quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

O Corno Póstumo


É que Mariana era cética. Difícil dar crédito a o que quer que fosse que não pudesse provar, sentir, apalpar, ver, cheirar. Fé? Em sim mesma, e olhe lá!

Mas eis que um dia, sua irmã chegou com uma carta. É do Henrique, ela disse. Por mais que tivesse achado graça, Mariana só não riu por achar aquilo uma piada de muito mau gosto. Fazia quase um ano que ele tinha partido pra sempre da face da terra, morte triste, horrível, especialmente pra ela que gostava tanto dele. Mas Camila, sua irmã, pediu que ao menos ela lesse o que estava escrito no papel.

Algumas poucas horas antes, Camila havia ido até um homem que dizia-se médium, capaz de incorporar almas que partiram a pouco e trocar uma ideia com aqueles que ficaram no calvário da vida terrena. Caso aqueles a quem a mensagem que o recém-defunto queria enviar não estivessem presentes no momento da possessão, Fernando, o médium, tratava de psicografar a mensagem pretendida para que fosse entregue ao seu destino. Foi o que fez Camila. Recebeu a mensagem de Henrique, e tratou de levá-la até Mariana.

Por maior que fosse a vontade de mandar Camila à merda, Mariana resolveu ler os rabiscos que trazia no papel reciclado que servira de morada para os tais garranchos. Sim, garranchos, pois era assim que Henrique escrevia. Tão habituado que estava a digitar nas pequeninas teclas do seu notebook, já mal sabia escrever com caneta. Isso em vida, depois de morto então...

Mariana assustou-se, pois ainda que tivesse pego o papel muito a contra-gosto, mesmo sem tê-lo lido, só de observar as formas disformes das letras que se amontoavam no papel vestindo o azul da tinta da caneta, deu-se conta de imediato que seria impossível outra pessoa escrever com aqueles garranchos além do seu finado ex-amor.

"Por maior que seja a falta que teus olhos me fazem, que saudade de te ver de costas, chegando do trabalho, erguer tua saia quando finges distraída e começar assim uma noite que demoraria para terminar. Por aqui não tem dessas coisas, que merda... Saudades, beijos com muitas saudades. Xau, Hique."

Não bastasse a letra, não bastasse o fato descrito, ninguém no mundo terminaria um bilhete com uma saudação daquelas além do seu saudoso Henrique.

Mariana sentou-se com o bilhete nas mãos, e chorou copiosamente. Dentre as muitas coisas ternas que sentia falta, também sentia falta daquele atrevimento indecente.
No dia seguinte tratou de procurar o tal médium. Lindo, ele. Olhos claros, moreno, ombros largos. Mas não eram os olhos claros dele que Mariana buscava, e sim os do seu Hique. Mas eram lindos os de Fernando, o médium. Impossível não notá-los.

Nem bem Mariana dissera bom dia, e Fernando começou a tremer-se inteiro de um jeito estranho, quase engraçado, não fosse a solenidade que o chilique transmitia. Quando parou de tremer, olhou fundo nos olhos de Mariana e, na hora, ela deu-se conta que, embora fossem os olhos de Fernando que a miravam, não era o olhar do médium que fitava seus olhos castanhos.

