segunda-feira, 25 de julho de 2011

Let it be (ou, I'me mine)


Se o amor tivesse forma, ele seria fálico.

Até por que, sempre acaba fodendo com a vida da gente.

Foi isso que eu disse para o espelho no dia em que você foi embora. Fiquei com mais raiva ainda pelo fato de você me ter feito chorar. Eu não gosto de chorar. Eu não sei chorar. Mesmo quando choro pouco, parece escândalo. Meus olhos incham, minha boca treme de um jeito estranho, sem ritmo, mas acelerada. Eu soluço de um jeito esquisito. Deve ser engraçado para quem vê, mas não é para mim. Eu fico muito feio, quando choro. Eu babo, quando choro. Eu detesto chorar, e naquele dia você me fez chorar. Deu vontade de te bater, deu vontade de enfiar a mão no meio da sua cara só por me ter feito chorar, mas como você mesma falou, vontade eu até tenho, o que me falta é coragem para romper a fronteira da intenção e chegar à via larga e duplicada do fato.

Cansei da sua cara, vou embora.

Foi isso que você me disse quando foi embora. Sei lá, esperava que numa eventual despedida, você usasse alguma frase deles, escolhesse uma daquelas músicas da fase final, alguma coisa triste, mas com alguma poesia. Você era boa em escolher frases deles para cada momento da vida. Não para os grandes, mas para os pequenos momentos. Como quando a gente transava, você quase lá fechava os olhos, e começava a gritar, “Shake, shake, shake baby, now!”.

Gostava daquilo. Gostava de dividir nossa vida com os quatro. Gostava da trilha sonora que havíamos escolhido.

Confesso que gosto desse tom dramático que a despedida tem. Mesmo sofrendo como uma égua que recebe o cavalo, admito que a dor do pé na bunda me é quase prazerosa, de tão intensa.

Estarei em casa. Imagino que depois de ler isso tudo, você não terá condições de vir até aqui. Mas peça, tão logo seja possível, que alguém venha buscar os nossos gatos. Ela é alérgica aos pelos, eu sei, mas nós dois os adotamos, um de nós vai ter que assumir a responsabilidade. Obviamente, eu já não terei como. Deixei bastante comida e a caixinha de areia limpa. Aliás, enchi aquela outra caixinha de areia, a primeira que compramos, também. Deste modo, caso você demore para ler este email, eles não vão sair mijando pela casa inteira. O Paul é tranqüilo, mas você sabe como o George é, se a caixinha de areia estiver suja, ele mija no sofá. Mas acho que para uns dois dias vai estar tranqüilo. O maior problema talvez seja a comida, eu coloquei bastante, seria até o suficiente para dois, talvez três dias, mas você sabe que eles não gostam de comida velha, se a ração ficar um pouquinho murcha, já não comem. Vira-latas metidos a persas...

Queria ter o dom de escrever algo tão bonito quanto eles para, de repente, fazer você mudar de ideia. Mas eu não sou escritor, sou tradutor. Não crio, só copio. Não tem nada de grandioso na minha biografia. Não escrevi nenhum livro, fodam-se as árvores do mundo e, a única possibilidade de filho que eu tive na vida você encerrou sem me consultar. Mas eu perdoei você. Perdão de merda do caralho. Perdão não é um sentimento nobre, ele é igual a mim: covarde. Perdão é falta de coragem para mandar à merda, é mais fácil fingir que nada aconteceu.

Queria que nossa despedida fosse igual a um desses filmes que gostávamos de assistir, o diretor de fotografia poderia bolar uma bela cena me filmando com a cabeça recostada no vidro do ônibus, eu de blazer de veludo e cachecol em volta do pescoço, algo assim meio inverno londrino. Mas não estamos em Londres e para que o filme fosse nosso, deveria se passar em Liverpool, não Londres. Mais do que isso, para desgraça do diretor de fotografia, fomos nos conhecer numa dessas cidadezinhas insuportavelmente quentes da parte de baixo da linha do equador. E eu não gosto de andar de ônibus, mas ando por que sou pobre, fazer o quê... E eu sei que viver assim, como um eterno aspirante à classe média-baixa, você não quer. E eu sei que viver de outro jeito eu não consigo. Ou, talvez, seja o contrário, você não consegue viver de outro jeito, e eu não quero viver. Um tanto mais apropriado, dito assim.

Rá, nada como um bom suicídio para fazer de mim um homem de coragem no ato final.

Depois do nosso primeiro encontro, achei que viveríamos felizes para sempre, apesar das diferenças. Antes de nos despedirmos você disse que se lembraria de mim em cada segundo do seu dia por pelo menos uma semana. Achei que aquilo era uma espécie de declaração de amor instantânea, dessas que queremos dizer a pessoas que conhecemos pouco, mas, já queremos bem.

Depois, quando já estávamos juntos, você me explicou que disse aquilo por que tinha azia, que sofria de refluxo, e se lembraria de mim por que meu gosto era amargo, e cada vez que o refluxo viesse você inevitavelmente se lembraria de mim. Daria até para sentir o meu cheiro no seu hálito, você dizia. Se eu soubesse que era por isso que você tinha dito que se lembraria de mim, teria preferido que você cuspisse. Mas adorei ver você engolindo.

Eu sabia, todos sabiam que você tinha recém terminado com seu amor. Não imaginava que você se interessaria por mim, afinal de contas, eu era homem. Mas você, mesmo gostando de ter o mesmo que eu na cama, sempre foi tão feminina. Ela também, mas você mais. Todo mundo te respeitava, respeitavam vocês duas, o que não significa que não quisessem, que não quiséssemos comer você. Vocês duas, até. Juntas, de preferência.

Mas no bar alguém tocava Beatles, é preciso coragem para cantar Beatles, não se deve mexer com o que é sagrado, a não ser que se tenha muita coragem. For you blue, grande música, Let it be, grande disco, nunca lhe deram o valor devido, mas é um grande disco, seu charme está exatamente na sua crueza. For you blue, o George sempre foi o melhor, eu pensava. Legal, não é o tipo de música que violeiros de barzinhos costumam tocar, eu pensava enquanto você divertia a todos com sua habitual eloquência. Eu nem sabia o que estava fazendo ali, alguém, conhecido de algum conhecido seu me convidou, como não tinha nada melhor para fazer, aceitei. Normalmente, os violeiros de barzinhos ficam na fase iê-iê-iê. Aí, quando terminou a música, o cara falou, Sei que entre suas cervejas, petiscos e flertes não darão a mínima para o que eu estou falando, mas mesmo assim farei as devidas considerações. Essa foi uma do George, mas até que é bem legalzinha. Se fosse do Paul, certamente seria melhor. Idiota, eu pensei. Você levantou e bateu palmas para ele, sozinha. Idiota, pensei pensando em você. Ninguém no bar entendeu a sua manifestação. Eu entendi. Entendi e pensei, Sapata idiota!

Cheguei a pensar que, se o cara do violão quisesse, no fim da noite ele poderia te chamar de Eleonor que você não se importaria, até por que estaria mais concentrada no que estivesse fazendo, ajoelhada diante dele.

Mas não foi diante dele que você se ajoelhou. Ponto para o George, pau no cu daquelezinho dos olhos caídos.

Lembro que neste nosso primeiro encontro, quase pus tudo a perder. Eu lá me deliciando com o talento que talvez você nem soubesse que tinha, dado o tempo que ficou ao lado dela, curtindo o seu excepcional desempenho durante um bom tempo, você devia já estar cansada de ficar olhando pra cima com olhar de safada para ver se eu terminava de uma vez, aí você parou e perguntou, Vai demorar? Eu sorri e disse, não pára beibi, Here comes the Sun! Você arregalou os olhos e disse indignada, Como é que é? Eu reparei meu ato falho, dizendo, Oh Darling, please believe me, falta pouco, não pára. Você sorriu e continuou, agora sim, satisfeita.

E namoramos. E moramos juntos. E fomos felizes. Sei que fomos. Sei que éramos, tanto quanto sei que ainda poderíamos ser. Poderíamos estar sendo, como diriam aquelas meninas que te ligavam oferecendo cartões de crédito.

Mas você sentiu falta dela e me deixou. The End, sem direito a Reprise.

E agora estou aqui te escrevendo meu email de despedida, ouvindo há horas Yesterday, só para me lembrar de você com um pouquinho mais de dor, ou por acreditar que, caso você se arrependa e resolva voltar para o meu lado, ao girar a chave na porta e ouvir esta música, vai ficar feliz em saber que estou ouvindo ele, e não aquele que era muito melhor do que ele.

Que saco, estão tocando a campainha, já continuo, depois te conto quem era.

Você?

Por que tocou a campainha, perdeu a chave?

Não, claro que não, a casa é sua, você sabe. Deveria saber.

Pois é, essa música até que é legal, admito, ouvia ele para me lembrar de você.

Não, você não está incomodando.

