, toda a vida voltou a sua memória.

Lembrou da cena mais linda que ainda hoje habitava seus pensamentos cada vez que se deitava, daquele dia a tantos anos atrás, ela entrando na igreja toda de branco, concentrando-se para não desabar no choro da emoção, amparada pelo senhor que sempre amparara a sua família, vindo até ele com os lábios exibindo o sorriso mais puro, verdadeiro e sincero que já vira. Aquele sorriso era a felicidade, o resto era ensaio sobre o tema, divagações tão imprecisas quanto incapazes de descrever a complexidade do sentimento que naquele sorriso se mostrava tão natural.

Lembrou que na festa do casamento daquele mesmo dia de muitos anos atrás, ele entrelaçou o seu braço ao dela, e bebeu uma champagne de qualidade não tão refinada quanto a que a poucos minutos lhe fora oferecida, mas, mesmo sem ter provado esta última, sabia que não poderia ter sabor melhor do que aquela primeira. Vinha também na sua memória o gosto exato daquele gole, o adocicado do frisante descendo-lhe a garganta eufórica, os olhos de ambos se olhando com uma ternura profundamente amorosa, marejados pelas lágrimas do carinho recíproco do momento encantado. Podia agora sentir o calor da pele dela naquele exato momento de anos atrás, embora não a estivesse tocando.

Em seguida, lembrou também que aquele não fora o único gole que bebera na festa. Já não havia sido o primeiro, e foram tantos os goles noite adentro, que a certa altura da festa o seu estado de descompostura era tanto, que definitivamente não era adequado a um nubente.

Lembrou que no quarto do hotel onde passaram as núpcias, antes mesmo de beijá-la quando encontraram-se enfim a sós, fora ao frigobar buscar uma cerveja. Abriu a lata e tomou-a toda de uma só vez para, só depois, reparar nos braços abertos da então esposa apaixonada.

Lembrou de cada risada que deram no apartamento de um quarto que alugaram graças a dedicação dela em encontrar algo que coubesse no pequeno orçamento somado de ambos.

Lembrou de como foram felizes naquele apartamento que, se na época já era antigo, agora tornara-se antepassado, de tão velho que era o prédio diante dos vários arranha-céus que se erguiam ao redor dele.

Lembrou de como era boa a sensação de sentir os pés dela encostando-se aos seus embaixo do edredon, embora gostasse de esparramar-se sozinho na cama que, mesmo sendo de casal segundo o fabricante, era bastante estreita. Aquele toque compartilhado era melhor do que o espaço exclusivo e egoísta.

Lembrou de como ela aceitara deixar de comprar uma massa um pouco mais refinada, para que não faltasse a ele a cervejinha sagrada que bebia todo fim do dia.

Lembrou de como ela concordou que seria saudável ele beber uma tacinha de vinho por dia, ainda mais com o histórico de problemas cardíacos que a família dele pendurava na árvore genealógica.

Em seguida lembrou-se que não demorou para que uma tacinha tornasse-se duas, em pouco tempo meia garrafa, depois uma garrafa e, quando menos perceberam, já mais de duas eram esvaziadas a cada dia. Os demais acréscimos de quantidade, preferiu não lembrar. O orçamento permanecia curto, mas, cada vez mais, os prazeres a dois eram cerceados para que não faltasse a ele o vinho. Ela fazia isso por amor, ele por desentendimento. Talvez pela tontura da embriaguez.

Lembrou que no início do casamento, era muito comum reunirem-se com amigos em suas casas, ou estes no pequeno apartamento de um quarto deles. Com o tempo, ela passou a aceitar que ele saísse sozinho a tais encontros, pois começava a cansar-se de ser a inconveniente que podava os goles que o tornavam cada vez mais eloqüente. Falava alto, compunha músicas que esqueceria na ressaca do dia seguinte, obrigava a todos tê-lo sempre como o centro dos encontros. No início era até engraçado, depois cansou.

Lembrou que no segundo ano do casamento, ela começou a falar em terem filhos. Ela dizia que queria um filho com a inteligência dele, mas também com a sobriedade dela. Lembrou que quando ela lhe disse isso, ele pensou que preferia que o filho tivesse tudo dela, tanto a sobriedade quanto a inteligência. Um dos fatores que o fizera se apaixonar por ela, fora exatamente a sua inteligência e sensibilidade para as artes e tudo o que é belo.