Henrique? Perguntou receosa Mariana, Que saudade, respondeu o médium com voz mais grave que a do falecido, mas com o mesmo tom de voz que tinha quando vivo.
Antes mesmo que ela tivesse tempo de perguntar como eram as coisas no além, em que parte do além ele estava, se estava bem, o espírito incorporado no corpo do médium avançou sobre o corpo de Mariana e lhe beijou do mesmo modo que beijava antes, quando vivo. Se a letra, o conteúdo do bilhete, a saudação final, se qualquer um destes elementos tivessem deixado a bela Mariana ainda com alguma dúvida, o beijo eliminara qualquer espécie de hesitação, era ele mesmo, o seu Hique. E sem que qualquer pergunta fosse feita, amaram-se ali mesmo, na sala onde o jovem médium costumava atender seus consultados aflitos por mensagens dos entes queridos que haviam partido desta para uma melhor, ou não, usando do corpo de Fernando como intermédio para consumarem a saudade que reciprocamente sentiam, pagando por pedágio apenas o valor da consulta, que ele, o médium, recebeu sentindo um cansaço esquisito, diferente daquele que normalmente sentia quando recebia outros espíritos, certamente mais comportados do que o de Henrique. Mais surpreso do que o cansaço que sentia, Fernando ficou quando ela perguntou se ele tinha horário para o dia seguinte. Para a tarde inteira, ela pagaria tantas consultas quantas ele fosse capaz de fazer numa tarde. Pagaria o dobro, mas precisava consultá-lo de novo no dia seguinte. Ele estranhou, mas estava precisando de dinheiro, aceitou a oferta da bela jovem tão aflita pela perda recente daquele que tanto amara.

Por ser mulher rica, Mariana tratou de comprar toda a agenda do período da tarde de Fernando, e diariamente consultava-o, sem que ele entendesse o tanto de assunto que poderia ter um morto para tratar com alguém que havia deixado na terra. Já tinha consultado casos complicados, mas não se lembrava de outra alma que houvesse deixado tantos assuntos pendentes assim.

Eis que, por melhores que as tardes estivessem sendo, mal o espírito de Henrique começara a desabotoar a blusa de Mariana, ansioso pela bela visão que eram os seios de sua amada terrena, alterou seu humor perguntando em tom ríspido, O que é isso nas suas costas? Isso o quê? Retrucou Mariana, Esses arranhões? Foi você, ontem, não lembra? Tá de palhaçada comigo? Claro que não, foi você, não lembra? Quer me fazer de otário só por que eu morri? Eu rôo as unhas, esqueceu? Não, Henrique, eu não esqueci, você ROÍA as unhas, mas você está morto, lembra? O rapaz que você incorpora não rói. Henrique ficou puto, naquela tarde, por mais vontade que ambos tivessem, nada aconteceu. É provável que tenha sido a primeira DR pós-morte da história, mas ela aconteceu.

No dia seguinte Mariana não apareceu. Nem no outro, no outro e no outro.

Um dia, o telefone de Mariana toca. Era Fernando. Ficou preocupado, há quase dois meses que ela ia até ele todos os dias e, de repente, parara de ir, mesmo com os horários já pagos antecipadamente, simplesmente faltara sem aviso prévio. Mariana ficou comovida com a ligação, Fernando perguntou se ela queria conversar, longe da sala onde recebia os espíritos com tarefas inconclusas, apesar de terem uma relação praticamente comercial, apesar da espiritualidade envolvida, estava disposto a ouvi-la tanto quanto ela precisasse desabafar, criara um apreço sincero por ela.

Encontraram-se num café perto da casa dela, ela contou tudo, inclusive que usava do corpo dele para matar um pouco da saudade que sentia do seu amado. Fernando disse que já sabia, e que talvez por isso tivesse sentido tanta falta, pois apesar de ser usado como meio de transporte para o finado, assim como o cansaço ao fim de cada consulta, sentia também o prazer que havia durante as sessões. Mariana ficou encabulada, Fernando confessou que as unhas nas costas dela foram propositais, uma pequena interferência que conseguira fazer, ainda que nas possessões pouco pudesse com a força dos espíritos que incorporava. Eu gostei, confessou Mariana, Posso fazer de novo, disse Fernando. Mariana ofendeu-se, era mulher fiel, amava o seu Henrique. Mas ele está morto! Bradou Fernando, Mas nosso amor não, retrucou Mariana. Fernando pediu desculpas, disse que não faria de novo, mas pediu que Mariana fosse lá de novo, pois sabia que Henrique estava muito triste sem as visitas dela. Não vou fazer nada, eu juro, será tudo ele, garantiu o jovem médium.

No dia seguinte, lá estava Mariana, determinada a se reconciliar com Henrique, tanto quanto a dar um ponto final naquela história maluca.