Você veio aqui pra isso? Tudo bem, pode pegar o que você esqueceu, é que, sei lá, vá que você tivesse mudado de ideia. Não mudou, fazer o quê...

Não precisa dizer que você ainda me quer bem, eu não te quero bem, eu te odeio, se te interessa saber. Odeio!

Pára com esse risinho debochado, olha ali para o computador, sabe o que é aquilo? Uma carta de despedida, um email de despedida, vou me matar hoje, logo depois de mandar aquele email pra você. Não acredita, olha ali, bem ali, do lado do computador. O que é aquilo? Uma arma, vou estourar minha cabeça, enfiar uma azeitona na minha têmpora, na minha testa, no meu peito, no meu céu da boca, ainda não decidi o local, mas que vou fazer, isso eu vou. Quer assistir?

Não, eu não estou brincando, vou fazer isso mesmo.

Você nunca viu uma arma? Quer ver? Sim, você pode pegar. Bonita, né? Pesada, né?

Ei, peralá, não aponta isso aí pra mim, vá que dispare. Sim, eu quero me matar, mas deixe que eu me mate, você não precisa ir pra cadeia por causa da minha dor de cotovelo. Claro que me preocupo com você, com seu futuro. Vou me matar por que te amo, porra. Não quero que você vá pra cadeia, lá é foda. Não, nunca estive lá, mas já vi muito Globo Repórter sobre isso, sei que é foda. Não que você não mereça sofrer, você merece. Mas quero que você sofra por culpa pela minha morte, não na cadeia.

Ei, pára com isso, não aponte essa arma para sua cabeça. Quem vai se matar sou eu, não você. Sei que você não gosta de se sentir culpada, é por isso que vou me matar, mas se você se matar não vai adiantar nada.

É sério, pára de brincar com isso. Isso aí é uma arma de verdade, não é brincadeira, não é de brinquedo. É sério, isso pode machucar de verdade, pára de brincar com isso.

É sério, pára de apontar isso pra mim. Pára de apontar isso pra você.

É sério, pára de apontar essa merda, um de nós pode se machucar de verdade, pára com isso, por favor.

Por que eu vou fazer isso? Por que você não tinha nada que voltar pra ela! Você era minha, só minha, você tinha que ficar comigo, só comigo! Eu era seu, eu sou seu, você é minha e ponto final! Mas, já que você não se preocupe com o que eu vou fazer, Let it be, não é você que adora o Paul?

É sério, pára de apontar isso pra mim. Pára de apontar isso pra você.

É sério, pára de apontar essa merda, pára com isso, por favor.

Let it be, não é você que adora o Paul?

E antes que o estampido do revólver espalhasse sobre a tela do computador e pelo tapete os estilhaços dos ossos frágeis da têmpora e tingisse toda a sala com o sangue vermelho escuro, quase preto, ele ainda ouviu a voz dela dizer:

Você não é meu, eu não sou sua. I me mine, não é você que prefere o George?

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Amor padrasto


Que bom que você resolveu conversar mais uma vez.

Não sei se foi a decisão mais acertada, mas precisava te ver.

Eu também.

Eu já não sei se fiz bem ou se fiz mal, em por um ponto final na minha paixão ardente.

Sua música preferida.

Ironicamente é verdade.

Você pensou melhor?

Talvez tenha pensado pior, mas pensei.

Não foi nada disso que você está pensando.

Por favor, me respeite. Não me venha com esse tipo de argumento. Isso me ofende.

Estou dizendo a verdade, mas se te ofende, tudo bem, eu não digo.

Você não tinha esse direito. Você sempre soube o quanto eu te amava, o quanto era totalmente devotado a você, e se aproveitou dos meus sentimentos para me enganar.

Eu não te enganei, o que disse é a mais pura verdade.

Desculpinhas fantásticas são difíceis de se levar a sério, mesmo estando apaixonado como estou, como sempre fui.

Também estou apaixonada, também sempre fui apaixonada.

Você tem ideia do quão sujo foi o que você fez?

Se você acreditasse nas minhas justificativas, entenderia que, às vezes, as circunstâncias nos levam a aceitar coisas que normalmente não aceitaríamos, a fazer coisas que normalmente não faríamos, mas, em nenhum segundo, isso significou que eu não te amasse perdidamente. Mais do que isso, ainda que você não acredite, mesmo tendo aceitado fazer o que fiz, o tempo todo eu só pensava em você e, de certo modo, torcia para que desse tudo errado.

Se isso fosse verdade, você simplesmente não teria aceito, não teria feito.

Não sei te explicar como, mas é verdade, eu realmente desejava que desse tudo errado.

Mas não deu.

...

Faz dias que não durmo, cada vez que fecho os olhos só me vem a imagem das mãos de outro no teu corpo, das tuas mãos num corpo que não era o meu.

Mas, se serve de consolo, eu queria que fossem as tuas.

Não, não serve de consolo. Se você realmente tivesse quisto isso, assim teria sido. Mas, as minhas, você não quis. Preferiu as dele.

Eu já te expliquei.

Eu já não ouvi e, independente do que você diga, não há palavra que me faça mudar de ideia. Você fez por que quis. Você fez por que sentiu desejo. Você fez por que sua amiga faria o mesmo na sua situação. Você fez por que foi suja, desleal, infiel. Você fez, os por quês não vêm ao caso. Você fez, e isto basta.

Sim, eu fiz. Fiz e me arrependo. Se pudesse voltar atrás, não faria de novo, mas não posso. Só me resta admitir o meu erro e te declarar meu amor incondicional e te jurar que jamais farei isso novamente.

Isso você já tinha jurado.

Eu já te expliquei o contexto.

Contexto só serve como explicação quando o principal não fica claro, o que não é o caso. O que você fez foi muito claro, claríssimo. Difícil de conceber, mas muito fácil de enxergar.

Nunca quis te magoar.

Mas sabia que magoaria.

Nunca quis te perder.

Mas sabia do risco que corria.

Por favor, esqueça isso, me perdoe, isso nunca mais vai acontecer, eu juro.

Você já me fez promessa parecida outras vezes, olhando nos meus olhos, e eu acreditei.

Olhe agora, de alguma maneira, você vai perceber que agora é diferente das outras vezes. Eu nunca mais vou permitir que outro se intrometa na vida, no amor que é só nosso.

Nem se ele aparecer de novo?

Nem ele nem ninguém. Estar ao teu lado é só o que me interessa, é só o que me importa, você não imagina como tem sido difíceis estes dias longe de você.

Estão difíceis pra mim também.

Então, esqueçamos de tudo isso que é ruim, vivamos juntos e felizes, sei que posso te fazer feliz, tanto quanto sei que só serei feliz do teu lado.

Eu sempre fui feliz do teu lado.

Então, seja feliz de novo, do meu lado, comigo, só comigo.

Mas agora as coisas se tornaram diferentes. Ainda que eu acredite que você jamais cometerá novamente o mesmo erro, mesmo com ele, de certo modo, ele sempre estará presente.

Eu sei.

Nós sabemos.

Sim, nós sabemos. E, tanto quanto sabemos, tanto quanto te amo mais do que tudo, embora neste momento você não acredite, uma coisa é certa, este filho eu não vou tirar.

Jamais te pediria isso.

Eu sei, e esse é mais um dos tantos motivos pelos quais te amo tanto. Façamos dele o nosso filho, por mais que agora te doa, sei que podemos ser felizes, muito felizes criando este filho juntos. Ele será o seu filho.

Não fui eu quem o fez.

Mas você pode fazer dele um homem tão bom quanto você.

Eu sei que posso, por isso chamei você aqui.

Você vai me perdoar?

Não deveria, mas não consigo imaginar uma vida longe de você. Desgraçadamente, é amor o que sinto, e amor tem essa mania estúpida de perdoar até quando o culpado não é merecedor de tanto.

Eu juro, juro pelo amor que eu sinto, juro pelo nosso amor, juro por tudo o que é mais sagrado, você não vai se arrepender dessa decisão. Vou fazer de você o homem mais feliz que este mundo já viu. Seremos felizes, eu, você e o nosso filho. Sim, NOSSO filho, por que ele será para sempre meu e teu.

Só faço uma exigência.

Qualquer uma, aceito o que for pra ter você de novo ao meu lado. Ao lado meu e do filho que trago aqui nessa barriga que sonha com um carinho teu.

Ele terá o nome que eu escolher.

Pensei em dar a ele o teu nome.

Não. Seria mais uma mentira ver o menino ser chamado pelos outros de Júnior, sabendo que Júnior ele não é. E, de mentiras, já estou saturado. Não as suporto mais.

Mas teu nome é bonito.

Meu nome é simples, quase pobre. Ele seria apenas mais um Zé, Zézinho. O mundo já tem muitos Josés, não precisa de mais um.

Tudo bem, se essa é a condição para ter você de volta, você escolhe o nome. Seja ele qual for, eu aceitarei.

