segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Aviso aos navegantes


Caríssimos, ilustríssimos, estimadíssimos leitores deste desbocado blogue.

Entrarei num pequeno recesso de aproximadamente 15 dias, para que consiga me dedicar integralmente à conclusão do meu TCC, adiado há uns 3 anos, mais ou menos. Pois bem, considerando-se o fato que, por mais que já tenha concluído todas as disciplinas, se não entregar este bendito documento até o dia primeiro de novembro perderei o direito ao meu certificado, usarei minhas horas disponíveis para este nobre fim.

Sendo assim, espero sinceramente que daqui a 15 dias vocês lembrem que este espaço existe, e voltem a ler meus escrivinhados.

Em novembro, tudo novo, cara nova, vida nova.

Prometo caprichar, para que a espera valha a pena!

Vejo vocês no dia de finados!

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Feliz aniversário, Don Mattos

i like it, i'not gonna crack
i miss you, i'not gonna crack
i love you, i'not gonna crack
i killed you, i'not gonna crack

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

De pai pra filho


Doía, doía muito, tantos eram os machucados.

Contudo, mais do que os machucados, doía-lhe pensar no que seria dos filhos, como ficariam, quem haveria de lhes proteger, quem desceria com eles até a quadra do prédio para jogar futebol nos domingos a tarde, quem estaria do lado do pequeno para lhe amparar no dia em que criasse coragem para pedalar sem as rodinhas que sustentavam sua pequena bicicleta de pé, quem ensinaria para o maior, daqui um ano ou dois, o jeito certo de fazer a barba? A esposa não tinha paciência, quem lhes ajudaria com as lições?

Por melhor que fosse um provável segundo marido, era impossível que outro homem tivesse tanta química com ela na hora de interpretar os personagens das historinhas que contavam para divertir o pequeno, ela fazendo sempre a voz masculina, ele a feminina e o pequeno gargalhava. Que saudade da gargalhada do pequeno...

Por melhor que fosse um provável segundo marido, era pouco provável que encontrasse alguém tão esclarecido a ponto de, mesmo sem acreditar no transcendental que a maior parte das pessoas habituou-se a cultuar, ser capaz de explicar cada uma das crenças ao maior, sem forçar-lhe a crer nessa ou naquela religião, fornecendo-lhe apenas as informações necessárias de cada uma delas, para que pudesse tirar suas próprias conclusões e fazer suas próprias escolhas. Que saudade das conversas com o maior...

E lembrou-se do sorriso da esposa, dos olhos atrás das lentes dos óculos brilhando tanto que nem mesmo a lente anti-reflexo era capaz de disfarçar. E lembrou-se de como amava os seus pés pequenos, e de como ela lhe oferecera uma espécie de amor tão inteiro, que ele nem concebia direito. Lembrou de como cada um dos dias em que viveu ao lado dela, foram perfeitos, plenos, e que nem a constante falta de grana fora capaz de abalroar aquele sentimento tão singular.

E quando fez menção de chorar por ela, antes chorou pela dor que uma das costelas quebradas lhe impingiu no momento em que curvou-se no porta-malas do Del Rey Guia 88, que agora habitava sem ter tido opção de procurar morada melhor.

Costelas quebradas a socos, dentes quebrados a chutes e o gosto familiar, mas, ainda assim estranho, do seu próprio sangue, que vertia das gengivas arrebentadas. Do mundo que, antes, ao lado da família que tanto amava, sempre lhe parecera lindo apesar das dificuldades financeiras impertinentes, agora enxergava pouco, tão inchados estavam os olhos depois das sucessivas agressões sofridas.

Estivessem menos inchados os olhos, talvez reconhecesse o lugar ermo a que fora atirado abruptamente depois de uma freada brusca, pelo careca quase gigante que o ergueu do porta-malas como se não fossem oitenta e quatro os quilos que pesava, tamanha a facilidade com que o ergueu para, em seguida, o atirar ao chão repleto de lama, obra da chuva severa de ontem.

De joelhos, filho da puta, disse o careca.

Não reconheceu como sua, a voz que lhe saiu vomitada boca a fora quando disse ainda esparramado na lama da chuva de ontem, Eu não consigo.

Já tinha ouvido falar, mas não sabia que a coisa era levada assim, tão a sério.

Uma vez, seu sogro lhe falou, Deva para os bancos, todos eles, tantos quantos puderes, só não vá dever pra gente, por que elas, diferente dos bancos, cobram.