Assim como nas vezes anteriores, nem bem Mariana chegou, e Henrique – através de Fernando – precipitou-se sobre Mariana cheio de amor do além pra dar. Mariana não resistia ao beijo de Henrique. Amoleceu-se toda, umedeceu-se toda. No momento em que Mariana, nua e linda, aguardava a arremetida vigorosa que Henrique sempre tivera, olhou com estranheza para Fernando, e viu Henrique gargalhando olhando para o membro do médium, outrora ereto e vigoroso como um espírito do além determinado em estabelecer contato com os vivos, mais cabisbaixo que o olhar dos entes queridos no dia em que partira. Mariana não entendeu nada. Henrique explicou. Disse o finado que, sabe-se lá por que cargas d’água, não conseguia incorporar no maldito Fernando fora daquela salinha pequena e abafada que servia-lhes de alcova, mas conseguia acompanhá-lo aonde fosse, e, deste modo, estava com ele na conversa que haviam tido no dia anterior, no tal café. Henrique ficou puto com a confissão do médium de que podia sentir, e que foram propositais as unhas nas costas de Mariana. Já que ele sentia o prazer que deveria estar restrito a ele, Henrique, e sua amada Mariana, que sentisse também a humilhação de uma broxada diante de uma mulher irresistível como ela era.

Mariana ficou puta, vestiu-se apressada e saiu pisando firme da sala que tantas vezes estivera nas últimas semanas.

Fernando, ciente do ocorrido, mas sem forças suficientes para impedir a fatídica broxada - contra o além pouco se pode – ligou no mesmo dia para Mariana, queria desculpar-se pelo transtorno causado.

Quem atendeu ao telefone foi Camila, irmã de Mariana, chorando muito. Em meio a soluços desesperados, Camila informou Fernando que sua irmã havia sido atropelada naquela tarde, morrera minutos após ter deixado a sala de atendimento do jovem médium.

Fernando ficou desorientado, chorava, estava inconsolável, sem força sequer para suas sessões diárias que dariam um pouco de conforto para velhinhas aflitas pela perda dos seus filhos queridos.

Contudo, um belo dia a urgência das contas que acumuladas lhe cobravam o pagamento já atrasado, Fernando retomou o trabalho mediúnico que a muito se dedicava. Qual não foi sua surpresa quando, na primeira das sessões, ao invés de incorporar o espírito de Afrânio, marido de dona Eulália, fora a velha senhora quem incorporara um espírito diante dele. Era Mariana. Mais surpreso ainda ficou quando dona Eulália, no auge dos seus 84 anos, atirou-se nos braços dele beijando-o sofregamente, beijo que, no primeiro contato dos lábios, sabia que só podia ser de Mariana. E amou a velhinha pelancuda com o mesmo vigor que semanas antes, Henrique havia usado do corpo de Fernando para amar Mariana.

Ao fim da sessão, dona Eulália estava exausta, mas num estado tão radiante de felicidade como nenhuma outra mensagem do seu finado marido a havia deixado anteriormente, por mais que, estranhamente, não conseguisse se lembrar da mensagem recebida. Mas estava feliz, e isso era o que importava.

E assim sucederam os dias, Fernando já não incorporava espíritos, mas sua clientela só aumentava, todas mulheres. Todas Mariana. A cada nova paciente que lhe serviria de recipiente para o fogo que as almas não têm como consumar no além, Mariana exigia nas costas as unhas cravadas de Fernando. Agora, por mais que Henrique tivesse suas eventuais crisezinhas de ciúmes pelos sumiços que ela dava toda tarde, já não havia marcas físicas que comprovassem o seu adultério extra-corpóreo.

Embora sentisse falta dos belos olhos castanhos de Mariana, Fernando sentia na flacidez pálida de suas tantas clientes, a firmeza da pele linda da sua amada morta.

Embora vivesse na morte com o mesmo ciúme que sentia quando vivo, Henrique pelo menos gozava do consolo de ter ao seu lado a alma da mulher que tanto amara quando vivo, e nem mesmo a morte fora capaz de fazê-lo esquecer, até por que, outro tipo de gozo, no além, sem chance.

