quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Para quando você voltar


Agora, quando durmo, durmo sempre com o violão ao meu lado.

Não que tenha virado compositora, desisti de desbancar os Beatles quando fiz dezenove, e lá se vai um punhado de anos desde então. Acho que você gostava de me ouvir tocando, pelo menos seu sorriso parecia sincero, quando eu tocava. Acho que depois que você partiu, nunca mais toquei. Um dia desses até pensei em fazer um acorde ou dois, mas quando vi o tanto que as cordas estão enferrujadas, foi que me dei conta que já faz um bocado de tempo que você partiu. É provável que se tocasse uma música inteira, ao final dela estaria morrendo de tétano.

Mantenho o violão ali, quietinho, para que não perca a noção exata do meu espaço na cama. Você é espaçoso, gosta de se esparramar, deita encalorado, acorda com frio. Ao contrário de mim. Pelo menos assim, nunca tivemos o problema de outros casais, de um ficar puxando o cobertor do outro. Nossa desestabilidade térmica determinava o tempo exato de uso do cobertor a que cada um teria direito. Se bem que eu não me importaria em deixar o cobertor para você a noite inteira, caso você assim quisesse. Durmo encolhida ao lado do violão. Assim, quando você voltar, ainda saberei respeitar o lado que é seu.

Às vezes, você dizia que tinha vontade de ter uma cama só sua, um espaço só seu, mas eu te convencia a ficar, dizendo que te daria mais espaço na cama, e juntos, caso um de nós tivesse um sonho ruim no meio da noite, o outro estaria ali para buscar um copo d’água, fazer um carinho, coisas assim.

Aqui no meu apartamento, outrora chamado nosso, ainda preservo os espaços que te pertenciam. Ainda te pertencem, todos eles.

Não ouso assistir televisão no sofá que você gostava de se esparramar, fico lá no lado que estabelecemos empiricamente que me era de direito, por mais que o seu sofá seja o de três lugares, e o meu o de dois, apertado pra caramba. Fico toda torta, não raro a perna fica dormente, formigando. Mas respeito a ordem estabelecida das coisas. O meu sofá é meu, o seu é seu. Mas o melhor de tudo era quando você largava suas coisas em qualquer canto da casa, e vinha assistir TV pertinho de mim, no mesmo sofá. Sei que outras mulheres fazem um escândalo quando veem suas casas desorganizadas, mas eu nunca me importei com a sua bagunça. Achava bonitinho, até. Dava vida à casa. Procuro manter as coisas do jeito que elas sempre foram, para quando você voltar.

Ainda acordo uma hora mais cedo do que o necessário, como se precisasse ir para o chuveiro mais cedo para que você possa tomar o seu banho tranquilo, do jeito que você gostava, e ainda ter tempo de pegar o ônibus das 07:30. Acordo, tomo meu banho e deito de novo por mais uma hora.

Algumas coisas mudaram na rotina desta casa, admito. Não tomo mais café da manhã, por exemplo. Não tenho fome quando acordo, mas você acordava com um buraco cataclísmico no estômago. Não sei se alguma vez lhe disse isso, eu detestava ter que acordar uma hora mais cedo do que o necessário, mas adorava preparar o seu café. Me parecia uma maneira diferente, mais criativa de te dizer “eu te amo”.

Uma vez você me disse que achava ler muito chato, te dava sono, mas você adorava me ver lendo, achava bonito. Talvez seja por isso que ainda leia, por que vontade, vontade mesmo, confesso que não tenho já faz bastante tempo. Desde que você partiu. Mas sento no sofá, abro um livro qualquer e tento me concentrar na história, embora hoje todas elas me pareçam enfadonhas, desinteressantes. Mas leio mesmo assim, imaginando que a qualquer momento a porta vai se abrir, você vai entrar e dizer que acha bonito me ver lendo com as pernas cruzadas.

Agora eu ouço tango novamente, que você tanto detestava. Piazzolla tem sido uma companhia e tanto. Mas deixaria ele sem pensar duas vezes, se fosse essa a condição para ter você de volta. Até o Chico, eu deixaria de ouvir, se fosse essa a condição para ter você de volta.

Nunca mais assistiria musicais, você não precisaria dizer coisas como, “pô, quando a história vai começar a ficar boa todo mundo pára e começa a cantar e dançar, que chato.”. Juro que só assistiria filmes dublados, nem legendas você gostava de ler. Faria isso como uma outra maneira diferente de te dizer, “eu te amo”.

As pessoas que freqüentavam a nossa casa não vêm mais aqui. Não deixo mais. No começo, logo depois que você partiu, elas até vinham, traziam vinhos, comidinhas, coisas para tentar me tirar da fossa. Mas enchi o saco de ouvi-las dizendo que eu preciso tocar minha vida pra frente, que tenho muito ainda o que viver, que sou jovem, bonita, que posso conhecer um cara legal, casar, ter ainda uma penca de filhos.

Não quero conhecer um cara legal.

Não quero casar.

Quero menos ainda ter uma penca de filhos.

Quando, há muito tempo atrás, encontrei um cara que me pareceu realmente legal, com quem eu quis de verdade casar e ter uma penca de filhos, ele me despedaçou inteira, não só o coração. Nunca mais quero olhar na cara do desgraçado.

Depois dele veio você, que mesmo tendo partido, continua senhor da minha vida.

Sou meio bichada, você sabe. Tenho pedras nos rins, morro de enxaqueca, tive que tirar um pedaço da vesícula, fiz não sei quantos tratamentos de canal, vivo com dor de ouvido e amigdalite, mas te digo com a mais absoluta certeza que se pode ter nessa vida, não existe dor comparável a de se enterrar um filho. Nada é tão brutal, absurdo, cruel, desumano, desalmado, violento, feroz, furioso, frio quanto ver um caixão pequeno e branco se fechar.

Hoje, quando vejo suas fotos, no fundo sei que não poderei tirar outras.

Mas mantenho tudo do jeitinho que você gostava.

Seu quarto ainda bagunçado, seus brinquedos pela casa, às vezes até compro um joguinho ou outro de vídeo-game que imagino que você fosse gostar.

Faço isso para não perder a esperança de um dia ainda ver você voltar.

4 comentários:

Shuzy disse...

Triste esse, Don...
Mas de um jeito bom...!

luiza disse...

ai ai... =(

mundo da lu disse...

ah que merda Don!! não faz isso não, é o tipo de coisa que não se pode ler, não se pode pensar, não se pode. vc é pai? acho que não, se não não teria estômago pra escrever uma coisa dessas.

Bruna Rafaella disse...

Nossa...
eu imaginva que era o namorado dela...
que triste o fim.
sempre me surpreendendo...
hoje estou sensivel, quase
chorei agora, é sério, não tenho
filhos mais só de pensar!