O raciocínio médio da maior parte das pessoas que se chegam a médias, decretaria como coisa de vagabundo, safado, desorganizado, mas não se tratava do caso.

Fato é que há tempos o negócio não ia bem. Ia muito mal, para que não se falte com a verdade que os fatos definitivos exigem para si.

Se no começo fora difícil, nos últimos tempos já estava habituado a andar de ônibus. Vendera o carro uns meses atrás, precisava de dinheiro, mas como as prestações do popular usado não tinham chego sequer na metade, não fora muito o que conseguira.

Até os cigarros havia largado, para tentar fazer com que o pouco dinheiro que lhe aparecia vez ou outra, fosse o suficiente para que aos filhos e esposa nada faltasse.

Aquela cervejinha que todo dia lhe fazia uma falta desumana, só tomava quando algum amigo do casal lhes convidava para uma janta qualquer em sua casa, pois se fosse em restaurantes, invariavelmente eram obrigados a declinar do convite, pois não teriam como dividir as despesas.

Enfim, conforme lhe havia alertado o sogro previdente, os bancos, quando indignados com a inadimplência dos seus clientes, o mais grave que fazem é macular o nome dos devedores nos serviços de proteção ao crédito, e aporrinhar-lhes a vida com ligações intermináveis de operadoras de telemarketing embebidas de gerúndio cobrando-lhes uma dívida que já sabem de antemão que não será paga.

Uma pena, para ele, que os agiotas não possuam os mesmos métodos.

A coisa chegou num ponto que, mesmo tendo abdicado do cigarro, da cervejinha, do cineminha, e de todos aqueles pequenos prazeres que deveriam ser protegidos por lei, mas que a lei, filha da cega justiça, não é capaz de enxergar como essencial à felicidade dos por ela protegidos, nenhuma destas privações foram suficientes para poder bancar a prestação abusiva que pagava para que seus filhos tivessem o estudo que julgava serem merecedores, e por esta educação acabou por recorrer aos insensíveis agiotas.

O sogro estava certo, velho filho duma puta!

O careca ergueu-lhe outra vez como se não houvesse peso no metro e oitenta que ostentava, e fez com que ficasse de joelhos.

Começou a chorar em silêncio, só para si.

Sentiu na nuca o cano gelado do revólver que lhe tocava no exato lugar onde, na noite passada, a esposa acariciara na tentativa de fazer-lhe esquecer dos problemas da vida e, pelo menos naquela noite, dormir um pouco.

Tentou segurar, mas não foi capaz, começou a soluçar copiosamente.

O careca pressionou um pouco mais o cano contra sua nuca.

Lembrou dos filhos. Primeiro o menor, quem brincaria com ele? Depois o maior, quem daria a ele os conselhos para que se tornasse o homem de bem que, potencialmente, ele mostrava que viria a ser? Lembrou da esposa e do amor que lhe oferecia, sabia que a dor que sentiria seria de igual proporção.

Começou a cantarolar uma musiquinha boba qualquer, uma que assobiava quando o maior ainda era de colo, e bastava o primeiro assobio para que começasse a fechar os olhinhos e, em poucos minutos, dormiria na paz que toda criança já vem ao mundo sendo merecedora.

O cano do revólver se afastou um pouco, achou que era a distância que antecede o estouro, e assobiou ainda com mais vontade, apesar dos lábios inchados.

O careca começou a assobiar junto com ele.

Por alguns minutos, assobiaram juntos a cantiga de criança, ele não entendia, mas continuava.

O careca parou e disse, Minha esposa está grávida, assobio esta musiquinha para a barriga dela.

Ainda com medo, virou-se para o executor e, se não pudesse ser descrito exatamente como um sorriso, dadas as deformações do rosto que trazia estampadas nas faces, fora esta a intenção.

É um menino, disse o careca.

Tenho dois, ele disse, mas antes mesmo do ultrassom do primeiro, já tinha comprado a primeira camisa do Corinthians para ele.

Também já comprei. Com o nome nas costas e tudo, e sorriu para o corpo que lhe havia sido encomendado, culpa da intrometida empatia que se chegara no meio de ambos.

Do Timão? Perguntou ele.

Lógico, pô, acha o quê, que ele ia ser sãopaulino?

Com certeza não! Se fosse sãopaulino eu agora não estaria todo quebrado, ia estar todo arranhado.

Ambos riram.

E a conversa avançou, ele já não estava ajoelhado, estava sentado ao lado do até então executor.