Embora sentisse falta do vigor de Henrique no corpo de Fernando, Mariana consolava-se com a beleza do jovem médium oferecendo a ela o prazer que a morte lhe privara.

Embora tivessem que, tarde após tarde, pensar em novas desculpas para os seus parentes para os arranhões que traziam nas costas, as clientes de Fernando tornaram-se cativas, pois não entendiam direito como, até por que nunca conseguiam se lembrar delas, mas voltavam pra casa com a certeza de que as mensagens recebidas eram cada vez mais lindas.


sábado, 10 de dezembro de 2011

Esqueça!


Vestido florido, simples, flor na cabeça, esqueça

Não fale isso, não pro teu marido, tu sabe quem é que manda

Mande essas flores pra longe, ninguém me manda, minha aliança não aceita amor
proibido

Aceite as flores, tu já sabe, não há o que proíba o que eu me permito

Se tu não entendeu, eu repito: vá embora, anda!

Não há Deus, muito menos mulher, que diga que em mim manda!

A vergonha tu me rouba, dignidade tu não me arranca

Cala a boca e vista roupa de mulher decente

Não mudo de roupa, as que tu quer já vestem tua puta fingida de santa

Não fale comigo nesse volume, meu ouvido reclama, meu punho te cobra um dente

Puta fingida de santa, animal fingido de gente

Não fale comigo nesse volume, meu ouvido reclama, meu punho te cobra um dente

Puta fingida de santa, animal fingido de gente, vá em frente

Deixa disso, não dê valor pra coisa sem importância

Puta fingida de santa, animal fingido de gente, quer meu dente? Vá em frente!

Deixa disso, faz tempo que tu sabe, é na cama que a gente se entende

Minhas pernas se fecham pra quem se finge decente

Mas só quando elas se abrem pra mim é que tu fica contente

Falando assim tu me ofende

Falando assim é que a gente se entende

Nem tente!

Vem cá, tu sabe, melhor vir de frente

Nem tente, a dor que marca qual brasa o peito, não há pau que dê jeito

Jeito tu sabe que eu dou, brasa tu sabe que eu tenho

Gaste teu jeito com ela, tua brasa já não queima meu leito

Não se faça de besta, não volto sem o que eu quero quando venho

Achar que sempre pode, dentre os muitos que tens, é só mais um defeito

Não se faça de besta, não volto sem o que eu quero quando venho, tu sabe

Teu ego em ti, tal qual teu pau em mim, já não cabe

Só um beijinho, prometo que se depois dele tu não quiser, não passo da cabeça

Tu não vai conseguir nada, esqueça

Eu sou teu marido, porra, vista lá a roupa que eu gosto pra que tu me mereça

Vestido florido, simples, flor na cabeça, esqueça!

domingo, 4 de dezembro de 2011

Aquele abraço para o meu querido amigo André Guesser!


Em 12/07 deste ano, André Guesser me respondeu num comentário que fiz no blogue dele, sobre futebol: "Podes ter certeza que terminaremos na frente de vocês!"

O "nós", sujeito oculto do "terminaremos", referia-se ao pequeno time do sul da ilha de Santa Catarina, o segundo daquela região, atrás apenas o Canto do Rio, tradicional time daquelas plagas. O "vocês", referia-se ao maior time de Santa Catarina, Figueirense Futebol Clube, único time deste estado a desfilar futebol de qualidade pela série A do certame nacional. Aliás, único time do estado a participar do certamente nacional.

Guesser, meu querido, tu tocas muita bateria, mas de futebol entendes pouco. Na verdade, entendes bastante, és um ótimo ala direito no futsal, mas não soubeste escolher o time para o qual torcer. Dislexia, talvez. Fato é, que a pequena agremiação que escolheste para torcer, não faz muito além de te envergonhar, sejamos francos.

