sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

O fardo de ser preto


Você me disse outro dia que eu não aceito o fato de ser preto.

O fato até que eu aceito, difícil é aceitar o fardo.

Talvez você não me entenda, mas ser preto é um fardo.

E não estou falando da certeza de que se for apresentado para a sua família de brancos, num desses almoços de domingo que toda a brancalhada se reúne na casa da mãe, dos avós, ao redor da macarronada, um tiozinho qualquer, depois de tomar umas e outras vai olhar pra mim e perguntar o que eu acho das cotas de negros nas universidades.

Todos torcendo para que eu diga que sou a favor, só para depois poderem discorrer a tarde inteira sobre como aceitar o regime de cotas é aceitar que os pretos não são tão inteligentes quanto os brancos. Vão dizer que o certo seria cotas para alunos das escolas públicas, já que elas são ruins tanto para os pretos quanto para os brancos, e mais um monte de argumentos de brancos para manterem suas universidades de paredes brancas cheias de gente branca, mantendo para os pretos o lugar cativo da portaria, da segurança, da limpeza.

Como se tua família branquinha da silva não fosse aceitar levar uma vantagenzinha, se tivesse oportunidade.

Se eles soubessem que ontem você não devolveu aqueles dez reais a mais que a menina do caixa te deu quando voltou o troco do lanche, e você ainda argumentou dizendo que aquele é o trabalho dela, se ela não o faz direito, a culpa não é sua; se a sua família branquinha da silva soubesse daquilo, provavelmente não ficariam horas discutindo sobre a moral apodrecida da sociedade que quer sempre levar vantagem em tudo, até no troco do big-mac. Até por que você é branca, e a menina do caixa, se não servia pra preta, pra branca também não bastava.

E quando digo fardo, também não estou falando do fato de você entrar no banco com sua bolsa gigante, cheia de tudo que é desimportante, um punhado de penduricalhos de metal e, mesmo assim, a bendita da porta giratória rodar livremente para que você desfile sua pele branca e seus cabelos loiros até o gerente para pedir dinheiro emprestado, enquanto eu, quase azul de tão preto, tenho que voltar quinze vezes até a faixa amarela e só posso entrar depois de ameaçar tirar a roupa, já que meus bolsos, mochila, qualquer coisa que tiver nas mãos, estarão totalmente vazios. Aí sim, poderei entrar – acompanhado do segurança, claro. Também preto, claro – para ir até o gerente e aplicar o meu dinheiro em algum fundo de investimento que vai render muito mais para o dono do banco – branco, é claro – do que pra mim.

E quando digo fardo, também não estou falando do fato de que, quando brancos, Josés viram Zés, Franciscos firam Chicos, Antônios viram Toninhos, João Carlos viram Jucas e, quando pretos, Josés, Franciscos, Antônios, João Carlos, Pedros, Rauls, Alfredos, todos viram Negão, Jamelão, Buiú, Toner, “Alemão”, Mussum, Mandela, Obama, Pelé, Cirilo, Blecaute e daí pra baixo.

E quando digo fardo, também não estou falando do fato de que se numa blitz o teu irmão branco for parado, terá apenas que mostrar os documentos dele e do carro, e se eu for parado na mesma blitz, vou ser interrogado, terei que explicar o que estou fazendo na rua àquela hora, de onde vim, pra onde vou, e serei revistado pelo avesso, se duvidar, até no útero que não tenho vão dar uma fuçadinha.

E quando digo fardo, não estou falando do fato de que quando sua mãe se referia ao seu ex-namorado, aquele calouro da faculdade particular de direito com sobrenome alemão, ela dizia: "minha filha está namorando um advogado", e se fosse se referir a mim, mesmo eu sendo médico formado na federal com especializção no exterior em neurocirurgia, ela diria: "ah, a minha filha está de caso com um pretinho".

E quando digo fardo, também não estou falando do fato de que se alguém encontrar o teu pai branco na rua vestindo um terno, vão lhe perguntar se virou executivo, e se me virem de terno, vão perguntar se virei pastor.

E quando digo fardo, também não estou falando no fato de que se seu primo branco estacionar o seu carro novo num restaurante chique qualquer, o cara que estacionar do lado vai afirmar que os negócios devem estar indo muito bem, e se eu estacionar o meu importado novo no mesmo restaurante, o mesmo cara vai me perguntar quanto custa o serviço de manobrista.

E quando digo fardo, também não estou falando do fato de que, mesmo sendo formado em violão clássico e saber mais peças de Bach do que a orquestra municipal inteira, se naquela mesma macarronada da sua mesma família branquinha da silva alguém souber que eu sei tocar, aquele seu mesmo tio branco que tomou umas e outras a mais vai trazer um violão, e dizer: “vai lá, negão, toca um sambinha aí pra gente”.

Quando digo fardo, o que realmente torna um grande fardo ser preto é conhecer uma branca loira deliciosa igual a você, gostosa até onde é possível uma mulher ser gostosa, com uma bunda melhor do que a da melhor mulata, te convencer a vir para o motel, perceber que você é ainda mais linda nua do que com aquele indescritível vestido curtíssimo, tirar a minha roupa e ver a sua cara de frustração por descobrir que eu tenho o pau pequeno.

Isso sim, é o verdadeiro fardo de ser preto.

6 comentários:

Letícia Palmeira disse...

Conheço pessoas que só falam nas tais cotas. Parece que emperraram no assunto e não sabem falar de mais nada. E também há pessoas que só falam em política. Acho até que ficam ensaiando na frente do espelho de casa.

E acho que sou negra. Ou semi-negra. Meus avós eram negros. Minha avó paterna era índia. Vai saber.

Muito bom teu texto.

Um abraço de mais uma pessoa esperta, bonita e elegante. =)

Casa de Mariah disse...

Olá "Don" Mattos,
Quando começo a ler seus textos, tenho que controlar meu impulso (quase incontrolável) de pular para o fim e dar uma espiadinha na surpresa. Porque, amigo, isso é certo. Sempre tem surpresa no fim dos seus textos.
Geniais aliás.

Bruna Rafaella disse...

Concordo plenamente com a Mariah...
seu textos são geniais, não me canso de dizer...
o preconceito com os negros nunca irá passar, nem que o mundo não seja mundo, mais o fato também é que o própio negro acaba sendo preconceituoso com o próprio preconceito, e assim vai...

Você, David, Sensancional como sempre e eu sempre aqui!!

mundo da lu disse...

Clap, clap, clap, clap!!!
Esse é o barulho das minhas palmas pra vc, formidável!!
E ainda conseguir terminar um texto desses com humor, é demais!!!
beijo
lu

Shuzy disse...

Soda ¬¬

Marisa Mattos disse...

É meu caro...nem todo preto é perfeito...rs..excelente texto...