Mostrou-lhe as fotos que tinha na carteira, deu dicas de como suportar o cheiro na hora da troca das fraldas, uma outra muito boa sobre como arrancar o primeiro dente de leite, sugeriu, inclusive, a escola onde os seus estudavam, escola ótima, mas cara. Caríssima.

Você é gente boa, disse o careca.

Você também é boa pessoa, respondeu ele, e novamente começou a chorar.

O que foi? Perguntou o careca.

E lhe contou os motivos pelos quais estava ali naquela situação, explicou que tudo o que fizera, o dinheiro que pedira, fora única e exclusivamente para poder oferecer aos dois filhos a educação que nunca tivera.

O careca se emocionou, tocou-lhe no ombro como tocam os amigos, mas não chegou a abraçar-lhe, para não se sujar de sangue.

Seus filhos vão ficar bem, disse o careca sorrindo com misericórdia.

Ele sorriu também. Ou algo parecido com isso.

O careca se levantou, ele não tinha forças para tanto.

O careca pegou-lhe pelo braço que não estava quebrado, e o ajudou a se levantar.

Ele sorriu agradecido pelo gesto, mas antes que se desfizesse do rosto deformado pelos socos e chutes o sorriso que esperava ter na face, a bala do revólver do careca estilhaçou-lhe a cabeça.

É que, assim como ele fazia questão de que seus filhos tivessem um bom estudo, o careca fazia questão de que seu filho tivesse, desde sempre, consciência de que é imprescindível ser um bom profissional. Por mais que, vez ou outra, a tarefa dada não lhe agrade, se o patrão mandou, ela tem que ser cumprida.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Um bom dia (enfim)




Foi um Preto muito preto que confundiu à mulher que tateava sonolenta, buscando no criado mudo ao lado da cama o despertador que tocava impertinente. Ela abriu os olhos contrariada, seduzida pelo morno dos lençóis que abraçavam-na tentadores, e contrariada viu o Preto. Era um Preto muito grande e forte, tomava os espaços todos do quarto, não deixando vago qualquer canto para nada mais além de si.

De tão largo que era o peito do Preto, além do quarto dela, a cozinha, a sala, o banheiro, o lavabo do estreito corredor, tudo na casa por ele, o Preto, fora ocupado. E não só na casa, em tudo o mais que havia, o Preto se fazia notar. Só a si e ninguém mais.

Há os que temem os pretos, mas este Preto – tal qual a maior parte dos outros - era uma boa pessoa, um bom amigo. Tanto o era, que sua visita nada mais era do que o anseio genuíno de atender ao pedido de um amigo querido, o primeiro de todos os deuses que houveram. Quando nada mais havia, o Sol era deus bastante, e na sua suficiência partilhada, fazia do mundo um lugar bom. O Preto conhecia bem o Sol, era até parte dele, quando necessário. O Sol disfarçava o Preto, como a anestesia que tenta disfarçar a grosseria do bisturí, querendo convencer que o corte não existe. Mas ele há, e cedo ou tarde irá requerer os ais que lhe são de direito.

Fizeram o Sol e o Preto a combinação de que o Sol, por ser de personalidade mais preguiçosa e leniente, trataria de cuidar apenas de uns poucos planetas, enquanto o Preto, este muito mais disposto ao trabalho pesado, por mais cansativo que fosse, tomaria conta do restante dos universos inteiros. Importante salientar que este Preto não é o escuro da noite, tampouco da madrugada, que nada mais é do que a noite em processo paulatino de desbotamento, clareando os tons negros para tingir-se das cores diurnas. Este é o Preto absoluto, pesado, denso, irrecusável.

Quando os outros tantos deuses não haviam, o Sol e o Preto ocupavam nos universos todos os espaços disponíveis, e é desta época distante que data a amizade de ambos. Não fosse questionável a paternidade, em função da diferença da cor da pele, poder-se-ia dizer até que eram irmãos gêmeos. O certo é que se havia um, era exclusivamente pela existência do outro.

Contudo, o Sol fez-se notar mais profusamente, dada sua indiscrição alegre, tornou-se popular e sinônimo de boas-novas. Mas, diferente de Caim, o Preto não viu no sucesso de seu par motivo para descontentamento, pelo contrário, regozijou-se pelo amigo querido.