Ele se chamará Jesus.


quarta-feira, 20 de julho de 2011

16 toneladas, 18 quilates


Você já se sentiu feliz?

Não?

Foda-se!

É como me sinto agora.

Feliz pra caralho!

Não é engraçado? Era eu quem deveria sofrer, não?

Foi você quem planejou tudo, não é mesmo? Eu deveria estar agora sofrendo, não é mesmo?

Feliz pra caralho é como me sinto!

Feliz como nunca me senti do teu lado, e olha que cheguei a te dizer eu te amo. Tão difícil eu dizer isso pra alguém...

Mas hoje disse pra outra pessoa, com a boca mais cheia do que quando dizia pra você. De verdade, verdade mesmo. Não por pirraça, de verdade da verdade mais verdadeira que a verdade pode ser.

Amor dezesseis toneladas.

Amor dezoito quilates.

Mais quilates do que aqueles que trocamos no altar diante do homem de vestido.

Feliz pra caralho é como me sinto!

Não, não, não. Não é despeito, não é desabafo, nada disso.

É euforia!

Estou amando, caralho!

Você já amou?

É tão bom, você deveria experimentar!

Talvez aí você encontre alguém.

Amor dezesseis toneladas.

Amor dezoito quilates.

Você foi, eu fiquei, você sorriu, eu sofri, você achou que ganhou, eu achei que perdi, nada disso. Nadinha disso mesmo!

Você dançava tão bem, eu não. Mas, vou te dizer, por melhor que seja teu balanço, o balanço do meu amor é mais legal! Balanço de barco. Barco grande.

Mas, vou te dizer, aproveitando a deixa que você dançava tão bem, você dançou!

Mais legal, bem mais legal que tuas promessas não cumpridas. Tão compridas elas, tadinhas delas, tadinho de você...

Bebo sem medo, fumo sem culpa e cheiro, cheiro muito, muito mesmo o pescoço do meu amor. Não quero nem vou cheirar aquilo que você achava que seria meu destino. Nunca me apeteceu. Se apetecesse, cheiraria. Foda-se você, mas a única coisa que me interessa cheirar é o pescoço do meu amor. Pescocinho gordo, mas cheiroso. Que pescoço, que cheiro...

Uma vez, não sei se você lembra, eu te disse que se um dia você me traísse, acabaria com a sua vida. Sou escorpiana, você sabe. Vingativa, você sabe.

E você, idiota que só você, não levou a sério o meu aviso e me traiu. Idiota!

Mas, é como dizem, a vingança é um prato que se come frio. Como devem estar comendo teu rabo nesse inverno. Geladinho que só ele. Peludinho que só ele, mas, ainda assim, com o frio que faz lá fora, bem geladinho.

Mas, a despeito da minha bunda bem feita, você quis experimentar as coxas dela, só por que as minhas são finas.

Avisei que sou escorpiana, você não levou a sério por que não quis.

Um dia você me perguntou o quanto eu te amava, eu disse muito, você perguntou, Muito quanto?, eu disse, muito muito, porra, você insistiu, Muito quanto?, eu disse, Sei lá, muito pra caralho, um monte, mil amores, você disse, Só?, eu retruquei, Sei lá, uma tonelada de amor, você retrucou, Só?, eu disse, Dez toneladas?, você retrucou, Só?, eu disse, Porra, sei lá, dezesseis toneladas, serve?, você disse, É, dezesseis toneladas serve.

Pois bem, sirva-se, meu amor.

Amor dezesseis toneladas.

Amor dezoito quilates.

Aí você me traiu, idiota. Achou que eu compreenderia. Achou que eu entenderia que você é homem, e homem é homem. Idiota.

Idiota!

Marginalzinho de merda como você sempre foi, deveria ter ficado satisfeito em bater carteiras, roubar som de carro e vender baseado, mas não, quis fingir que entendia do riscado.

Assaltar um banco, que ideiazinha de merda...

Mas, tudo bem, não tenho do que reclamar.

Você foi lá, fez o tal do assalto, caixas e cofres, o caralho.

Azar o seu!

Você foi lá, fez o assalto e tal. Na volta, matou seus cupinchas, olhudo do caralho!

Ligou da rua e mandou eu arrumar minhas coisas.

Arrumei.

Mandou te esperar de banho tomado.

Esperei.

Não só eu, claro.

Eu e os meganha que chamei, claro.

Nossa, que menina boa que eu fui.

Quando você chegou em casa, eles já te esperavam por lá.

Agora, veja só você, foi mexer com uma escorpiana e se deu mal. Não diga que não avisei. Nessas horas você deve estar parecendo a Tetê Espíndola, cantando bem fininho aí na cadeia.

Eu aqui, longe de você.

Aí deve estar bem frio, né?

Julho faz frio por aí, né?

Aqui tá calor, sabia?

Calor como algumas vezes foi a churrasqueira da casa da sua mãe, onde eu sabia que você esconderia o fruto do seu trabalho.

Aqui tem praia, aí o teu humor deve estar nublado pra cacete.

Teu balanço até que era bom, mas o do barco é melhor.

Minha bunda bem feita tá adorando tostar no calor que faz aqui, nesse balanço do barco.

Sabia que rico atrai rico?

Pois é, tem um velho gordinho que ficou afim de mim. Tô dando pra ele.

Dando muito!

Do mesmo jeito sem vergonha que dava pra você.

Deve pesar umas dezesseis toneladas, o velho, mas ele prefere quando eu fico por cima, melhor pra mim.

Você preferia de outro jeito.

Eu até que gostava do seu jeito, mas ele não dá conta.

Sem problema, o resto compensa.

Tô dando muito, por cima.

Você também deve estar dando muito, e do jeito que você gostava. Mas não na ordem que você gostava.

E, além da herança que você me deixou sem querer, vou herdar ainda mais do velho.

Amor verdadeiro.

Amor sincero.

Amor dezesseis toneladas.

Amor dezoito quilates.

Como as jóias que você tirou do cofre para esconder na churrasqueira da vaca velha da sua mãe.

Você sempre soube do risco que corria quando escolheu assaltar um banco.

Talvez você só não soubesse do risco que corria se mexesse com uma escorpiana.

Agora você sabe.



segunda-feira, 18 de julho de 2011

O amor segundo Thedy Corrêa


Se não me falha a memória, era amor o que sentíamos.

Dos bons, até.

Fui fiel, inclusive. E olha que isso não é do meu metier.

Você se encantou pelos meus olhos claros, seios grandes e sorriso luminoso.

Você gostou de eu gostar de Nenhum de Nós.

Quando você descobriu que tínhamos amigos em comum, você sorriu e disse, Diga a ela que me viu sozinho, diga que ela sabe onde eu estou.

Eu achei tão bonitinho...

Desculpe a sinceridade, mas nunca achei nada demais em você, exceto seu jeitinho tímido.

Sei lá, sempre tive um fraco por carinhas com cara de bocó, carinha de colono. Sabe aqueles que parecem que nasceram em Braço do Norte e cresceram plantando fumo ou criando porcos?

Não sabe?

Se olhe no espelho, você vai saber do que eu estou falando.

Enfim, a coisa começou a desmoronar quando aquele amigo em comum te perguntou meu aniversário e você disse, Acho que foi em julho de 83, sempre esqueço o dia, mas lembro do mês.

Aí você me convidou para comer uma pizza, gostei da ideia.

Achei que você me levaria em Coqueiros ou na Hercílio Luz, têm pizzarias ótimas por lá.

Mas você me levou no Kobrasol.

Só rodízio.

Meu Deus...

Esperei você pedir a carta de vinhos e, quem sabe, pelo menos um chileno para amenizar aquela ofensa a qualquer paladar civilizado que as bandejas dos garçons nos ofereciam. Mas você pediu uma Pepsi Twist, e emendou, Vai querer o quê, princesa?

Meu Deus...

No começo, tentei acreditar que as coisas aconteciam com alguma explicação.

E depois só conseguia pensar, Às vezes peço a ele que vá embora, que vá embora.

Quando você pediu pizza de banana com gemada, depois de ter comido três fatias de pizza de milho (puta que me pariu, pizza de milho???), quase levantei e te disse, Às vezes tenho medo até das suas mãos, às vezes tenho medo até do seu olhar, cuidado, o ódio cega e você nem percebe!

Mas não falei nada por medo de você sair dizendo para seus amigos que havia algo de insano nos meus olhos.

Eu poderia até te aceitar, mas quando pensei que se os homens normais já trocam suas famílias, suas filhas, as filhas de suas filhas, imagine você. Ambos sabemos que os homens criam coisas que não deviam conceber, mas eu não preciso criar ou, muito menos, conceber um amor com você.

Só conseguia pensar que, um dia, depois de morta, na hora em que fosse prestar contas a Deus e ele exigisse o recibo dos meus atos, o máximo que poderia dizer era algo como, Eu caminhava e fingia que o tempo passava, e fingia que gostava de alguém...

