quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Tá bom, eu admito, é exatamente isso que você está pensando.


Você não vai me dizer nada?

Dizer o quê?

Sei lá, não vai inventar uma desculpinha qualquer, com você faz sempre?

Não. Hoje não.

Desistiu das suas mentirinhas esfarrapadas?

Não, não é esse o caso. Mas, convenhamos, hoje seria ridículo tentar inventar o que quer que fosse.

Pelo menos você admite o seu ridículo.

Vou dizer o quê? Calma, não fique assim, vamos conversar, não é nada disso que você tá pensando, eu posso explicar.

Normalmente você diria alguma coisa assim.

Mas hoje não. Hoje eu assumo a minha culpa.

Ainda tem orgulho da sua sem-vergonhice...

Não se trata de orgulho, só estou meio de saco cheio pra me dar o trabalho de pensar em alguma desculpa esfarrapada.

Acho que se você inventasse uma desculpa esfarrapada, pelo menos demonstraria alguma consideração por mim.

Claro que eu tenho consideração por você. Muita, até.

Não parece.

Olha, eu sei que errei, e sei que não foi a primeira vez.

Eu não quero ouvir mais nada.

Não, espera, vamos conversar.

Conversar? Agora você quer conversar?

A gente pode se entender. Eu errei, admito, mas você sabe que a gente pode se entender.

Estou cansada dessas suas desculpinhas o tempo todo.

Eu sei, eu sei. E também não vou dizer que nunca mais vou fazer.

Cara de pau!

Pelo menos estou sendo sincero. Você não vive reclamando que eu minto demais, que eu deveria ser sincero com você? Então, estou sendo sincero. Sei que fiz uma cagada, mais uma, mas não foi para magoar você.

Ah, é?

É.

E foi por que, seu sem vergonha?

Sei lá, estava meio cansado de tudo, estava precisando fazer alguma coisa diferente, cansei da mesma rotina sempre.

Olha, você faz o que você quiser da sua vida, eu desisto, já tentei tudo o quanto estava ao meu alcance, mas cansei.

Não fale assim, vamos conversar.

Chega de conversa, não temos mais nada o que conversar.

Peraí...

E não venha atrás de mim, dessa vez não vai funcionar.


E saiu do quarto com os olhos cheios d’água, deixando-o esparramado na cama sob os lençóis amarrotados.

Ele percebeu que daquela vez tinha ido longe demais. Dessa vez ela estava realmente magoada. Em outros tempos, brigaria, gritaria, bateria boca, mas jamais sairia assim, deixando-o ali, sem uma ofensazinha sequer.

Ficou preocupado. Não conseguiria dormir em paz sabendo que ela ficaria acordada a noite inteira, chorando por mais uma das suas tantas mentiras.

E jurou para si mesmo:

Chega! Nunca mais mato aula. Minha mãe não merece passar por isso de novo.

Desligou o vídeo-game e foi dormir.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Ne me quitte pas


Havia chego naquele ponto em que o amor, que nos tempos primeiros lhe parecera uma fortuna, já não passava de uma ninharia que dia um dava ao outro, dia o outro dava para o um. E, no caso dele, muito a contragosto.

Queria acreditar que seria possível fazerem uma massagem cardíaca recíproca em seus peitos, tentando reanimar o já quase ex-amor. Contudo, não suportava mais tocá-la.

Ele pensava, refletia tentando descobrir em que ponto as declarações efusivas e extensas de amor se transformam em meias palavras ditas de má-vontade. O amor acaba quando o eu também se torna mais freqüente do que o eu te amo, divagava para si mesmo.

Amor acabado é como carne de gente morta, quando insepulto, apodrece e fede, pensava sozinho. Isso por que o cheiro da pele dela, que antes lhe enlouquecia, agora lhe causava desconforto.

E até o filho que tantas vezes sonharam ter, agora dava graças a deus por nunca ter nascido. Detestaria ter que passar os finais de semana com uma criança com o temperamento igual ao dela.

Ele sempre imaginou que se um dia viessem a se separar, poderiam ser amigos, bons amigos até, já que era sincera a admiração que sentiam um pelo outro. Mas até o que antes parecia virtude, agora era enfadonho.

Todas as noites planejava o dia seguinte, colocaria algumas roupas na mochila e iria embora, sem dizer nada, como essas histórias de cafajestes que abandonam a família sem dar satisfação. Era bom o apartamento que haviam comprado. Ótimo, na verdade, mas não se importaria em deixá-lo para ela, se fosse esse o preço para que ela não lhe enchesse o saco nunca mais. Que ficasse com o carro também, se fosse esse o preço.

Mas nunca colocava seus milhares de planos de fuga em prática, pois, apesar de praticamente detestá-la, detestava também a ideia de fazê-la sofrer. Não queria mais aquela companhia, mas não queria carregar a culpa de ter destruído a possibilidade que ela tinha de ser feliz.