A pequena torcida do time para o qual meu querido amigo Guesser torce, que de tão pequena hoje, no último jogo que fizeram na série A, campeonato que nós alvinegros estamos habituados a disputar mas eles se sentem muito desconfortáveis, no estádio deles, havia mais torcida vestindo preto e branco do que as cores deles. Mais não, MUITO MAIS! Que tristeza, que vergonha... Isso para não entrarmos no mérito da partida em si, onde o time da casa se preocupou única e exclusivamente em bater, cometer faltinhas e mais faltinhas (até por que não dava para esperar nada diferente disso, pois se em 37 rodadas não souberam demonstrar futebol, não seria justamente agora que saberiam, ora pois), e ainda aquela expulsãozinha camarada que o juiz arrumou. Mas tudo bem, não vou reclamar dela, caso contrário virão alguns aqui bradando, "peralá, quem chora nessa cidade, nesse estado, sou eu!", deixemos então pra eles as reclamações, até por que, mesmo com um a menos, dominamos do início ao fim o jogo no estádio de tijolinho à vista, tal qual uma churrasqueira, excelente para fazer um espetinho de gato!

Amanhã ou depois, chorosos que são, hão de dizer "nós somos campeões brasileiros, e vocês?".

Pausa para reflexão.

Campeões brasileiros?
Série C?

Disso eu não sou e nem quero ser, por que eu disputo a série A, sabe como é?

Acho que não, né?

Dizer-se campeão brasileiro por ter conquistado a série C, é o mesmo que se dizer bom de cama por ter gozado mais longe num campeonato de punheta.

Terminar o campeonato na nossa frente? Desculpe amigo, não foi dessa vez!

Aliás, quase nunca é!

Aquele abraço do time da MAIOR TORCIDA DE SANTA CATARINA (INCLUSIVE NA CASA DO MINI-RIVAL), único catarinense na série A, maior série invicta, maior sequência de vitórias, MELHOR CAMPANHA, tudo na série A, onde os grandes disputam, sabe como é?

Desculpe, eu sei que vocês não sabem.

Estava falando de time grande, foi mal...

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Rodízio


Eu não devia, é errado, eu sei, tu sabes, nós sabemos, mas essa noite lembrei de ti.

Alguém pediu pizza quatro queijos e me lembrei de ti.

É errado, eu sei, tu sabes, nós sabemos, mas lembrei de ti, fazer o quê?

E tocava uma dessas músicas que se derramam sobre as notas, preguiçosas, que pedem o quadril pra lá, depois pra cá, e lembrei de ti. Tu me olhavas, quadril pra lá, depois pra cá. Tu te viravas, quadril pra lá, depois pra cá. Eu te pedia pra mexer assim, e tu mexias melhor do que eu poderia imaginar. E eu não te tocava, e tu dançavas. E eu não te tocava, e às vezes tu me olhavas. E sorrias com o canto dos lábios. E tu me olhavas com a certeza que minhas mãos estavam surtando de vontade de se agarrarem nas tuas sinuosidades, nas formas que ela reza pra ter, busca academias pra encontrar, recorre a dietas pra possuir, e tu exibes como se fosse fácil. Como se fosse óbvio. Como se fosse o óbvio ululante, como diria o escritor-cronista que tu não sabes quem é, mas que saberia te descrever de um modo que eu não teria como. Ele teria argumentos para te descrever melhores do que tinha para descrever um Fla-Flu. Até por que este clássico não seria nada perto do espetáculo que foi ver tuas mãos apertando teu corpo naquela distância que mantinhas de mim, algo entre a segurança e o excesso de confiança, algo entre o fique aí não chegue perto e o me agarre de uma vez, algo entre a prosa e a poesia, algo entre o violino e o overdrive, algo maior e mais belo que o Fla-Flu que ele descrevia, algo maior e mais bonito que um deles sair na frente, o segundo empatar e em seguida virar, para o primeiro novamente empatar e virar mais uma vez, e mais uma vez, e mais uma vez, e mais outra e mais outra, e não seria nada perto do teu quadril pra lá e depois pra cá.