Deus não me levaria a sério.

Deus não levaria a sério o rock gaúcho.

O filho Dele foi fiel a doze amigos. Humberto Gessinger não conseguiu oferecer fidelidade sequer a dois daqueles que poderiam ser seus potenciais amigos.

Se Ele exigisse satisfação, poderia argumentar em minha defesa que o que eu sentia a respeito dos homens sempre foi estranho.

Na sua derradeira hora, você poderia olhar nos olhos Dele e dizer, Eu amei e acho que algumas vezes ela também me amou, mas não sei se Ele levaria isso em consideração.

Só não me venha com esse papinho de corno resignado dizendo que tá tudo bem se não deu certo, que achou que nós chegamos tão perto. O nosso amor não valeu a pena, e esse não é um final feliz. E eu não vou me lembrar de você. Desculpe.

E não vai ter beijo de despedida, mesmo que você realmente acredite que esse é o beijo que se dá uma vez só na vida, você vai morrer na baga, não vai rolar mesmo.

Chega, largue minhas mãos.

Minhas mãos estão cansadas, problema seu se você não tem mais onde se agarrar. Tudo já se foi, amizade, carinho e amor.

Vou deixar que você se vá.

Me deixe ir também.

Procure o seu caminho, antes de você, eu já tinha aprendido a ser sozinha.

É sério, esqueça, nem amanhã ou depois, sem chance, acabou mesmo.

Sei que você me apresentou para seus pais, e mesmo que sua mãe desmaie e seu pai diga que quer morrer, acabou.

E não é pelo rodízio de pizza, nem pelo blazer de couro e o gel no cabelo.

O problema é que na cama você sempre me pareceu um astronauta de mármore.

Distante e frio.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Vintage


Oswaldo queria parecer moderno.

Mas é difícil parecer moderno quando se chama Oswaldo.

Fato é que Oswaldo se apaixonou por Letícia, menina linda, estudante de arquitetura, ela sim, moderna.

Letícia deu risada quando Oswaldo se declarou, Como posso levar a sério um cara que faz pedagogia? Perguntou Letícia entre risadas diante de Oswaldo, com os olhos marejados e rosa vermelha nas mãos, na tentativa de sensibilizar a mulher culpada pelas suas noites mal dormidas; Qual o problema com o meu curso? Retrucou Oswaldo, Cara, você faz uma disciplina que se chama “Cartaz em papel pardo”, não posso acreditar num homem que gasta seis meses da sua vida aprendendo a fazer cartaz em papel pardo. Vai fazer o quê? Uma declaração de amor pra mim em papel pardo, levar no estádio de futebol na esperança que o Galvão leia o teu cartaz? Se você quiser... Disse Oswaldo no desespero de tentar ser romântico. Letícia riu novamente, virou as costas e deixou Oswaldo plantado no banco da praça de alimentação da universidade, rosa em punho e coração partido.

Apesar das diferenças, esqueça aqueles velhos roteiros cantados por Renato Russo, ambos falavam alemão, ambos gostavam de Godard, ambos entendiam de astrologia, mas ele se chamava Oswaldo e fazia pedagogia, eram esses seus dois pecados. Graves demais para Letícia.

Oswaldo comprou um par de All Star, blazer de veludo, camiseta com a cara do Hitchcock estampada na frente, parou de fazer a barba, trocou a Skol Shot pelas cervejas uruguaias, começou a fumar, tudo para se parecer com os carinhas de geografia que Letícia tanto gostava.

No esforço de disfarçar o mau gosto dos pais na hora de escolher o seu nome, Oswaldo tentou convencer Letícia de que seu apelido de infância era Vadinho, pois sabia que ela era fã de Jorge Amado. Contudo, ao invés de sentir-se atraída pelo cafajeste que por ventura poderia existir num apelido daquele, debochadamente, Letícia passou a chamá-lo de “Dona Flor”.

Mais do que isso, a universidade inteira passou a chamá-lo de “Dona Flor”.

Tornar-se escárnio entre seus pares, não fez Oswaldo sofrer mais do que já sofria pelo desinteresse da mulher amada por suas tantas provas de amor.

Oswaldo mandou um buquê de flores lindo para Letícia, ficou esperando escondido atrás do ponto de ônibus pelo fim das aulas para ver o semblante de sua amada com o ramalhete que mal deveria caber no seu abraço.

Um a um, cada um dos alunos colegas de Letícia foram saindo da sala de aula com uma rosa nas mãos. Ela fez questão de oferecer a cada um dos homens de sua turma uma das flores recebidas, para que fosse ainda mais dolorida a humilhação de Oswaldo.

Do lado de fora da sacada do apartamento de dois quartos que Letícia dividia com cinco amigas, Oswaldo empunhou um violão e fez uma serenata. Esperava que ao menos ela abrisse a janela para lhe dizer uma porção de desaforos, pelo menos se faria notado. Mas ela sequer acendeu a luz, que dirá abrir a janela...

No fim de um dia nublado, cujas horas anteriores Oswaldo ficou se remoendo na dúvida se deveria ou não mandar um carro de tele-mensagem na porta da biblioteca onde Letícia estagiava, o pobre apaixonado aspirante a pedagogo resolveu encher a cara para afogar na cerveja a dor do amor não correspondido.

Horas mais tarde, quando a noite alta já derramava sobre as telhas do deck do bar uma garoa fina e gelada, eis que surge Letícia e seus vários amigos estilosos, modernosos, super cool’s. Oswaldo fez que não notou a presença daquela que lhe tirava do sério e, num gesto, pediu o garçom a vigésima segunda Skol Shot da noite. Estava bem altinho, o Oswaldo.

Diferente dele, que fizera não notar a presença dela no recinto, Letícia de fato não o havia percebido. Para que não se perca a beleza da cena de todo clichê que se preze, foi no momento em que se levantou para ir ao banheiro que Letícia reparou em Oswaldo sentado sozinho no lado de fora do bar, uma pilha de garrafas pequenas de cerveja vazias ornando sua mesa, e um cinzeiro transbordando bitucas de cigarro mentolado.

Letícia achou muito divertida aquela cena degradante, embora clichê, daquele que a tinha por musa. Para fazer ainda mais ardida a dor que sabia que ele estava sentindo, Letícia chamou um dos vários homens com quem dividia a mesa até a porta do bar, puxou-o pelo colarinho e beijou-lhe com fome na frente de Oswaldo.

Oswaldo abaixou a cabeça, sentiu nos lábios o salgado da lágrima que escorrera de um dos seus olhos, levantou lentamente, pegou uma das mini-garrafas que se amontoavam na pequena mesa de plástico, e espatifou-a no meio da testa do cidadão que, se já não entendera o beijo inesperado da amiga, tão menos compreendera a garrafada que veio a seguir.

Letícia arregalou os olhos e gritou impávida, Meu, ‘cê tá maluco?

Oswaldo olhou-a com os olhos chorosos, aos prantos, para em seguida acertar-lhe um soco firme no meio dos lábios, que fez com que dois dos belos dentes que compunham o sorriso sedutor de Letícia voassem rumo as ranhuras das madeiras do deck.

Os demais presentes no bar ficaram estáticos, atônitos. Oswaldo abriu a carteira e jogou sobre a mesa um punhado de notas, suficientes para pagar todas as cervejas que havia consumido, e mais uma bela gorjeta para o solícito garçom.

No dia seguinte, soou a campainha da kitinet que Oswaldo alugava. Cheio do peso da ressaca que lhe fazia parecer carregar um iceberg sobre o pescoço, Oswaldo surpreendeu-se quando, diante de si, estava Letícia. Olhos inchados de tanto chorar, lábios inchados do murro levado na noite anterior, sorriso banguela pela falta dos dentes que lhe foram furtados pelo punho que agora lhe abria a porta, e uma rosa vermelha nas mãos.

Que merda é essa? Perguntou Oswaldo sem entender coisa nenhuma.

O que você fez foi lindo! Disse Letícia.

Bater em você? Você gosta de homens modernos, nada mais antigo, ultrapassado, antepassado, neardenthal do que homem bater em mulher.

Isso não é antigo, é vintage. E nada mais moderno do que um bom vintage.

E, assim, Oswaldo e Letícia passaram a viver juntos, apaixonados, enamorados naquele amor esquisito. Sempre muito felizes.

É bem verdade que, volta e meia, Letícia aparecia com alguns hematomas, uma escoriaçãozinha aqui, outra ali, mas, ainda assim, plenamente realizada.

Não adianta, o amor só é feliz quando é antigo.

Digo, vintage.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Artigo científico


Primeiro ele ligou, ela não atendeu.

Mil coisas perturbaram os pensamentos dele, um misto de suor frio com medo, raiva, ansiedade e culpa por sentir aquilo tudo. Mas sentia.

É que havia algo no passado dela que atormentava os pensamentos dele, como um farelo de madeira deixado no colchão por um cupim mal intencionado e que, por mais que se bata o lençol, não sai de lá.