Um dia tomou coragem. Antes, parou no bar para tomar um trago, indispensável para o ponto final que daria a história que haviam construído. Dizem que o álcool nos enche de afeto e coragem.

Em função da parada no boteco, chegou mais tarde do que o normal.

Ela não perguntou por que.

Realmente acabou, ele pensou, ela já não se interessa sequer em saber por onde andei. Mas vai sofrer, e isso eu não gostaria que acontecesse. Mas eu estou sofrendo, que se foda, que sofra ela, então.

Ela estava lavando as panelas que havia usado para fazer o jantar que ele não comeu. Tinha feito carne de panela com batatas, ele adorava carne de panela com batatas. Dizia até que a dela era melhor do que a da mãe, coisa rara de se ouvir um homem dizer.

Ele não disse boa noite quando entrou, e nem lhe deu o burocrático beijo de todos os dias quando chegava do trabalho.

Foi até a geladeira, encheu um copo de água, tomou tudo de um só gole.

Olhou para ela de costas, lavando panelas, lembrou do dia em que quando chegou do trabalho e ela estava ali, naquela mesma pia, fingindo que lavava louças só para que ele entrasse em casa e a visse de costas, vestindo apenas avental e um par de scarpin vermelho.

Aquela noite ela estava incrível, ele pensou.

Agora ela usava uma calça jeans, uma blusa larga e os cabelos soltos e molhados, indicando que havia recém saído do banho.

Eu vou embora, ele pensou em falar. E lembrou do dia em que haviam comprado a pedra de mármore para a cozinha e fizeram amor sobre ela, para inaugurá-la. E lembrou-se também que haviam feito amor em cada canto do apartamento, para que todos fossem devidamente batizados.

Levantou-se e foi até o banheiro lavar o rosto, precisava de um pouco de água fria na cara para poder olhá-la de frente e dizer que partiria. No banheiro, lembrou do dia em que havia tomado um porre e ela lhe segurara a testa enquanto ele se ajoelhava diante do vaso, lhe preparara um chá de boldo e uma compressa fria para colocar sobre a cabeça que girava sob o efeito do álcool em excesso.

Esse vai ser o quarto do nosso bebê, lembrou dela falando quando compraram o apartamento, enquanto olhava para o cômodo que na falta de uma criança, tornara-se escritório. Em cima da mesa, ao lado do computador, um porta retrato com a foto de ambos na praia, o sorriso dela estava tão lindo naquela foto... Na verdade, ainda era lindo, ele que já não se dava o trabalho de contemplá-lo.

Ela ainda estava lavando louças, e ele ainda não havia falado com ela.
Foi até a sala e olhou para o sofá de péssimo gosto que ela aceitara comprar, só para que tivesse as cores do time dele. Ela fez tantas concessões por mim, ele pensou. Que concessão eu já fiz por ela? Perguntou para si mesmo sem encontrar resposta.

Na parede da sala, viu a menção honrosa que havia recebido da empresa onde trabalhava, pelo excelente desempenho que tivera dois anos atrás, e que ela, toda orgulhosa do sucesso do marido, mandara emoldurar e pendurara na parede para que ele se sentisse todos os dias homenageado quando entrasse em casa, e soubesse da admiração que ela tinha pelo seu talento e capacidade profissional. Que homenagem eu já fiz pra ela? Perguntou para si mesmo sem encontrar resposta.

No criado mudo ao lado da cama de casal, viu a sua fotografia com a perna engessada, quando caíra de moto fazendo uma trilha num dia de chuva, e ela ao seu lado servindo-lhe sopinha na boca. Lembrou de como ela cuidou dele com o máximo carinho, paparicando-o como se fosse o filho caçula, mas talvez com mais amor, pois ainda estava concentrado dentro dela todo o amor que um dia pretendia dividir em frações, esta parte é sua, esta é do primeiro filho, esta do segundo, esta do terceiro, o caçulinha. Quando foi que eu cuidei dela? Perguntou para si mesmo sem encontrar resposta.

Quando foi a última vez que dei um pouquinho de carinho pra ela? Perguntou para si mesmo sem conseguir se lembrar.

Foi então que percebeu o quanto ainda a amava. Foi então que um maremoto de vontades de lhe fazer carinho, de lhe oferecer cuidado, de lhe fazer tantas concessões quantas fossem necessárias, de lhe homenagear vinte e quatro horas por dia inundara-o.

Foi então que percebeu o quão afortunado era por estar casado com a mulher da sua vida, e sequer tinha se dado conta disso.

Voltou à cozinha, ela ainda lavava as panelas.

O que é isso? Perguntou olhando para duas malas que estavam no chão, ao lado da pia e ele não tinha percebido quando fora tomar água, logo que chegara.

Eu vou embora, ela respondeu.

Por quê?

Por que não faz mais sentido, acabou.

Não, não acabou. Podemos fazer dar certo. Já demos certo tantas vezes, podemos dar certo de novo.