Lamentou não lembrar se alguma vez disse isso a ela.

Lembrou de como era encantadora a companhia dela, sempre sorrindo, companheira, carinhosa, cúmplice, tolerante. E lembrou-se de como ao fim de cada noite, ela amparava-o junto ao vaso lavado pelo vômito do excesso.

Lembrou que jamais fora violento fisicamente, mas tinha consciência de que se a violência física marca, a psicológica crava. E essa ela suportou resignada por muito tempo.

Lembrou do dia em que foram visitar um pequeno apartamento ainda em construção num bairro distante, minúsculo pelas exigências do mercado imobiliário em fazer do menor espaço algo vagamente semelhante a um lar, e como ela ficara encantada com a possibilidade da prestação do imóvel caber no limitado orçamento de ambos e, assim, poderem ter algo cujas paredes poderiam pintar da cor que bem entendessem, já que não haveria um locador determinando a aparência do recinto.

Em seguida, lembrou da madrugada em que chegou totalmente embriagado depois de gastar no bar um dinheiro que não tinha, mas que o cartão de crédito lhe dava a ilusão da posse e, ao entrar no quarto que abrigava a cama estreita fingida de cama de casal, ela estava encolhida no seu canto do colchão, chorando um choro contido por não terem em três anos de casados conseguido juntar a menor quantia que fosse e, com isso, embora a prestação do apartamento que haviam visitado fosse pequena, não tinham o dinheiro suficiente para dar entrada no imóvel. E era tão pouco o dinheiro necessário... Menos do que o exigido pela posse de um automóvel usado. Mas nem isso eles tinham.

Lembrou que foi pouco tempo depois deste episódio que ela percebeu que o imenso e incondicional companheirismo que oferecia ao marido alcoólatra, era inversamente proporcional ao que recebia. Não tardou para ela perceber que merecia mais e, assim, exigir do ébrio cônjuge o divórcio libertador.

Lembrou que relutou, prometeu mudar, parar de beber, mas lembrou também que aquela não era a primeira vez que prometia isso. Sendo assim, desta vez ela partiu.

Nem por isso parou de beber, agora sozinho no mesmo velho apartamento alugado de um quarto.

Lembrou que foi somente no dia em que soube que ela se casaria com outro, que a decisão da abstinência desabou sobre ele. Não pararia de fumar, pois como já havia fraseado aquele tal escritor semi-desconhecido, “não é saudável viver sem algum vício”, mas no exato momento em que lhe contaram do novo matrimônio da mulher da sua vida, ele erguera um copo de cachaça na intenção do brinde pela felicidade do casal que se formava, e neste gesto, desabou num choro convulsivo que deixou a todos no boteco a surpresa do espanto, e em meio ao pranto percebeu que o brinde que mais a faria feliz, era o feito com um copo d’água. Desde então, nunca mais bebeu.

Muitos anos depois, quando se encontraram pelas vias mais imprevisíveis que se pudesse imaginar, ele tentou conversar sobre o assunto, mas ela disse que não lhe interessava remoer em algo que já estava fossilizado nas eras passadas das lembranças desnecessárias. Ele insistiu, dizendo que não precisavam tapar o sol com a peneira, mas desistiu quando ela disse que o sol já havia se posto, não havia o que tapar.

Agora, na frente dela naquele dia de celebração, copo de água com gás na mão, ele terminava aquela inalação profunda que precisava para responder-lhe o por que de não estar bebendo, e disse-lhe:

Bebendo fiz a mãe sofrer, mantendo-me sóbrio até o fim da minha vida será a oportunidade de fazer a filha feliz e, assim, reparar ainda nesta encarnação o erro que cometi com meu maior amor. Farei agora feliz a mulher que hoje amo como homem, mas, caso antes não tivesse errado tanto, poderia agora estar amando como filha.

2 comentários:

Bruna Rafaella disse...

Pera ai , no final ele casou com a filha dela???
ou eu entendi errado?

Letícia Palmeira disse...

Final não-óbvio. São os melhores. E eu gosto de catar trechos...

"...fossilizado nas eras passadas das lembranças desnecessárias."

Muito bom.