Mas era coisa superada, ou ao menos assim deveria ser, dado o relacionamento que agora tinham.

Contudo, fingir que já não se sente a dor do chifre na testa calejada, é o mesmo que deixar a luz da sala acesa quando se sai à noite, crendo que o ladrão acreditará que não haverá ninguém em casa.

Na segunda vez que ligou, ela atendeu, mas com aquela voz de quem está no meio da consulta médica e não pode falar direito. Mas não era no consultório o lugar onde ela estava. Era na casa de um amigo que morava com outros amigos. Amigo de faculdade. E era para escreverem juntos um artigo científico, que haviam se reunido. Mas era julho e, por isso, estavam cessadas as aulas para a pausa inter-temporada prevista em todo calendário acadêmico de qualquer faculdade particular que se preze.

Ironicamente, ela atendera o telefonema dele daquela maneira reticente justo no dia em que ele decidira parar de fumar, ou seja, o que antes eram três carteiras por dia, em poucas horas tornaram-se seis. Ininterruptos, os cigarros.

E, assim, por mais que a amasse de uma maneira verdadeira, única e obscena, tanto era o êxtase que ela lhe proporcionava, a assombração da certeza primeira fez da suspeita segunda um martírio insuportável. Tanto que rompeu por e-mail, já que não seria capaz de ouvir a voz da mulher tão amada quanto, agora, repulsiva.

E refutou toda espécie de contato que ela tentara estabelecer nos dois dias seguintes, desligou os telefones, não acessou a caixa de mensagens do computador, dormiu na casa da mãe cujo endereço ela desconhecia, para evitar encontrá-la em frente ao seu prédio.

No terceiro dia, oposto ao terceiro daquele outro, morrera.

Enfarto.

Eram muitos os cigarros fumados consecutivamente. Se para um atleta já seria difícil suportar tanta agressão, imagine para um sedentário igual a ele.

Tivesse atendido algum dos tantos chamados dela, a teria ouvido jurar por tudo o que é mais sagrado, pela alma da mãe, do pai, da irmã, da avó, do cachorro, que não era nada daquilo que ele estava pensando. Que sim, estivera lá na casa do tal amigo da faculdade que morava com outros tantos amigos, mas única e exclusivamente para escrever um artigo científico derivado de um trabalho muito bem feito no semestre recém encerrado, cujo resultado fora tão bom, que o próprio professor os aconselhara transformá-lo em artigo científico. Valeria pontos para todos do grupo, caso um dia quisessem ingressar numa pós-graduação, mestrado, doutorado, ou seja lá o que for. Mesmo que já estivessem de férias. Mesmo que do grupo de oito pessoas, apenas duas demonstrassem disposição suficiente para se reunirem no período de descanso acadêmico.

Mas ele não deu chances às justificativas dela.

Tivesse ele acreditado nas justificativas dela, teriam se casado numa festa linda, embora reservada.

Tivesse ele acreditado nas justificativas dela, teriam construído uma casa linda, de tijolinho a vista numa praia distante, com um mezanino que abrigaria uma mesa de sinuca, conforme ele sempre sonhara.

Tivesse ele acreditado nas justificativas dela, comprariam um daqueles carros espaçosos que esperam por uma penca de crianças para ocupar os bancos traseiros numa baderna de fazer enlouquecer o mais paciente dos budistas.

Tivesse ele acreditado nas justificativas dela, teriam agora três filhos. Dois meninos e uma menina linda, o xodozinho dele. Olhos pequenos iguais aos dele, mas com a cor dos olhos dela.
Sorriso dele, dentes dela. Mãos dela, abraço dele. Temperamento do signo dela, insegurança do signo dele.

Tivesse ele acreditado nas justificativas dela, talvez não tivesse morrido, já que o provável culpado por aquela morte precoce não fora o cigarro de tantos anos, e sim a overdose de nicotina dos últimos dias.

Tivesse ele acreditado nas justificativas dela, certamente teria sido um homem muito feliz.

Tivesse ele acreditado nas justificativas dela, certamente ela teria sido uma mulher muito feliz.

Tivesse ele acreditado nas justificativas dela, certamente teria se enganado.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Histórias para fazer criança dormir


Quando ainda era muito pequeno, acostumou-se a dormir ouvindo as histórias que ela contava cheia de amor e carinho, repletas de moral e bons exemplos. Algumas sacadas da bíblia, outras daqueles velhos disquinhos de vinil coloridos, com capas coloridas e bichinhos falantes que ensinavam as crianças a respeitar os mais velhos, cuidar dos animais, comer tudo o que a mamãe colocar no prato, escovar os dentes após as refeições e jamais esquecer das palavrinhas mágicas: por favor, muito obrigado, me desculpe. A preferida dele era aquela que contava a história de um esquilo bondoso que, um dia, passeando na floresta, encontrava uma jiboia muito machucada, com fome e frio, prestes a morrer. O esquilo bondoso acolhia a cobra, tratava seus machucados, alimentava a nova amiga desamparada e oferecia a ela um cantinho na sua casa, para que se protegesse do frio daquele inverno severo que castigava os animaizinhos da floresta. Um dia, quando o inverno cedeu lugar aos primeiros raios de sol da primavera e a cobra já estava plenamente curada das mazelas que quase a levaram a morte, o esquilo acordou com uma sensação claustrofóbica, abriu seus olhinhos e viu que a cobra o enrolava por inteiro, esmagando seus pequenos ossinhos e já abrindo a boca para devorá-lo de uma só vez. Antes do bote final, o esquilo perguntava para a cobra por que ela estava fazendo aquilo, se ele fora o único que lhe estendera a mão quando ela mais precisou, a cobra respondia dizendo que ela já era uma cobra antes de conhecê-lo, era grata pela ajuda que lhe oferecera, mas nem por isso deixara de ser uma cobra.

A vida do menino havia sido muito difícil antes da adoção. Aquele velho livro de bolso comprado em banca de rodoviária, impresso em papel jornal, com a história que se repete na vida dos tantos desafortunados nascidos num país que nunca se levou a sério. Pai assíduo da penitenciária estadual, alcoólatra, mãe drogada, violência doméstica, pouca comida e muita fome, pouca roupa e muito frio, pouca esperança e muito vazio. Mas o menino era lindo e tímido, apesar da feiúra exibida do mundo que havia ao seu redor desde que nascera, há quatro anos.

Os filhos dela, do primeiro casamento, já estavam crescidos e, sem dúvida, eram boas pessoas, espelhadas no bom exemplo que sempre fizera questão de ser. Agora, com o acúmulo de anos que se intromete na vida das mulheres, as constantes tentativas de uma nova gravidez se mostravam à ela vestidas de frustração, ao invés daquelas lindas roupinhas de bebê que namorava nas vitrines das lojas do Shopping Center.

Contudo, apesar das negativas do tempo em lhe autorizar uma gestação após os quarenta, ela e seu novo marido estavam determinados em oferecer a uma criança um bom bocado daquele amor maduro que viviam.

E foi uma amiga que lhes contou que havia um conhecido que tinha uma vizinha em situação muito delicada, e disposta em ceder a quem quisesse, a guarda do oitavo filho que tivera, um menino lindo de olhos verdes e sorriso tímido, como se tivesse que sentir vergonha por vez ou outra sorrir seus dentinhos precocemente careados. Cederia de bom grado o menino a qualquer pessoa interessada, veria a cruz que lhe coubera carregar nas costas, um pouco mais leve, tirando dela o peso daquela criança subnutrida. Contudo, mesmo estando disposta a ceder de imediato o menino, não se faria de rogada caso os interessados lhe dessem algum dinheiro, sabe como é, esses são tempos difíceis, e no barraco que habitava já não havia muito o que trocar pelas drogas que anestesiavam a acidez daquela sina ingrata que deus lhe dera sem sentir-se culpado um segundo sequer.

Não fora difícil a adaptação, acostuma-se rápido com a bonança.

A dificuldade de aprendizado que o menino sempre apresentara era compreendida pelo dedicado casal como conseqüência das carências que ele sofrera nos primeiros anos de vida. Entendiam que as briguinhas que de vez em quando tinha com algum dos coleguinhas da escola eram parte do processo de adaptação àquele mundo que geneticamente não fazia parte, mas fora convidado a entrar sabe-se lá por quais intenções do destino.

A angústia que sentiram quando ele já divisava com a adolescência e ainda freqüentava as séries de crianças menores, eram consoladas pela possibilidade de pagar para o menino bons psicólogos e reforço pedagógico constante.

Não havia o que não fizessem para que ele se sentisse inserido naquela nova vida, eram compreensivos e cheios de um amor inesgotável. Sentiram que seria preciso endurecer um pouco no trato com o menino, quando o pegaram bebendo a cerveja do pai na geladeira da família, numa madrugada em que todos da casa já dormiam. Tinha quinze anos, o menino, nesta oportunidade. Deram-se conta que uma boa educação não é bastante se for aplicada somente com amor, é necessário dosá-la com disciplina e alguma rigidez. Crescer exige limites, que se aprenda esta lição no seio do lar ao invés de no punho da vida.