Não mais. Se você tiver fome, tem comida na geladeira. Pode ficar com o apartamento, com o carro. Pelo menos não tivemos um filho.

Assim? Acabou e pronto? Sem uma conversa, sem uma tentativa?

Talvez você não tenha percebido, mas eu tentei.

E foi embora.

E nunca mais voltou.

Ele ficou desesperado, nada mais fazia sentido, sua vida tornara-se um caos, remédios tomaram o lugar do cafuné que antes o fazia dormir. Era tão feliz ao lado dela, que jamais havia se preocupado em saber se também a fazia feliz. Sofria por não tê-la ao seu lado, sofria por imaginar que agora um outro afortunado deveria estar sendo feliz ao lado dela, e que retribuía a altura, dando muito mais do que a ninharia que sempre oferecera a ela.

Envelheceram distantes e sem terem se tornado amigos, sem trocarem notícias, sem saberem o que havia acontecido ao outro.

Ele teve um ou dois relacionamentos, mas a comparação com a vida que tivera ao lado dela tornava inviável qualquer envolvimento mais profundo.

Imaginava que ela tinha sido feliz longe dele, mas não fora.

Na verdade, também envelhecera triste e cheia de saudade da época em que podia cuidar dele, que era a coisa que mais lhe dava prazer.

Mas por ser cheia do tipo de amor que homem nenhum é capaz de compreender, mas do qual as mulheres entendem muito bem, chegara a conclusão que não o fazia feliz, tamanha a indiferença dele para cada pequeno cuidado seu. E o conhecia muito bem, o bastante para saber que ele, como a maior parte dos homens, não teria coragem para romper um casamento que já não o satisfazia e, por mais que soubesse que com aquela atitude drástica passaria o resto da vida lamentando não ter tido um filho com o temperamento dele, com os olhos dele, com o sorriso dele, o libertaria para que pudesse ser feliz. Sofreria por ele, por amor a ele.

E eles viveram infelizes para sempre.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

A cunhada


Faz assim não.

Não samba desse jeito devagarzinho perto de mim, que acabo esquecendo que teu homem cresceu comigo.

Faz assim não.

Não vem buscar bebida quando eu vier, que eu esqueço que meu irmão morre de amores por você.

Não passa perto de mim com esse perfume, que você não sabe o risco que corre.

Você já deve ter ouvido meu irmão falar que eu não valho nada, então é melhor tomar cuidado comigo.

Eu não presto.

Eu não respeito nada.

Eu não respeito ninguém.

E se você fosse prudente, não levantaria a sua regatinha desse jeito, deixando essa barriguinha definida a minha vista. Você não sabe como eu adoro uma barriguinha cheia de gominhos.

Não olha pra mim desse jeito, com essas sobrancelhas tão bem desenhadinhas, não me olhe assim que eu me descontrolo e faço uma loucura.

Evite vir a minha casa com um shortinho desses, exibindo essas pernas deliciosas, torneadas, saradas. Você não sabe do que eu sou capaz.

E digo mais, com uma bundinha dessas, definitivamente a minha casa não é um lugar seguro pra você.

Isso, sem-vergonha, sorri desse jeito pra ver o que te acontece. Sorri perto de mim assim, com esse rosto lisinho, pra ver se eu não te arrasto para um canto desses que minha casa tem tantos, e te mostro o que é realmente bom. Algo que talvez você ainda nem tenha provado, mas garanto que vai gostar.

Não me provoque, que eu não vou dar a menor importância para o escândalo que a bichinha do meu irmão vai fazer. Arrasto você para o meu quarto sem ninguém perceber, e te mostro que melhor do que ser a mulherzinha do meu irmão, é ter uma mulher de verdade, uma mulher como eu. Você nunca mais vai quere saber de ouvir Madonna, vai esquecer de depilar o peito, vai deixar a barba crescer, vai descobrir que melhor do que ficar de quatro, é pegar uma gostosa como eu de quatro e, de quebra, ainda mostro pra todo mundo que existe sim ex-viado.

Provoca, pra você ver, viadinho gostoso.

Provoca...