Era rodízio, veio calabresa e tudo bem.

Portuguesa, sem problemas.

Marguerita, ela adorou.

Baiana, ela não conhecia, mas gostou.

Napolitana, ótima.

Frango com catupiry, não curto, mas ela pediu logo duas fatias.

Quatro queijos, aí deu merda...

Não sei se o problema foi o jeito que eu olhei para o garçom quando ele ofereceu, se foi o fato de eu ter aceitado uma fatia ou simplesmente por ter contado a ela, umas semanas atrás, que quando saíamos, a tua pizza preferida era a quatro queijos. Mas deu merda.

Ela ficou transtornada, começou a gritar. Vergonha no volume máximo. Vergonha gritando como funk em carro de playboyzinho com o porta-malas cheio de auto-falantes. E lembrei que uma vez tu me disseste que dançarias funk pra mim. Não sou muito chegado em funk, mas fiquei te imaginando dançando pra mim, devagar, quadril pra lá, quadril pra cá...

E o volume da voz dela aumentava, a voz se alterava, as pessoas ao redor olhavam, o volume só aumentava.

Ora ela me xingava, ora ela te xingava.

Ora eu lembrava do teu quadril pra cá, ora eu lembrava do teu quadril pra lá.

Fiz cara de assustado pra parecer inocente.

Todo inocente tem cara de assustado.

Chamei o garçom e pedi a conta, ela insistia em gritar.

Do mesmo modo que, involuntariamente, minha lembrança insistia em trazer à memória teu quadril, ora pra lá, ora pra cá.

Ela virava pra mim e gritava, eu me lembrava de ti virando pra mim, dançando, devagar e apertando a moldura perfeita e arredondada dos teus ventrículos.

Ela virou de costas e saiu bufando, batendo o pé, eu me lembrei de ti virando de costas e dançando ainda mais sinuosamente, sabendo que quando dizia que adorava te ver pelas costas, não era algo pejorativo. Muitíssimo pelo contrário.

Já na rua, ela me disse que iria para a sua casa e, caso fosse para a minha, que eu não me engraçasse, dormiria de calça jeans.

E me lembrei do jeito que tiravas as tuas. Devagar, sempre devagar. Quadril pra cá, quadril pra lá.

Disse que, caso dormisse na minha casa, além da calça jeans colocaria uma calcinha gigante, bege.

E me lembrei da tua camisola vermelha, curtíssima. Quadril pra cá, quadril pra lá.

Fiquei em silêncio, ela parou de gritar.

Ela pensou que eu estava magoado.

Eu pensava no teu quadril, ora pra cá, ora pra lá.

Ela me pediu desculpas, eu fiquei em silêncio.

Ela me disse que não dormiria de calça jeans, tampouco usaria a gigante calcinha bege. Usaria o que eu pedisse.

Fiquei em silêncio.

Ela disse que faria o que eu pedisse que ela fizesse, desde que eu a perdoasse.

Não fiquei em silêncio. Disse que, ao menos naquela noite, era melhor que ela fosse para a casa dela, não para a minha. Independente do que ela estivesse vestindo. Independente do que ela viesse a vestir. Usaria a preta que sabia que eu gostava.

Eu não disse nada, mas lembrei daquela sua, de oncinha. Quadril pra cá, quadril pra lá.

Ela ficou com os olhos cheios d’água, disse que estava arrependida, mas entendia a minha mágoa. Dormiria na sua casa, amanhã nos falamos, ela disse.

Melhor assim, eu respondi.

Por isso te liguei.

Entendeu?

Agora chega de explicações.

Tire a calça jeans do jeito que tu sabes que eu gosto que tu tires.

Devagar.

Mostre o quão pouco vestida estás aí embaixo desse tecido todo.

Tirei dançando, devagar, bem devagar, do jeito que tu sabes que eu gosto.

Quadril pra cá, quadril pra lá.

Devagar.

Bem devagar.

Quadril pra cá, quadril pra lá...

Assim...