sexta-feira, 25 de março de 2011

Meu anjo


Impressionar as mulheres, para ele, era fácil. Na sua exagerada auto-confiança embebida em soberba, afirmava para quem quisesse ouvir que não havia mulher capaz de lhe dizer não. Bastava conversar cinco minutos com qualquer mulher que fosse, que saberia o que dizer, como agir, de que modo se comportar. Saberia o que dizer para fazer a mulher pretendida rir, e quando um homem consegue fazer uma mulher rir, o trecho mais tortuoso do percurso da conquista já foi superado. De fato, sua assertividade era assombrosa.

Mas ela era um anjo e, no céu, as conquistas possuem uma mecânica toda própria, diferente daquela que os galanteadores da terra estavam habituados.

E aqui vale uma importante elucidação, a afirmação que diz que os anjos são assexuados, é apenas mais uma das tantas falácias de deus. Os anjos, todos eles, são seres femininos. Até por isso são protetores. Fossem eles masculinos, não se dedicariam com tanto afinco em proteger as almas que deus lhes concedeu a tarefa da vigília. Os homens não se atentam aos detalhes, e proteção exige atenção aos detalhes, caso contrário, no menor descuido as almas desvirtuam-se. E, se mesmo sendo seres femininos existem tantas almas desvirtuadas, é que deus é um cara pão-duro, há eras não abre nova seleção para anjos protetores. Elas, os anjos femininos, estão sobrecarregadas, a demanda por proteção não é compatível à oferta de zelo.

Outra razão para a falácia divina, é que, além de pão-duro, deus é um cara muito ciumento. Afirmar que os anjos não possuem o saudável desejo inerente a todos os seres, é conseqüência da possessividade divina. Ele criou as almas, mas por tê-las criado à sua imagem e semelhança, morre de medo que os seres do céu passem a se interessar mais pelas criaturas do que pelo criador. Assim sendo, contaminou a espécie criada com a ideia do hermafroditismo angelical.

Masculinos, só os arcanjos. Seres responsáveis por promoverem a quantidade medida de desordem no cotidiano do mundo. Cabe a eles causar uma tragédiazinha aqui outra acolá, para que a existência na terra não caia numa modorrenta monotonia.

Anjos enlaçam-se aos arcanjos, e deles nascem os querubins. Estes, responsáveis em desalinhar com maléfico ardil os caminhos do amor.

Pensam os seres da terra que os querubins são os folclóricos cupidos, responsáveis na mitologia humana em fazer com que as pessoas se apaixonem, que as almas gêmeas cruzem umas o caminho das outras.

Ledo engano. A eles, os querubins, cabe descarrilar o trem do bem querer recíproco.

Mas isto são esclarecimentos de ordem científico-celestial, e não é este o mote da narrativa. Voltemos, então, ao cerne da questão.

Eis que ele, o galanteador infalível, saiu de casa para comprar cigarros.

Não gostava de fumar, detestava a fumaça e morria de medo daquele cheiro de nicotina diminuir o impacto do seu perfume amadeirado. Mas tinha para si que o cigarro era ferramenta importantíssima para o figurino de algumas conquistas, conferia-lhe uma virilidade meio bruta e contraventora em tempos politicamente corretos e anti-tabagistas, que certamente serviria de isca para determinados tipos de mulheres.

De tão auto-confiante, vez ou outra era descuidado. Quando atravessou a rua rumo ao boteco onde comprava seus cigarros, por muito pouco não foi atropelado por uma Honda Biz Preta. O impacto na pequena motoneta não o mataria, mas, na queda, estava endereçado ao seu crânio um choque no meio fio, este sim, fatal.

Foi nesta hora que seu anjo feminino da guarda interveio a seu favor. Aí o leitor mais ansioso, deve estar antevendo que seu anjo da guarda feminino puxou-o pelo braço para evitar que o galanteador infalível se chocasse à Honda Biz preta.

Nada disso.

Na verdade, era o anjo quem guiava a pequena motoneta. Ela valia-se daquele veículo para rondar a alma que lhe coubera, pois sabia que se utilizasse suas portentosas asas, chamaria demais a atenção dos ignorantes humanos. Cada anjo escolhe para si o meio de locomoção que lhe parecer mais conveniente. Aquela escolhera a motoneta para zelar por seu protegido.

Ele atravessou a rua desatento, mas ela, por estar com seus celestiais olhos castanhos sempre voltados a ele, teve reflexo suficiente para desviar dele, causando apenas um susto e um tombo que por conseqüência, não trouxe mais do que uns arranhões no peito, outros poucos nos braços e uma dorzinha bem ali, nas costelas.

Todavia, ela parou a motoneta para ver se estava tudo bem com o seu incumbido, e foi no momento em que ela tirou o capacete e deixou à vista daqueles indefesos olhos humanos seus cabelos loiros, que pela primeira vez ele não soube o que dizer diante de uma mulher.