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Poker Face


Cadê meu cigarro? Anda, porra, dá cá meu cigarro. Não adianta esconder o maço, tenho outro aqui no bolso. Se você não me disser onde está a porra do meu cigarro, pego o outro que tenho no bolso. Ou, pior, fumo todo o seu mentolado. Dá cá a porra do meu cigarro. Isso, melhor assim. Otário! Distribua logo essas cartas. Huummm... Quanto é a aposta? Eu dobro. Outra dose. Anda, outra dose, não tenho dinheiro agora, mas pago com o que vou ganhar na mesa. O otário que escolheu minhas cartas acertou na mão, o dealer cortou direitinho. Pode servir sem medo, hoje a gorjeta vai ser bem gorda. Não, otário, não é poker face, você acertou mesmo. Não acredita? Paga pra ver. Quanto é a aposta? Eu dobro. Correu? Viado! Você tá sentindo que acertou a mão, né, filho da puta?! E você? Vai correr também? Ah, tá duvidando da mão do viado ali, é? Paga pra ver, então. Pagou? Dobro de novo, otário! Bancou? Peraí, deixa eu acender o cigarro. Não, não quero esse mentolado de merda, já tô com o meu maço aqui. Empresta o isqueiro. Valeu. Bancou mesmo a aposta? Machão você, hein? All in. Tudo ou nada, negão. Ou bota todas as fichas na mesa, ou dá no pé! Correu também? Viado! E você? Ah, não tem pra bancar? E essa morena aí? Sua mulher? Bota na mesa! Foda-se, não quero seu dinheiro. Sua mulher é bem gostosinha. Se sua mão tá boa, bota a mulher na mesa. De qualquer modo você vai sair ganhando. Você não ama a sua mulher? Então, ou ela ganha uma bela trepada, ou você fica rico. Aceita? Huummm, machão, você, hein? Hoje você vai ser feliz, minha querida. Vamos lá, baixe suas cartas. Duas duplas? Otário! Full house nos teus cornos! Hoje você vai ser feliz, minha querida.

Pagou a conta com uma nota de cinqüenta e de gorjeta deu uma de cem para a menina que servia as mesas.

Nesta noite ele mandou a esposa dormir na sala e, no quarto do casal, com os filhos dormindo no cômodo ao lado, aproveitou o prêmio que ganhou na mesa de poker.

Aproveitou como se fosse a última, sem saber que de fato era.

Na noite seguinte, isso ele ainda não sabe, a mão não estará lá essas coisas.

Quando acabar o dinheiro, não haverá ao seu lado mulher para penhorar.

Mas aceitarão a escritura da sua casa.

Terá um Ás de paus, só isso.

Blefará, poker face.

Pagarão pra ver.

O outro terá duas duplas.

Perderá tudo num jogo baixo.

Otário!

A mesa e a casa.

Lembrará da noite anterior e pensará com um meio-sorriso triste nos lábios, “Até que valeu a pena...”.

A menina que serve as mesas não receberá gorjeta. Não dele.

Antes de o dia amanhecer, terminará sem teto e com uma bala na cabeça, disparada por ele próprio.

Mas, como amanhã ainda não chegou e ele não sabe de nada disso que lhe acontecerá, agora ele cantarola para seu prêmio, “...vem minha safada / vem minha bandida, minha descarada / quero um beijo gostoso dessa boca molhada / vem matar o desejo desse seu animal / Faz, faz, que é gostoso demais...”, e nesta noite ele aproveitou o seu prêmio.

Ô, se aproveitou.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Um pouco menos de pressa...


A vida às vezes nos sabota.

Ou somos nós que a sabotamos?

Acreditamo-nos sempre jovens, e tal qual Peter Pan, construímos ao nosso redor uma linda Terra do Nunca, local aconchegante onde sentimo-nos protegidos e alheios ao risco, ao perigo, invulneráveis.

E aceleramos.

E, de fato, escolhendo-se o referencial que melhor nos servir, haverá sempre um ponto de vista sob o qual estaremos sempre jovens. Uns há mais tempo, outros há menos tempo, mas todos jovens, sempre jovens.

E aceleramos.

E fingimos que a estrada estreita de chão batido que é a vida de cada um de nós, é na verdade uma avenida asfaltada, duplicada, quadruplicada, com espaço suficiente para as irresponsabilidades nossas de cada dia.

E aceleramos.

Temos tanta pressa de correr na estreita estrada de chão batido, que ao colar o ponteiro do velocímetro no seu limite, vez ou outra magoamos uns, não damos atenção a outros, por achar que a estrada não acaba, sempre terá um bocadinho a mais de chão para corrermos, e no percurso, sempre haverá um semáforo que nos alertará com a luz amarela, às vezes vermelha, para que paremos e nos demos o direito de voltar um pouquinho e pedir desculpas, reconhecer algum exagerinho aqui, outro ali. Retratamos-nos, e quando não o fazemos, imaginamos que mais uns metros a frente teremos outra oportunidade de fazê-lo.

E aceleramos.

E mesmo correndo na estrada de chão batido da nossa Terra do Nunca, também encontramos algum tempo para mostrarmos que sabemos ser bons, generosos, e nos permitirmos amar e sermos amados. E sorrimos para o carro ao lado, acenamos, damos bons dias, boas tardes, boas noites.

E aceleramos.

Mesmo correndo, notamos que a paisagem lá fora é bonita, e nos instantes que nos permitimos diminuir a velocidade, descobrimos que o ar que se respira tem perfume, que a luz que vem de fora é colorida, e que os detalhes e a delicadeza das coisas sutis, são o que realmente marcam, não as grandes manobras.

E aceleramos.

