quinta-feira, 6 de outubro de 2011

De pai pra filho


Doía, doía muito, tantos eram os machucados.

Contudo, mais do que os machucados, doía-lhe pensar no que seria dos filhos, como ficariam, quem haveria de lhes proteger, quem desceria com eles até a quadra do prédio para jogar futebol nos domingos a tarde, quem estaria do lado do pequeno para lhe amparar no dia em que criasse coragem para pedalar sem as rodinhas que sustentavam sua pequena bicicleta de pé, quem ensinaria para o maior, daqui um ano ou dois, o jeito certo de fazer a barba? A esposa não tinha paciência, quem lhes ajudaria com as lições?

Por melhor que fosse um provável segundo marido, era impossível que outro homem tivesse tanta química com ela na hora de interpretar os personagens das historinhas que contavam para divertir o pequeno, ela fazendo sempre a voz masculina, ele a feminina e o pequeno gargalhava. Que saudade da gargalhada do pequeno...

Por melhor que fosse um provável segundo marido, era pouco provável que encontrasse alguém tão esclarecido a ponto de, mesmo sem acreditar no transcendental que a maior parte das pessoas habituou-se a cultuar, ser capaz de explicar cada uma das crenças ao maior, sem forçar-lhe a crer nessa ou naquela religião, fornecendo-lhe apenas as informações necessárias de cada uma delas, para que pudesse tirar suas próprias conclusões e fazer suas próprias escolhas. Que saudade das conversas com o maior...

E lembrou-se do sorriso da esposa, dos olhos atrás das lentes dos óculos brilhando tanto que nem mesmo a lente anti-reflexo era capaz de disfarçar. E lembrou-se de como amava os seus pés pequenos, e de como ela lhe oferecera uma espécie de amor tão inteiro, que ele nem concebia direito. Lembrou de como cada um dos dias em que viveu ao lado dela, foram perfeitos, plenos, e que nem a constante falta de grana fora capaz de abalroar aquele sentimento tão singular.

E quando fez menção de chorar por ela, antes chorou pela dor que uma das costelas quebradas lhe impingiu no momento em que curvou-se no porta-malas do Del Rey Guia 88, que agora habitava sem ter tido opção de procurar morada melhor.

Costelas quebradas a socos, dentes quebrados a chutes e o gosto familiar, mas, ainda assim estranho, do seu próprio sangue, que vertia das gengivas arrebentadas. Do mundo que, antes, ao lado da família que tanto amava, sempre lhe parecera lindo apesar das dificuldades financeiras impertinentes, agora enxergava pouco, tão inchados estavam os olhos depois das sucessivas agressões sofridas.

Estivessem menos inchados os olhos, talvez reconhecesse o lugar ermo a que fora atirado abruptamente depois de uma freada brusca, pelo careca quase gigante que o ergueu do porta-malas como se não fossem oitenta e quatro os quilos que pesava, tamanha a facilidade com que o ergueu para, em seguida, o atirar ao chão repleto de lama, obra da chuva severa de ontem.

De joelhos, filho da puta, disse o careca.

Não reconheceu como sua, a voz que lhe saiu vomitada boca a fora quando disse ainda esparramado na lama da chuva de ontem, Eu não consigo.

Já tinha ouvido falar, mas não sabia que a coisa era levada assim, tão a sério.

Uma vez, seu sogro lhe falou, Deva para os bancos, todos eles, tantos quantos puderes, só não vá dever pra gente, por que elas, diferente dos bancos, cobram.

O raciocínio médio da maior parte das pessoas que se chegam a médias, decretaria como coisa de vagabundo, safado, desorganizado, mas não se tratava do caso.

Fato é que há tempos o negócio não ia bem. Ia muito mal, para que não se falte com a verdade que os fatos definitivos exigem para si.

Se no começo fora difícil, nos últimos tempos já estava habituado a andar de ônibus. Vendera o carro uns meses atrás, precisava de dinheiro, mas como as prestações do popular usado não tinham chego sequer na metade, não fora muito o que conseguira.

Até os cigarros havia largado, para tentar fazer com que o pouco dinheiro que lhe aparecia vez ou outra, fosse o suficiente para que aos filhos e esposa nada faltasse.

Aquela cervejinha que todo dia lhe fazia uma falta desumana, só tomava quando algum amigo do casal lhes convidava para uma janta qualquer em sua casa, pois se fosse em restaurantes, invariavelmente eram obrigados a declinar do convite, pois não teriam como dividir as despesas.

Enfim, conforme lhe havia alertado o sogro previdente, os bancos, quando indignados com a inadimplência dos seus clientes, o mais grave que fazem é macular o nome dos devedores nos serviços de proteção ao crédito, e aporrinhar-lhes a vida com ligações intermináveis de operadoras de telemarketing embebidas de gerúndio cobrando-lhes uma dívida que já sabem de antemão que não será paga.