Ao Sol atribuía-se as tantas coisas boas, as estações mais belas, as sensações mais ternas, os perfumes mais apurados, as convalescenças, os poemas, as canções, tudo o que havia de bom era acompanhado por algum raio morno que descia do Sol como um afago nos cabelos revoltos do mundo. Isso alegrava o Sol e também o Preto. O Preto orgulhava-se do bem querer que as pessoas tinham pelo Sol, fazia-o feliz a admiração que seu amigo querido despertava em todos. De tão grande o bem querer, não demorou para que os habitantes do mundo passassem a tratar o Sol por divindade. Viam nele a razão, a causa, a justificativa para o que havia de bom, e atribuíam a eventuais indisposições de seu humor, o que por ventura houvesse de ruim. E assim, os dias todos eram bons.

Mas não eram vaidosos, nem o Sol, nem o Preto. E por mais que fosse divertido ser tratado como divindade, o Sol sabia-se apenas parte do todo, nem maior nem menor, nem melhor nem pior do que qualquer outra partícula imprescindível para a manutenção da ordem universal. Talvez por não ter dado importância ao tratamento divinal que recebera, as gentes sentiram necessidade de buscar outros deuses que atendessem suas infindas lamúrias. Precisavam de deuses mais severos, mais rígidos, que lhes impusesse castigos, decretasse pecados, expusesse suas pequenas existências em juízo sacramental.

Dada a índole íntegra e desinteressada do Sol, ele não magoara-se quando perdera o posto de deus que, sem que o houvesse requisitado, lhe deram. Até por que não fazia questão de ostentar as adorações que os outros deuses, todos de caráter pequeno e conduta irresponsável, faziam questão de amarrá-las em cordão de ouro maciço e ostentá-las no pescoço. Os outros deuses tinham orgulho das culpas que inseminavam nas comunidades do mundo, até competiam entre si, para saber qual deles ao cometer um número maior de maldades aos seus adoradores, acabaria por ser ainda mais adorado.

Todavia, quando os anos passaram a acumular-se no depósito do tempo de maneira já bastante notória e volumosa, o Sol notou um comportamento bastante relapso das pessoas do mundo para com as tantas coisas boas que seu calor proporcionava. Não era a falta de bajulação que o apoquentava, mas o descaso com seus singelos cuidados em tornar o mundo uma manjedoura acolhedora e confortável para todas as espécies, tendo elas recebido a vista de quantos reis magos fossem, ou não.

Passavam os anos e mais relaxados tornavam-se os habitantes do mundo, mais sujos, perversos e indignos até mesmo da bondade daqueles deuses de caráter desidioso. O Sol tentou alertar as pessoas, alongou verões, asseverou invernos, eclodiu pequenas catástrofes naturais, alterou marés, tudo na intenção de chamar-lhes a atenção. Mas já fazia tanto tempo que lhe haviam deposto da divindade, que sequer ouvidos lhe davam. Julgavam-se, inclusive, maiores do que ele, o Sol. Acreditavam-se capazes de fazer do mundo e até mesmo da natureza, tudo o que bem entendessem, pois com a suposta inteligência que tinham ganhado dos outros deuses, poderiam reproduzir em seus laboratórios tudo quanto é recurso de que necessitassem. O Sol, outrora divino, agora era tido como residual.

O Sol recolhera-se magoado. Escolheu uma das tantas cidades do mundo, e dela se ausentou sem data marcada para o retorno, e deixou em seu lugar, como se preposto fosse, o Preto, que por ser sabedor da importância que seu amigo tinha para o bem estar do mundo, tentou dissuadi-lo, alertou para as boas pessoas que havia, mas o Sol, ainda que com pesar no coração, já não se interessava por aquela espécie tão vil.

Para que não se causasse pânico, foi no meio da madrugada que o Preto tomou os lugares todos da pequena cidade. Fez do seu negrume espesso, a vida naquela cidade. O ar era negro, as ruas estavam negras, e quando a mulher tateou o criado mudo ao lado da cama à procura do despertador, ainda não havia se dado conta que independente do que fizesse, não haveria luz artificial capaz de cortar a escuridão estabelecida.

Acreditavam as pessoas que a eletricidade dos seus laboratórios, suas fontes, renováveis ou não, de energia, seriam capazes de iluminar qualquer escuro que lhes afrontasse. Mas ainda não haviam sido apresentados àquele Preto. O Preto, quando faz-se presente, não admite luz. Só aceita a interferência do Sol, que por ele é sempre bem-vindo. A mulher tentou o interruptor, a luz do telefone celular, a lanterna que ficava na gaveta do quarto, tateou no escuro até a cozinha, pegou o maço de velas embaixo da pia para acendê-las, mas se assustou quando percebeu que a chama do fósforo que riscara para acender a vela, mesmo tendo queimado a ponta dos seus dedos, não produzira luz nenhuma. Nada podia ser feito, o Preto estava instalado, e até que o Sol resolvesse retornar, daquela cidade não sairia.