No início dessa semana, enviei um email para toda a imensa lista que habita minha caixa do gmail, solicitando que se um deles, ou algum dos seus conhecidos fosse portador do sangue “O” negativo, fosse até o Hemosc e doasse para uma pessoa próxima a mim, que estava precisando muito.

Muito obrigado aos que tiraram o pé do acelerador por uns instantes, e foram oferecer um pouquinho da sua vida, como se dissessem, “toma, amigo, este tantinho aqui de vida é meu, mas faço questão que agora seja teu. Você não me conhece, mas aceite meu presente.”

Aos 26 anos, não se percorreu muito do tanto que a vida pode mostrar-nos de paisagens que há do lado de fora da janela do nosso carro, mas percorreu-se o bastante para tornar-se paisagem no peito dos outros.

Não acredito em deus, mas me conforta saber que agora já não há mais dor.

A ela, que tão generosamente me acolheu quando eu chorei a dor de ter magoado um amor verdadeiro, e que agora chora uma dor de proporções que eu não compreendo, ofereço meu abraço mais sincero, embora saiba que ele não tenha propriedades analgésicas.

A nós, que diminuamos um pouco a velocidade. A vida tem muitos sabores para que seja consumida com pressa.

E que não esqueçamos nunca de usarmos sempre o cinto de segurança.

Para quando você voltar


Agora, quando durmo, durmo sempre com o violão ao meu lado.

Não que tenha virado compositora, desisti de desbancar os Beatles quando fiz dezenove, e lá se vai um punhado de anos desde então. Acho que você gostava de me ouvir tocando, pelo menos seu sorriso parecia sincero, quando eu tocava. Acho que depois que você partiu, nunca mais toquei. Um dia desses até pensei em fazer um acorde ou dois, mas quando vi o tanto que as cordas estão enferrujadas, foi que me dei conta que já faz um bocado de tempo que você partiu. É provável que se tocasse uma música inteira, ao final dela estaria morrendo de tétano.

Mantenho o violão ali, quietinho, para que não perca a noção exata do meu espaço na cama. Você é espaçoso, gosta de se esparramar, deita encalorado, acorda com frio. Ao contrário de mim. Pelo menos assim, nunca tivemos o problema de outros casais, de um ficar puxando o cobertor do outro. Nossa desestabilidade térmica determinava o tempo exato de uso do cobertor a que cada um teria direito. Se bem que eu não me importaria em deixar o cobertor para você a noite inteira, caso você assim quisesse. Durmo encolhida ao lado do violão. Assim, quando você voltar, ainda saberei respeitar o lado que é seu.

Às vezes, você dizia que tinha vontade de ter uma cama só sua, um espaço só seu, mas eu te convencia a ficar, dizendo que te daria mais espaço na cama, e juntos, caso um de nós tivesse um sonho ruim no meio da noite, o outro estaria ali para buscar um copo d’água, fazer um carinho, coisas assim.

Aqui no meu apartamento, outrora chamado nosso, ainda preservo os espaços que te pertenciam. Ainda te pertencem, todos eles.

Não ouso assistir televisão no sofá que você gostava de se esparramar, fico lá no lado que estabelecemos empiricamente que me era de direito, por mais que o seu sofá seja o de três lugares, e o meu o de dois, apertado pra caramba. Fico toda torta, não raro a perna fica dormente, formigando. Mas respeito a ordem estabelecida das coisas. O meu sofá é meu, o seu é seu. Mas o melhor de tudo era quando você largava suas coisas em qualquer canto da casa, e vinha assistir TV pertinho de mim, no mesmo sofá. Sei que outras mulheres fazem um escândalo quando veem suas casas desorganizadas, mas eu nunca me importei com a sua bagunça. Achava bonitinho, até. Dava vida à casa. Procuro manter as coisas do jeito que elas sempre foram, para quando você voltar.

Ainda acordo uma hora mais cedo do que o necessário, como se precisasse ir para o chuveiro mais cedo para que você possa tomar o seu banho tranquilo, do jeito que você gostava, e ainda ter tempo de pegar o ônibus das 07:30. Acordo, tomo meu banho e deito de novo por mais uma hora.

Algumas coisas mudaram na rotina desta casa, admito. Não tomo mais café da manhã, por exemplo. Não tenho fome quando acordo, mas você acordava com um buraco cataclísmico no estômago. Não sei se alguma vez lhe disse isso, eu detestava ter que acordar uma hora mais cedo do que o necessário, mas adorava preparar o seu café. Me parecia uma maneira diferente, mais criativa de te dizer “eu te amo”.

Uma vez você me disse que achava ler muito chato, te dava sono, mas você adorava me ver lendo, achava bonito. Talvez seja por isso que ainda leia, por que vontade, vontade mesmo, confesso que não tenho já faz bastante tempo. Desde que você partiu. Mas sento no sofá, abro um livro qualquer e tento me concentrar na história, embora hoje todas elas me pareçam enfadonhas, desinteressantes. Mas leio mesmo assim, imaginando que a qualquer momento a porta vai se abrir, você vai entrar e dizer que acha bonito me ver lendo com as pernas cruzadas.