Mas, a despeito do seio do lar, era nos seios da irmã mais velha que o menino pensava. Disso deram-se conta quando o flagraram mexendo na gaveta das roupas íntimas da primogênita, cheirando-as com explícita excitação, na ereção que os hormônios juvenis são incapazes de disfarçar.

Como já havia ficado claro que não tinha o menor interesse pelos estudos, concluíram que arranjar-lhe um trabalho seria uma boa maneira de lhe forçar alguma responsabilidade. O pai conseguiu o emprego de officie-boy no escritório de contabilidade de um amigo. Ficaram muito preocupados quando souberam que ele havia sido assaltado na segunda semana de trabalho, e que os marginais que o agrediram haviam levado todo o dinheiro que tinha consigo para pagar as guias dos clientes do escritório de contabilidade. Ficaram mais preocupados ainda quando viram o caríssimo tênis novo que ele escondia embaixo da cama, numa caixa onde também estavam escondidos dois maços de cigarros e um boné ainda com etiqueta, exibindo um valor obsceno que certamente se recusariam a pagar, uma semana após o tal assalto.

A mãe chorava todas as noites tentando entender onde foi que falhara, o que deixara de oferecer àquele menino que tanto amava, o pai consolava-a dizendo que não desistiriam dele, fariam o que fosse preciso, mas fariam daquele filho um homem de bem.

No dia seguinte, uma sexta-feira, tiveram uma séria conversa com o menino, agora com dezesseis anos, avisaram a ele que estavam cerceadas as mordomias e que medidas sérias teriam que ser tomadas, e por mais drásticas que agora tais medidas parecessem, um dia ele ainda lhes agradeceria, e comunicaram-no que iria na semana seguinte para um internato, um colégio militar de tempo integral onde teria a educação firme e disciplinada que não souberam lhe dar, mas que agora se fazia imprescindível. Ele gritou dizendo que não iria, prometeu mudar, disse que pararia de mentir e de fazer coisas erradas, mas os pais foram firmes. Não era a primeira vez que ele lhes fazia aquelas promessas de redenção, em muitas outras oportunidades aquelas lágrimas de olhos verdes lhes convencera, não agora. A decisão estava tomada, e nada que ele lhes dissesse mudaria o que já era certo. Ele trancou-se chorando no seu quarto, deixando na sala o pai com a mãe nos braços, chorando ainda mais.

O irmão já não morava mais naquela casa. Às dez horas da noite, ouviu do seu quarto a irmã partindo com o noivo para uma festa de formatura. Às onze e quarenta e cinco, ouviu os pais desligarem a televisão da sala e irem para o quarto dormir, tentar descansar o peso daquele estresse familiar. Era meia noite e vinte quando ele vestiu o seu boné de grife e calçou o par de tênis caríssimo. Quando o rádio relógio do quarto anunciava que já era passada a primeira hora de sábado, trancou a porta do quarto dos pais por fora, e derramou sobre os vários carpetes que cobriam os largos corredores, todos os potes de álcool de cozinha que havia encontrado na despensa da casa.

No fim da primeira hora daquele sábado, do lado de fora da casa ele acendeu um cigarro e deu uma tragada profunda, soltou a fumaça devagar olhando ela subir para os céus e fundir-se com a fumaça que vinha da casa em chamas.

Enquanto ouvia os últimos ineficazes gritos de socorro dos pais, disse sorrindo para si mesmo, Eu já era uma cobra antes de conhecer vocês, sou grato pela ajuda que me ofereceram, mas nem por isso deixei de ser uma cobra.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Irreversível


As duas últimas coisas que conseguiu enxergar antes de morrer, foram, primeiro o brasão no lado esquerdo do peito, bordado com linha dourada que trazia um homem com porte nobre montado num cavalo, jogando pólo, na camisa de listras horizontais. A segunda e última imagem foi ele já de costas, as mesmas listras horizontais da mesma camisa, indo embora sem prestar socorro e, nas costas da tal camisa listrada, um número 3 costurado por cima das tais listras.

Antes destas lembranças, ela tentou se defender. Mas o grito de socorro que viera até o palato como o vômito apressado que vem depois de muitas doses tomadas ininterruptamente, fora sufocado pela mão grande e peluda do agora assassino.

Antes do grito mudo de socorro, dos dois dentes frontais que trazia no belo sorriso, um voou no carpete do quartinho que entrara voluntariamente, sem saber ao que teria que se prestar involuntariamente, o outro engoliu, ambos impulsionados pelo chute preciso de um pé esquerdo calçando um Democrata novinho em folha, 43, bico largo.

Antes do Democrata esquerdo 43 bico largo em seus bem desenhados lábios, o pé que calçava o par direito do mesmo sapato novinho em folha, golpeara-lhe por pelo menos seis vezes o ventre, causando uma dor desconhecida de tão intensa, mas, caso tivesse a oportunidade de saber a origem da dor que lhe penetrava por cada centímetro do corpo, saberia que era o baço que se havia rompido, fazendo inundar todo o organismo pelo sangue contido naquele pequeno órgão espremido entre o estômago e o diafragma.

Antes de romper-se o baço, sentiu a mão grande e peluda agarrar-lhe os cabelos por de trás da nuca, e forçar o belo rosto de traços finos contra a quina da escrivaninha do pequeno quarto, afudando-lhe os ossos zigomáticos.

Antes de ter sido feito farofa dos ossos zigomáticos, fora atirada no carpete que cobria o chão do pequeno quarto, deitada forçadamente de bruços, e sentira escorre-lhe na face ainda intacta as lágrimas ácidas da dor de quem jamais permitira ao homem amado ultrapassar determinados limites, ainda que vez ou outra tenha tentado, mas o desconforto fizera oposição suficientemente convincente para impedir novas investidas; causadas pela dilaceração do pênis de tamanho obsceno transpassar-lhe o ânus com arremetidas fortes e grosseiras, fazendo com que suas coxas bem torneadas tingissem-se do vermelho sangue que escorria das nádegas agredidas.

Antes do sangue que vinha dos sensíveis vasos sanguíneos que rodeavam seu ânus, a mão grande e peluda lhe deixara de imediato roxo um dos belos olhos castanhos, após um soco que a fizera perder o sentido de orientação e cair no carpete do quarto pequeno e, a mesma mão grande e peluda, rasgar-lhe a sensual lingerie que pretendia usar para seduzir o homem amado no fim daquela noite.

Antes de ter sido rasgada a sensual lingerie, entrara sorrindo no quarto pequeno, dizendo, O que você quer? Acho que você já bebeu demais, hein?!, enquanto do lado de lá da porta fechada do quarto pequeno, a música alta ocupava a atenção e a audição dos demais presentes, esbaldando-se todos com bebidas e alegrias diversas, confusas, ébrias e complementares.

Antes de ter aceito o convite para entrar no quarto pequeno, interrompera a dança que dançava de maneira tão sensual quanto a lingerie que trazia por baixo do vestido que expunha suas costas bem feitas e realçava as formas inequívocas dos belos seios naturais de tamanhos exatos, que balançavam firmes sob o fino pano, tomara a mão grande e peluda, e deu nela um beijo de felicidade e gratidão pelo momento que compartilhava com pessoas tão queridas, e disse, Ficou ótima a camisa!

Antes de reparar no caimento da camisa de listras horizontais, fora até a cozinha para buscar mais uma cerveja e, lá chegando, viu seu amado conversando animado com um amigo em comum. Interrompeu a conversa para beijar o amado com uma paixão que beirava a indecência.

Antes do beijo, percebera o modo invejoso como as demais mulheres da festa a olhavam quando percebiam os olhares cheios de apetite dos seus homens, cada vez que desfilava seu corpo sob o vestido de fino pano que expunha suas costas e contornava seus belos e firmes seios naturais. Era somente ao seu amado que pretendia oferecer as muitas delícias do corpo perfeito que sabia possuir, mas sentia-se mais mulher cada vez que percebia algum dos tantos olhares que salivavam com o seu ir e vir.

Antes das salivas que seu caminhar despertava, dançou com seu amado o mais junto que se é possível dançar em um ambiente público, a música swingada que alguém fizera tocar ainda no começo da festa.

Antes da dança, ela e o seu amado cumprimentaram praticamente todos os demais convidados que já estavam lá antes deles chegarem.

Antes de cumprimentarem os demais convidados que já estavam lá antes deles chegarem, se abraçaram emocionados e demoradamente, os três.

Antes do abraço emocionado, ele abrira o pacote que ambos lhe deram, ergueu a camisa de listras horizontais escolhida por ela, com um brasão no lado esquerdo do peito, bordado com linha dourada que trazia um homem com porte nobre montado num cavalo, jogando pólo, e o número 3 costurado nas costas.