Quando as pessoas das outras casas perceberam o profundidade do Preto e deram-se conta de que nada poderiam fazer para ludibriá-lo, acreditaram que saindo da cidade os seus problemas estariam resolvidos. Mas concomitante à ausência da luz, as pessoas todas perceberam que com a chegada do Preto, fora-lhes também removida a disposição para qualquer atitude que pensassem em tomar. Sabiam que não estavam cegos, tanto quanto sabiam também que não voltariam a enxergar. Já não havia em quem quer que fosse a vontade necessária para sair de casa e buscar as respostas que os fariam entender o impasse.

As pessoas ficaram recolhidas às suas camas, encolhidas e muito tristes. Algumas choravam copiosamente pela saudade de um tempo que lhes parecia afastado há séculos, embora fossem poucos os minutos passados desde que o Preto chegara, outras simplesmente ficavam deitadas conformadas com a sentença que recebiam. Alguns ainda pensavam que tratava-se do juízo final prometido por algum dos tantos deuses que haviam passado a adorar, mas outros entenderam que tratava-se da mágoa do Sol.

Mas o Sol não estava magoado pelo desrespeito que tiveram com ele. Sua mágoa era com o desrespeito das pessoas para com o mundo.

Abandonadas por si mesmas em suas camas, as pessoas não entendiam o que se passava com seus animais domésticos, eles permaneciam dispostos, alegres, vivos, e transitavam pelo Preto, como se claro fosse.

Foi no início do terceiro dia, que as primeiras pessoas da cidade abandonada pelo Sol começaram a morrer. Todas permaneciam nas suas camas, deitadas, sozinhas, ainda que estivessem acompanhadas. Não se levantavam sequer para atender as reinvidicações urgentes dos seus organismos. E em pouco tempo todo o ar estava empesteado pelos odores acumulados de todas as pessoas. Poder-se-ia acreditar que numa situação dessas fosse ocorrer uma onda de suicídios, mas não. Nem para tanto havia disposição. As pessoas apenas deitaram-se cegadas pelo Preto.

Por uma mera coincidência, foi no final do sexto dia que a última pessoa viva da cidade parou, para sempre, de respirar. No sétimo dia, o Preto pediu ao Vento ajuda, para afastar dali os odores de dejetos e gente morta, era muita carne apodrecendo entre fezes e urinas. O Preto ficou com pena dos animais, que embora vivos e dispostos, ficavam nauseabundos com o mau cheiro.

Quando, ao meio dia de domingo, o Vento terminou de varrer da cidade os maus cheiros acumulados ao longo daqueles seis dias, o Preto avisou o Sol de que ele poderia voltar, pois já não havia na cidade as pessoas ruins que haviam atrapalhado a coexistência harmônica de tudo o que de tão bom havia. Às três horas da tarde, reticente, o Sol voltou.

Ainda incerto da decisão que tomara, o Sol mandou alguns dos seus fachos mais finos verificarem se aquilo que seus próximos lhe haviam relatado era verdade.

Sim, era verdade.

Não havia no vasto horizonte, que era varrido por seus raios cada vez mais significativos, o menor sinal dos homens.

E o Sol viu que isso era bom.

Agora certo, corajoso, assumiu no céu o posto que lhe estivera reservado desde sempre, mas que deixara vago na noite em que se recolhera magoado. Não usou de prepostos, ele próprio certificou-se que entre as ruínas de uma civilização desnecessária, já não havia qualquer vestígio daquela espécie.

E depois de muito, muito tempo, o amanhecer anunciava, enfim, um bom dia.

O Sol, radiante menos de luz do que da euforia que lhe inundava, decidiu tornar perene a felicidade que, ao menos até então, era circunstancial.

Naquele mesmo dia, nos amanheceres dos outros lugares, com algumas diferenças de horas, o Sol se fez ausente, e o Preto, aquele bem preto, seu amigo mais íntimo e confidente primeiro, tomou nos céus, nos ares, nas ruas, casas, praças, em tudo, o lugar da luz temerária que obstruía a felicidade definitiva.