Agora eu ouço tango novamente, que você tanto detestava. Piazzolla tem sido uma companhia e tanto. Mas deixaria ele sem pensar duas vezes, se fosse essa a condição para ter você de volta. Até o Chico, eu deixaria de ouvir, se fosse essa a condição para ter você de volta.

Nunca mais assistiria musicais, você não precisaria dizer coisas como, “pô, quando a história vai começar a ficar boa todo mundo pára e começa a cantar e dançar, que chato.”. Juro que só assistiria filmes dublados, nem legendas você gostava de ler. Faria isso como uma outra maneira diferente de te dizer, “eu te amo”.

As pessoas que freqüentavam a nossa casa não vêm mais aqui. Não deixo mais. No começo, logo depois que você partiu, elas até vinham, traziam vinhos, comidinhas, coisas para tentar me tirar da fossa. Mas enchi o saco de ouvi-las dizendo que eu preciso tocar minha vida pra frente, que tenho muito ainda o que viver, que sou jovem, bonita, que posso conhecer um cara legal, casar, ter ainda uma penca de filhos.

Não quero conhecer um cara legal.

Não quero casar.

Quero menos ainda ter uma penca de filhos.

Quando, há muito tempo atrás, encontrei um cara que me pareceu realmente legal, com quem eu quis de verdade casar e ter uma penca de filhos, ele me despedaçou inteira, não só o coração. Nunca mais quero olhar na cara do desgraçado.

Depois dele veio você, que mesmo tendo partido, continua senhor da minha vida.

Sou meio bichada, você sabe. Tenho pedras nos rins, morro de enxaqueca, tive que tirar um pedaço da vesícula, fiz não sei quantos tratamentos de canal, vivo com dor de ouvido e amigdalite, mas te digo com a mais absoluta certeza que se pode ter nessa vida, não existe dor comparável a de se enterrar um filho. Nada é tão brutal, absurdo, cruel, desumano, desalmado, violento, feroz, furioso, frio quanto ver um caixão pequeno e branco se fechar.

Hoje, quando vejo suas fotos, no fundo sei que não poderei tirar outras.

Mas mantenho tudo do jeitinho que você gostava.

Seu quarto ainda bagunçado, seus brinquedos pela casa, às vezes até compro um joguinho ou outro de vídeo-game que imagino que você fosse gostar.

Faço isso para não perder a esperança de um dia ainda ver você voltar.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

A borboletinha numa noite de fúria


Acordei no meio da madrugada, noite quente dos infernos. Odeio o verão, por mim o inverno seria eterno, frio de encarangar os ossos, daqueles que dá medo de cagar, pensando no risco de na hora em que o cocô cair, respingar aquela água gelada na bunda. Que saudade de sentir esse medo da água gelada na bunda.

Odeio o verão!

Sair do banho suando, nem mil ventiladores deixam a noite possível de ser dormida. O lençol esquenta, dá vontade de dormir no chão, na pia, mas até eles esquentam em pouco tempo. Um saco.

E para deixar ainda mais detestável a equatoriana noite passada, esses móveis malditos estão infestados de cupins. Cupins do caralho!

No meio da noite, janela escancarada, ventilador ligado de frente para minha cara, e surge um enxame de cupins voadores, aquelas minhoquinhas nojentas que deixam suas asas pela casa inteira, que tomam conta do lençol, que entram por baixo da fronha e ficam no travesseiro, que são absurdamente resistentes ao Jimo Cupim, não morrem de jeito nenhum, desgraçadas.

Li não sei onde que cupins morrem com fogo, me deu uma vontade de atear fogo nessa merda desse apartamento velho caindo aos pedaços, ver tudo queimando, ardendo como arde o verão. Sério, duvido que o inferno seja mais quente que uma noite de janeiro sem vento.

Levantei era umas três, três e meia no máximo.

Esvaziei uma lata inteira de Jimo Cupim em cada buraquinho daquele guarda-roupas podre. Depois, para completar meu genocídio, acabei com uma lata de SBP apontando para tudo quanto é lado do quarto.

Resultado? Impossível ficar ali, até eu morreria intoxicada.

Tive que ir para a sala, e lá tava pior ainda. O sol da tarde bate na janela da sala, e como eu tenho que deixá-la fechada quando saio para o trabalho, quando eu chego, aqueles mínimos metros quadrados da sala conjugada a cozinha viram uma estufa.

Mas tenho certeza, parte do meu incomodo era raiva de você. Raiva por ter sido abandonada por você. Quem você pensa que é para me deixar assim?

Filho da puta!

Só por que ela é coxuda e eu sou magrela?

Filho da puta!

Você dizia que gostava da minha magreza, que eu parecia uma borboletinha, delicada, fininha, esguia. Você me chamava de “minha borboletinha”.

Filho da puta!