Antes de abrir o pacote, ouviu ela exclamar, para em seguida alertar-lhe, Que festa linda! Só não vá beber demais, hein?! Você sempre faz coisas das quais acaba se arrependendo quando bebe muito, papai.

É que ele não gostava de camisas pólo.

Ainda mais com brasão no peito e número nas costas.

Listradas, então...



PS: Este texto é um plágio descarado do fantástico filme francês "Irreversível", que traz no elenco o orelhudo Vincent Cassel, e a indescritível Monica Belucci, uma mulher que, se você querida leitora, pegasse seu homem na cama com ela, diria algo como, "Tudo bem, amor, ela eu entendo. Vai fundo!"

Embora este texto não seja exatamente a história do filme, o mote e a forma de contar, são os mesmos. Por isso, a confissão de plágio.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Aí você vem, aí você vai


Aí você vem.

Aí você vai.

E quando estou quase convencida que não verei você de novo, você volta.

Filho da puta!

Aí você vem.

E me esbaldo toda, me sinto melhor, mais segura, mais capaz, mais poderosa só por te ter do meu lado. É que você me faz acreditar que, tendo você, sou plena. E quando tudo parece certinho, perfeito, organizado, as coisas todas nos seus devidos lugares, acordo, esfrego os olhos e, de repente, não mais que de repente, cadê você?

Aí você vai.

E tento fingir indiferença, mas sofro. Como eu sofro... É que me falta tudo quando você não está por perto. E durmo pouco quando você não está por perto. E me contento com o mínimo que tiver na geladeira, quando você não está por perto. E revejo os mesmos filmes românticos bobinhos que habitam há eras minha estante empoeirada, e alguns outros que se escondem no HD do meu notebook, quando você não está por perto. Sequer vou à locadora atrás de novidades, quando você não está por perto. Sequer vou à manicure, se você não está por perto. Finjo não gostar de ter as unhas vermelhas, se você não está por perto. E fico com raiva, desejando que você fosse a minha menstruação, ela pelo menos fica comigo cinco dias por mês, você nem isso.

Aí você vem.

E faço questão de me enfeitar inteira, como sou idiota. Devia ser mais durona, mais rígida comigo mesma, mas não adianta, me enfeito inteira. Retoco a raiz dos meus cabelos que finjo ser loiros, corto eles mais curtnhos para que realcem o desejo que minha tatuagem no pescoço deve despertar nos homens que me veem passear pelas ruas toda cheia de mim, toda cheia de ti. E compro lingeries, várias, vermelhas, pretas, brancas, de oncinha, espartilhos, meias que sempre quis ter e me faltava coragem pra comprar, mas tua presença me encorajou. Comprei uma calcinha que quase me envergonho, uma tirinha só na parte de trás. Não é exagero, é uma tirinha mesmo. Compro tudo na esperança de um dia vir a usá-las, mesmo sem saber se vou ter oportunidade para tanta sedução acumulada.

Aí você vai.

E, mais uma vez, me deprimo. Recuso os convites que minhas amigas me fazem e me afundo no meu edredon, ruminando o resto de qualquer coisa que tiver na despensa, e nem para beber, encher a cara eu me animo. Mesmo que quisesse, não conseguiria. Sou fraca para bebidas, você sabe. Mas quando você está por perto, faço questão de pedir Heineken, para mostrar que posso, mesmo sendo mais forte, mais cara do que aquelas outras que minhas amigas tomam, mesmo pegando mais rápido, tomo só para mostrar que posso. Você gosta desta minha característica, sou econômica neste ponto, já que apesar de ser mais cara, preciso beber pouco para ficar toda soltinha. Pouca coisa já faz um estrago grande nas minhas tímidas más intenções. E, assim, outra noite perco o sono regurgitando essa raiva que você me faz sentir por não ver um pingo de vermelho nessa sua cara sem vergonha que me abandona sem sequer se preocupar em como eu vou ficar.

Aí você vem.

E aí você já sabe, a mesma lenga-lenga de sempre. Fico toda cheia de mim, toda orgulhosa de sei lá o quê, toda faceira, toda cheia dessa euforia estúpida que você usa para me intoxicar.

Aí você vai.

Aí você vem.

Aí você vem.

Aí você vai.

Porra, salário, precisava ir embora tão cedo?

Nem chegou o dia dez ainda, precisava ir embora tão cedo?

Mas, por favor, não deixe de vir.


terça-feira, 5 de julho de 2011

O grupo que às vezes frequento


O grupo que às vezes freqüento me disse para não tentar fazer tudo de uma vez só, que meus problemas podem ser resolvidos um de cada vez, que amontoá-los um em cima do outro não me ajudaria a fazer com que deixassem de existir. Um dia de cada vez, dizem as pessoas do grupo que às vezes freqüento. Um brinde a eles. Uma dose do que tiver de mais forte nas garrafas enfileiradas atrás do balcão para cada um deles, por favor. Por minha conta.

O grupo que às vezes freqüento alivia a culpa da minha família, como se estivessem terceirizando a responsabilidade pelas falhas que talvez tenham tido na minha educação, a culpa que sentem por cada vez em que acharam divertido o estado em que eu ficava nas festas de aniversário, natais, casamentos. Ficam orgulhosos meus pais e irmãos cada vez que sabem que fui ao grupo, como se eu deixasse de ser a anomalia da bem estruturada família modelo da classe média, para me tornar um exemplo de coragem, perseverança e superação. Um brinde a minha família. Duas cervejas, por favor, uma para meu pai, outra para meu irmão, um vinho para minha mãe, um Martini Bianco para minha irmã. Por minha conta.

Muito obrigado, dizem as pessoas do grupo que às vezes freqüento, cada vez que invento histórias com desfechos piores do que os que realmente tiveram as minhas, só para que me sinta merecedor de estar ao lado deles, cada um com sua mini-tragédia pessoal, todas regadas a lágrimas, famílias despedaçadas, empregos perdidos e vodca. Um dia de cada vez, dizem as pessoas do grupo que às vezes frequento. Um brinde a eles. Toda a vodca do mundo de cada vez para cada um deles. Por minha conta.

O grupo que às vezes frequento é gentil, mas não muito convincente. Fingem interesse nas mini-tragédias que gosto de inventar, fingem me entender, fingem saber bem o que eu sinto, fingem solidariedade, mas não são muito convincentes. Só estão interessados em fazer das mini-tragédias alheias uma espécie de espelho. Espelho, espelho meu, existe algum cachaceiro mais fodido do que eu? Mais uma mini-tragédia para cada um deles, por favor, sem gelo, mas com uma rodelinha de laranja. Por minha conta.

O grupo que às vezes frequento me diz para evitar o primeiro gole. Não poderia ser o segundo? O primeiro é o melhor de todos, ele não é o problema. O problema são os seguintes. Me dá ressaca, o grupo que às vezes frequento. Um Engov para cada um, por favor. Por minha conta.

As pessoas do grupo que às vezes freqüento acham que têm dores de verdade para sentir. A minha dor, perto da deles, é brincadeira de criança. Pelo menos é o que eles pensam. Eu nunca bati na minha mulher, igual a alguns deles. Eu nunca espanquei meus filhos, igual a alguns deles. Eu nunca cheguei atrasado a uma reunião imprescindível para fechar um contrato de vários zeros após o número inicial da cifra, igual a alguns deles. Eu nunca despedacei a família alheia jogando o carro em cima de um ponto de ônibus, como fez um deles. Eu nunca roubei dinheiro da bolsa da minha mãe para alimentar o vício que todos nós do grupo temos, igual já fizeram alguns deles. Mas eles nunca perderam uma mulher igual a minha. Duvido que pensariam em parar se perdessem uma mulher igual a minha. Um brinde a minha mulher. Uma dose do melhor malte que tiver na mais cara garrafa dessa casa. Por minha conta.

É que lá no grupo que às vezes freqüento, todos se habituaram a fingir que sede é verruga. Sabe aquela mandinga de avó, que diz que se colocarmos um esparadrapo em cima da verruga ela morre por falta de ar? É o que fingem acreditar as pessoas do grupo que às vezes freqüento. Mas sede não se mata com falta de ar. Sede se mata com líquido. Sem ele, ela não acaba. Não tem jeito. Sede se mata com líquido. Mata-se não, sacia-se. Depois ela volta, pede mais, reivindica mais, exige mais. Um brinde a minha sede. Uma dose da mais vagabunda cachaça que tiver nessa espelunca para minha sede. Por minha conta.

Se eles, qualquer um daqueles tantos cachaceiros que se visitam no grupo que às vezes freqüento tivessem perdido uma mulher igual a minha, saberiam do que eu estou falando. E beberiam comigo. Brindariam comigo. Se vissem a desforra dela, saindo com um cara melhor do que eu, um cara que fica bem de chapéu, que bebe quando sai, mas pára quando a civilidade lhe mostra que as doses já foram suficientes, saberiam do que estou falando. Beberiam comigo. Mais do que isso, me proporiam um brinde. Mandariam eu escolher qualquer um dos líquidos das tantas garrafas dos tantos bares que me servem de conforto desde sempre. Por conta deles.