Ela, o anjo, perguntava se ele estava bem desviando o olhar, pois sabia que para os homens da terra seus olhos seriam irresistíveis. Mas, ainda que zonzo pela queda, ele insistia em procurar os olhos castanhos do anjo da guarda feminino, e no segundo em que os olhares se cruzaram, o arrebatamento foi imediato, tanto quanto a ineficácia em buscar palavras que a fizessem apaixonar-se por ele, como era tão fácil fazer com as humanas.

Você está bem? Perguntou ela, Quer que eu chame alguém? Os bombeiros, os médicos, algum familiar?

Uma pizza, disse ele, para em seguida se sentir o mais estúpido dos homens.

Você se machucou e quer uma pizza? Indagou com surpresa o anjo da guarda feminino.

Com você, quero comer uma pizza com você. Vamos?

Ela riu, ele sentiu-se ainda mais idiota. Não bastasse a estupidez do descuido de quase ser atropelado por uma motoneta que mal chega a oitenta quilômetros por hora, ao invés de dizer algo que a impressionasse, o que lhe ocorreu foi uma pizza. Estúpido!

Vamos, disse ela.

Na pizzaria, ela continuava a desviar o olhar, não queria piorar o estrago que já sabia ter feito naquele coração humano e burro.

Sem conseguir olhá-la nos olhos, restava a ele sentir o inebriante perfume que ela exalava, tão puro, tão doce, que lhe furtava o ar que já era pouco, dada a dor que sentia nas costelas em função da queda, cada vez que tentava respirar fundo.

Queria retribuir de alguma maneira a sensação de bem-estar que aquele aroma lhe dava, mas o máximo que conseguiu foi comprar uma rosa embrulhada em papel celofane que uma gordinha ofereceu, uma dessas que invadem restaurantes para atrapalhar – ou, dado o ponto de vista, ajudar - conversas de casais lambuzados de romance.

Mais uma vez se sentiu um cataclísmico imbecil. Ela merecia o mais belo buquê já confeccionado, merecia uma chuva de pétalas de rosa, e ele lhe oferecia uma florzinha mixuruca que não valia os cinco reais cobrados.

Sobrou uma fatia da pizza e, nela, uma apetitosa e gigante azeitona preta que ele estava louco para comer, mas julgou que seria deselegante. Isso, sem contar o fato do gosto e cheiro forte que estas azeitonas têm. Vá que ele desse sorte e conseguisse daqueles lábios angelicais um beijo, e ela não gostasse de azeitonas. Preferiu não arriscar, e deixou que o garçom levasse embora a apetitosa azeitona.

Voltou para casa na garupa da Honda Biz preta, sentindo nos dedos o sabor da pele da cintura dela que segurava para equilibrar-se na motoneta.

Quando chegou à sua casa, no momento em que ela tirou o capacete, puxou-a para perto de si e beijou-a. De início, os dentes esbarraram, algo meio desajeitado, depois, diminuída a pressa do beijo dado de surpresa, a velocidade inicial tornou-se calma, o beijo tornou-se lento, e ele percebeu que por mais bocas que seus lábios tivessem visitado, nenhuma língua tinha aquele sabor. Não era um embate de esgrima o encontro das línguas. Era um carinho recíproco, que tanto lhe afogava de ternura, quanto de um calor incontrolável.

Convidou-a para entrar. Ela, mais uma vez, desviou o olhar. Sorriu e disse que não, embora no fundo, algo inconfessável tentava-a a dizer, Sim, vamos subir, deixe que eu te mostre algo que você jamais vai entender. Mas sabia que a mera cruza de olhares já havia causado um estrago suficientemente avassalador, não precisava fazê-lo sofrer ainda mais, permitindo que ele provasse a totalidade dos sabores dela, sem jamais poder repetir a experiência.

E foi embora batendo suas asas lindas, grandes e brancas, mas o que aparecia aos olhos dele, era a motoneta partindo rumo sabe-se lá para onde.

Nunca mais a encontrou e, do mesmo modo, nunca mais qualquer outra mulher pareceu-lhe interessante. Passou o resto dos seus dias suspirando pelos olhos castanhos que não abandonavam sua memória.

Mesmo com a depressão dele, ela estava radiante de felicidade, pois sabia que, embora ele ainda não tivesse descoberto, ali naquele peito humano habitava um câncer incurável. Para felicidade dela, a morte dele estava marcada para o mesmo período em que se abriria um processo seletivo para novos arcanjos.

Assim que ele chegasse ao Olímpo, ela lhe ajudaria nos estudos, e sendo ele aluno aplicado, passaria no concurso celestial e, aí sim, poderiam passar o resto das suas eternidades juntos, dando vida a uma quantidade infinita de querubins que se divertiriam desalinhando os amores terrenos, enquanto eles deleitar-se-iam para todo sempre naquele amor angelical com gostinho de terra.