Enfim, foi nessa hora de raiva do calor e ódio de você, que resolvi radicalizar, mudar minha vida, deixar meu mundo de cabeça pra baixo.

Pensei em várias alternativas, fazer uma tatuagem, talvez.

Ou então, melhor ainda, ao invés de ir para o trabalho responder uma tonelada de emails, dizer sim senhor, não senhor, tudo bem senhor, pois não senhor, claro senhor, agora mesmo senhor, mais café senhor? eu largaria o emprego. Acho uma merda aquele trabalho. É sufocante ser mandada por um débil-mental quase acéfalo, que ganha três vezes mais do que eu para ficar vendo sites de mulheres peladas enquanto eu faço o trabalho dele para que ele leve os créditos. Pensei em pegar o mesmo ônibus lotado de todo dia, ir par ao centro, entrar na sala daquele asno e mandá-lo a merda, mandá-lo se foder, enfiar o emprego no cu.

Depois sairia aliviada pela minha vingancinha quase infantil. Caminharia calmamente até o primeiro boteco, pediria uma coca de verdade- nada de coca light, dessa vez. Ou melhor, pediria uma cerveja às sete da manhã. Uma Xingu. E um ovo cozido, daqueles do pote de conserva com água nublada, nojentos. Comeria com mostarda escura, o ovo nojento. Não usaria guardanapos, limparia a boca na manga do uniforme do meu então ex-emprego.

Arrotaria alto, se tivesse vontade.

Antes de sair do boteco pediria um maço de Plaza, ou Derby. O que fosse pior. Começaria a fumar.

Com meu novo bafo de cigarro, me abaixaria até o ouvido daquele ceguinho desafinado que fica tocando músicas ininteligíveis no seu acordeom velho, e diria que a música dele é uma merda, que se não fosse por pena, ele morreria de fome, ceguinho desgraçado.

Iria até aquela igrejinha velha do centro, que sempre tem missa o tempo todo, e diria para a meia dúzia de carolas que estivessem por lá, “O que vocês precisam é de uma boa trepada, bando de carolas hipócritas do caralho!”.

E se no meio do meu caminho aparecesse algum escroto vestindo alguma horrorosa camisa de qualquer time de futebol, ia dar de dedo na cara dele, e dizer, não, eu não ia dizer, eu ia gritar para ele que nos dias em que ele vai para o estádio, ou fica preso na frente da televisão, a namorada, esposa, mulher, seja lá o que for, com certeza fica dando para alguém muito melhor do que ele, até por que, o outro prefere mulher do que futebol.

Pegaria o ônibus que leva até o teu novo apartamento, e se alguém puxasse conversa comigo na fila do ônibus, perguntando do tempo, do sol, da chuva, eu enfiaria a mão na cara. Ah, se enfiaria!

Na tua casa, apertaria a campainha ininterruptamente, cravaria meu dedo na porra da campainha e só tiraria de lá quando você abrisse a porta com a cara amassada de sono, de quem levanta depois do meio dia por que brinca de ser músico.

Eu diria com o dedo apontado para a sua cara que você não é tão bom quanto pensa que é. Que você é bem mais ou meninhos, na verdade. Meia boca. Que até fode direitinho, mas beija mal pra cacete. Diria que você não me faz falta, que estou melhor sem você, que agora me sobra o dinheiro que antes eu gastava para te sustentar nos períodos em que nenhum barzinho te contratava para ficar tocando aquele violão velho, sempre as mesmas do Djavan, do Cláudio Zoli, uns reggaezinhos da moda. Tudo uma merda. Diria que você não tem criatividade nem mesmo para escolher a porra do seu repertório de barzinho.

Diria na sua cara tudo o que você merece ouvir, só desaforo, só desabafo. E diria que não estava dizendo aquilo tudo só por que eu larguei meu marido para ficar com você, e um mês depois você me deixou para ficar com aquela cadela coxuda.

Depois de dizer tudo o que eu quisesse te dizer, cuspiria na sua cara. Daria uma gargalhada, viraria as costas e sairia satisfeita, aliviada, vingada. Seu cantorzinho filho da puta de merda.

Após meu desabafo, eu sairia do seu novo prédio e seria enfim feliz para sempre. Livre, leve e solta. Sem você, sem aquele emprego nojento, só eu e o que me desse vontade de fazer.

Pensando nisso tudo, acabei dormindo no sofá da sala-estufa. Acordei toda suada, cheia de picadas de mosquito e atrasada para o trabalho.

Quando fui tomar meu banho, faltou água.

Só troquei de roupa e saí de casa para o meu dia de fúria, dia da minha vingança com o mundo.

Por acordar atrasada, perdi o ônibus que costumo pegar. Fiquei na fila esperando o próximo, uma velhinha se aproximou de mim, e perguntou, “será que vai chover?”.