Uma pena, para ele, que os agiotas não possuam os mesmos métodos.

A coisa chegou num ponto que, mesmo tendo abdicado do cigarro, da cervejinha, do cineminha, e de todos aqueles pequenos prazeres que deveriam ser protegidos por lei, mas que a lei, filha da cega justiça, não é capaz de enxergar como essencial à felicidade dos por ela protegidos, nenhuma destas privações foram suficientes para poder bancar a prestação abusiva que pagava para que seus filhos tivessem o estudo que julgava serem merecedores, e por esta educação acabou por recorrer aos insensíveis agiotas.

O sogro estava certo, velho filho duma puta!

O careca ergueu-lhe outra vez como se não houvesse peso no metro e oitenta que ostentava, e fez com que ficasse de joelhos.

Começou a chorar em silêncio, só para si.

Sentiu na nuca o cano gelado do revólver que lhe tocava no exato lugar onde, na noite passada, a esposa acariciara na tentativa de fazer-lhe esquecer dos problemas da vida e, pelo menos naquela noite, dormir um pouco.

Tentou segurar, mas não foi capaz, começou a soluçar copiosamente.

O careca pressionou um pouco mais o cano contra sua nuca.

Lembrou dos filhos. Primeiro o menor, quem brincaria com ele? Depois o maior, quem daria a ele os conselhos para que se tornasse o homem de bem que, potencialmente, ele mostrava que viria a ser? Lembrou da esposa e do amor que lhe oferecia, sabia que a dor que sentiria seria de igual proporção.

Começou a cantarolar uma musiquinha boba qualquer, uma que assobiava quando o maior ainda era de colo, e bastava o primeiro assobio para que começasse a fechar os olhinhos e, em poucos minutos, dormiria na paz que toda criança já vem ao mundo sendo merecedora.

O cano do revólver se afastou um pouco, achou que era a distância que antecede o estouro, e assobiou ainda com mais vontade, apesar dos lábios inchados.

O careca começou a assobiar junto com ele.

Por alguns minutos, assobiaram juntos a cantiga de criança, ele não entendia, mas continuava.

O careca parou e disse, Minha esposa está grávida, assobio esta musiquinha para a barriga dela.

Ainda com medo, virou-se para o executor e, se não pudesse ser descrito exatamente como um sorriso, dadas as deformações do rosto que trazia estampadas nas faces, fora esta a intenção.

É um menino, disse o careca.

Tenho dois, ele disse, mas antes mesmo do ultrassom do primeiro, já tinha comprado a primeira camisa do Corinthians para ele.

Também já comprei. Com o nome nas costas e tudo, e sorriu para o corpo que lhe havia sido encomendado, culpa da intrometida empatia que se chegara no meio de ambos.

Do Timão? Perguntou ele.

Lógico, pô, acha o quê, que ele ia ser sãopaulino?

Com certeza não! Se fosse sãopaulino eu agora não estaria todo quebrado, ia estar todo arranhado.

Ambos riram.

E a conversa avançou, ele já não estava ajoelhado, estava sentado ao lado do até então executor.

Mostrou-lhe as fotos que tinha na carteira, deu dicas de como suportar o cheiro na hora da troca das fraldas, uma outra muito boa sobre como arrancar o primeiro dente de leite, sugeriu, inclusive, a escola onde os seus estudavam, escola ótima, mas cara. Caríssima.

Você é gente boa, disse o careca.

Você também é boa pessoa, respondeu ele, e novamente começou a chorar.

O que foi? Perguntou o careca.

E lhe contou os motivos pelos quais estava ali naquela situação, explicou que tudo o que fizera, o dinheiro que pedira, fora única e exclusivamente para poder oferecer aos dois filhos a educação que nunca tivera.

O careca se emocionou, tocou-lhe no ombro como tocam os amigos, mas não chegou a abraçar-lhe, para não se sujar de sangue.

Seus filhos vão ficar bem, disse o careca sorrindo com misericórdia.

Ele sorriu também. Ou algo parecido com isso.

O careca se levantou, ele não tinha forças para tanto.

O careca pegou-lhe pelo braço que não estava quebrado, e o ajudou a se levantar.

Ele sorriu agradecido pelo gesto, mas antes que se desfizesse do rosto deformado pelos socos e chutes o sorriso que esperava ter na face, a bala do revólver do careca estilhaçou-lhe a cabeça.

É que, assim como ele fazia questão de que seus filhos tivessem um bom estudo, o careca fazia questão de que seu filho tivesse, desde sempre, consciência de que é imprescindível ser um bom profissional. Por mais que, vez ou outra, a tarefa dada não lhe agrade, se o patrão mandou, ela tem que ser cumprida.

Um comentário:

Bruna Rafaella disse...

Suspeitei desde o princípio!