Alcoolatras anônimos não conseguiriam mulheres iguais a minha. Só bêbados conhecidos como eu são capazes de mulheres iguais a minha. Só bêbados que fazem os amigos terem vergonha de admitirem-se amigos de um bêbado igual a mim, são capazes de mulheres iguais a minha. Um brinde a ela. Uma dose do que tiver o maior teor alcoolico. Por minha conta.

O quê?

Você não ouviu nada do que eu disse?

Tudo bem, entendo, você tinha que servir as outras mesas. Tudo bem, é seu trabalho, eu entendo.

Era nada não, falava de um grupo que às vezes freqüento. Coisa sem importância.

Não, não fiquei chateado, esqueça, deixe isso pra lá. Você tem que trabalhar, eu entendo. Já não tenho mais a mulher que um dia tive, mas ainda tenho suas doses bem servidas. Tudo pela sua fiel amizade à gorjeta que você sabe que sempre deixo.

Desce outra.

Por sua conta.

Você me deve essa.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Festa linda!


Festa linda.

Antes dela, convites criativos pagos por ela, alianças pagas por ele, a mãe dá o bolo e as bebidas; o salão e a decoração, a sogra.

Festa linda.

Antes dela, martírio, o dinheiro da mãe e da sogra só dá para 150 convidados, e só depois de marcarem a data na igreja, deram-se conta de que havia mais de 150 pessoas ao redor deles.

Festa linda.

Antes dela, sofrimento, quem ficará de fora? Como explicar aos que não foram convidados?

Festa linda.

Antes dela, alguém próximo e já tendo experimentado aquela experiência por duas vezes, em breve três, deu a dica, A grana é pra 150? Convidem 250, acreditem, quem mais vocês acharem que não faltará, vai esquecer. Convidem 250, sem medo.

Por precaução, convidaram 160.

Festa linda.

Antes dela, peregrinação de casa em casa para entregar os convites, todos deram certeza absoluta que compareceriam.

Festa linda.

Antes dela, prova vestido, escolhe o terno, lingerie especial, branca, meias 7/8, suíte máster, fim de semana no Costão do Santinho pago adiantado, cerimonial quase pelo preço das bebidas, daminha, pajem, guardanapos de linho, gravata para os amigos bêbados cortarem na bandeja, padre amigo da família.

Festa linda.

Antes dela, entra o cortejo de padrinhos, a sogra dele com o pai dele, a mãe dela com o sogro dela, ele e a mãe, pajem apressado, daminha exibida jogando pétalas de rosa enquanto as santas e anjos de gesso da igreja secular escutam, Se essa rua, se essa rua fosse minha...

Festa linda.

Antes dela, Mendelssohn, entra ela, de branco, mais linda que a festa.

Festa linda.

Antes dela, igreja lotada. Cortejo infindo de padrinhos. Pai dele orgulhoso, pai dela puto. Mãe dela orgulhosa, mãe dele puta. Juramento emocionado, troca de alianças, o pajem belisca a daminha, ela chora e sai correndo para o colo da mãe, sentada na terceira fileira da esquerda onde estão os convidados da noiva, conforme manda o figurino segundo o cerimonial. Todos riem da cena. Discurso da irmã dele, discurso do irmão dela, beijo sacramental, arroz na saída da igreja, carro antigo à espera, pausa na cabeceira da ponte para que o fotógrafo registre momentos apaixonados que hão de ocupar os espaços já reservados no apartamento comprado a prestações mais longevas do que a maior parte dos amores eternos.

Festa linda.

Antes dela, a constatação de que dos 160 convidados, 117 vieram, segundo o cerimonial. Entre os faltantes, aquele que lhes dera a dica, Convidem 250, amigo muito próximo, ele. Padrinho, inclusive.

Festa linda.

Antes dela, entrada triunfal no salão, Frank entoa suas melhores notas para recepcioná-los com I’ve got you under my skin.

Festa linda.

Já nela, primeiro o brinde, braços entrelaçados, selinho para selar o já firmado em cartório e diante de Deus e dos 117 convidados presentes, incluindo familiares e o cortejo infindo de padrinhos; depois o bolo, mãos juntas cortando a fatia inaugural de baixo para cima como manda a tradição. É para dar sorte, dizem. O garçom servirá aquela fatia primeira sabe-se lá pra quem. Talvez fique pra ele mesmo, tem cara de quem está precisando de sorte, o garçom.

Festa linda.

Já nela, vídeo no telão com depoimento dos amigos dizendo o quanto ambos são queridos por todos, especiais. Uma amiga diz que ela é uma irmã, mais do que isso, muito mais do que uma irmã. Um amigo diz que ele é o cara, parceiro pra todas as horas, e será o primeiro a estar torcendo sempre pela felicidade do seu bródi.

Todos estão felizes.

Todos estão emocionados.

Festa linda.

Já nela, inaugura-se o Buffet, primeiro os noivos, o garçom os serve, depois os pais, depois o bando de mortos de fome que ficou esperando o padre que se acreditava inspirado estender a cerimônia por quase duas horas. Sem contar o vídeo de depoimentos emocionados e felicitatórios.

Festa linda.

Durante ela, quem manda o repertório é o DJ nas horas vagas, enteado do avô dele, já no terceiro ou quarto casamento. O avô, não o DJ nas horas vagas. Era para ser a banda dos amigos, aquela cujo vocalista, de todos da banda o único verdadeiramente amigo do noivo, que canta tão bem quanto rebola, e que ele, o noivo, esperava que oferecessem o show como presente de casamento, mas cobraram cachê, os paus nos cus. Altíssimo o cachê, os paus nos cus. O DJ das horas vagas foi presente do avô comedor.

Festa linda.

Ainda no início dela, a noiva já havia bebido mais, bem mais do que estava acostumada. O noivo havia bebido tanto quanto estava habituado. E isso era muito.

Festa linda.

Durante ela, os amigos vieram com a bandeja cheia de notas de vinte e cinqüenta, rendera bastante a gravata escolhida pelo noivo para virar picote.

Festa linda.

Durante ela, pelo muito que bebera, o noivo foi ao banheiro, mas entrou na porta errada. Lá, retocando a maquiagem estava a amiga do depoimento emocionado. Ele sorriu seu sorriso bêbado, ela estava bêbada também, e sorriu com igual magia. Puxou-a pela cintura e beijou-lhe do modo que estava habituado a beijar apenas a noiva, agora esposa. E ela viu que, conforme havia relatado sua melhor amiga, de fato ele beija bem. Muito bem. Nisso, entrou no banheiro a irmã da noiva. Que porra é essa? Perguntou a cunhada. Ele sorriu o mesmo sorriso que sorrira para a melhor amiga segundos antes, puxou a cunhada também pela cintura e beijou-a da mesma forma. E assim como Deus, depois de ter criado a escuridão, viu que a luz era boa, a cunhada deu-se conta que a língua do cunhado era boa também. Boa pra caralho! Antes que uma terceira entrasse no banheiro, arrastou ambas para o reservado do vaso sanitário, e fez com elas tudo o quanto a maior parte dos homens sonha em fazer com duas mulheres simultaneamente. Incluindo a indescritível e linda cena de ambas se beijando com fome.

Festa linda.

Durante ela, enquanto estava ausente o noivo, aquele amigo do depoimento, o melhor de todos que tinha o noivo, tirou a noiva para dançar o forró que o DJ nas horas vagas fazia ecoar no salão. Encoxou-a com o apetite que só os muito bêbados possuem e perguntou, Você assistiu a novela ‘O Dono do Mundo’?. Ela disse sim, ele retrucou, Hoje eu sou o Antonio Fagundes, você a Malu Mader e eu vou te comer antes do teu marido. Ela sorriu tão bêbada quanto ele, cedeu àquele amigo no banheiro oposto ao que estava o seu recém-marido e, tal qual a sua irmã, deu-se conta de que aquilo era bom, do mesmo modo que Deus percebera ao criar a luz depois de ter feito a escuridão.

Festa linda.

Depois dela, estavam tão felizes, eufóricos e cheios da fome que só os nubentes frescos possuem, que sequer perceberam aromas alheios nos corpos um do outro. E fartaram-se repetidamente nas carnes um do outro como só os bêbados recém-casados são capazes, já que os bêbados habituais, diários, não dão conta de mais do que umazinha interminável muito da meia bomba.

Festa linda.

Depois dela, dormiram cansados, exaustos, extasiados, exauridos, um nos braços do outro.

Festa linda.

No dia após a ela, acordaram quase que simultaneamente, olharam-se ainda mais apaixonados do que no momento do sim, dito horas antes, e disseram quase que em uníssono:

Que festa linda!