Olhei pra ela com raiva, respirei bem fundo, olhei fundo nos olhos dela, aqueles olhos meio desbotados, sem cor, que todo velho tem, e respondi, “Acho que sim. No fim do dia, talvez. Tá tão quente, deve cair uma dessas chuvas de verão no fim da tarde.”

Ela sorriu e não falou mais nada.

Como já estava atrasada mesmo, passei na padaria do centro antes de ir para o trabalho, pedi um misto quente e uma coca light.

Um careca barrigudo fumava um Derby perto de mim, que cheiro nojento aquilo tem.

Saí da padaria, e quando passei na frente daquela igrejinha velha do centro, vi que conforme eu havia imaginado, lá dentro uma meia dúzia de carolas ouviam o que o padre dizia. Fiz o sinal da cruz e fui para o trabalho, mas antes dei as moedas do troco do meu misto quente com coca light para o ceguinho desafinado que tocava acordeom.

Subi o elevador do prédio, fui até a sala do meu chefe e pedi desculpas pelo atraso, disse que passei a noite com minha mãe no hospital. Ele perguntou, “Ué, ela não tinha morrido no carnaval do ano passado?” Eu sorri amarelo, e disse que não, que quem tinha morrido era a minha avó, tadinha, tão velhinha...

Depois disso respondi uma tonelada de emails, disse várias vezes durante o dia: sim senhor, não senhor, tudo bem senhor, pois não senhor, claro senhor, agora mesmo senhor, mais café senhor? E o expediente acabou.

Passei naquele cara que você disse que era muito bom, com a mão firme, traço bonito, material de qualidade.

Não choveu no fim do dia, e continua quente como o inferno.

Agora estou aqui, te mandando este email enquanto escuto aquela coletânea do Djavan que você me deu no meu aniversário, com as músicas que você costuma tocar nos barzinhos.

Te escrevo, ouço Djavan e olho para a borboletinha, delicada, fininha, esguia, linda, linda que agora tenho no meu tornozelo.

Não me vinguei do mundo, mas fiz uma tatuagem que é uma gracinha.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

A trilogia da zona - Último capítulo: Um porre de verdade


Se tem uma coisa na vida que eu me arrependo profundamente, foi do infeliz dia em que eu tirei você do meio daquela rua. Devia ter deixado você lá, jogada no chão, sangrando até morrer. Nunca vi tanta ingratidão!

Eu fiz tudo por você, tudo! Até médico particular eu paguei do meu bolso, te acolhi como nem uma mãe acolheria uma filha, comprei uma briga com o dono desta espelunca para deixar você morando aqui sem trabalhar, até que você ficasse totalmente recuperada.

Em nenhum momento eu lhe pedi para que ficasse trabalhando aqui, só queria que você se recuperasse, ficasse bem para que depois pudesse tocar sua vida como uma mulher normal, e não trabalhando como puta. Mas você quis ficar aqui, tudo bem, eu aceitei, mas com a condição de que eu dissesse com quais clientes você se deitaria, tudo para te proteger, tudo por que quando vi você caída no meio da rua, lembrei de tudo o que meu pai fazia com a minha mãe, e quis tentar impedir que você acabasse morta como ela acabou. Nunca pedi nada em troca, apenas que você só se deitasse ou saísse com quem eu indicasse, e é assim que você retribui tudo o que eu fiz por você.

Já vi muita coisa nessa vida, trabalhando aqui então, a gente vê cada coisa que vocês nem imaginam, mas ingratidão como essa eu nunca vi!

Cada um dos clientes com quem você se deitou eu escolhi a dedo, pois sabia que eram inofensivos, que jamais fariam você passar o que passou com o filho da puta do seu ex-marido.

E, mais do que inofensivos, todos com muito dinheiro, para fazer com que você e seus filhos pelo menos agora passassem a ter tudo do bom e do melhor. E, você sabe, nas vezes em que você se excedeu com o dinheiro, eu tirei do meu bolso para que não faltasse nada aos seus filhos. Eu cuidei de você e dos seus filhos, sua putinha desgraçada, e é assim que você me agradece, desrespeitando o único pedido que eu te fiz!

Quantas vezes eu pedi para que você ficasse longe desse cara? Quantas vezes?

Foi a única coisa que eu te pedi, mas você não foi capaz de atender o meu único pedido. Foi só eu dar uma saidinha, e quando entrei aqui vi você de papinho com esse cara.

Quer saber a verdade? Eu te digo a verdade.

Esse cara vem aqui há muito tempo, bem antes de você chegar aqui. Quando eu comecei a trabalhar aqui, e isso já faz um tempão, me disseram que ele já era cativo dessa mesinha do canto, que devíamos deixá-lo bebendo sozinho, que ele só queria ficar aqui na dele, bebendo sozinho. Sempre desconfiei muito de caras assim, quietos. Mas que ficasse quieto, então, se era o que ele queria.

Mas logo nas suas primeiras semanas, pela primeira vez em mais de um ano, ele me chamou para conversar e perguntou por você. Eu tentei te proteger, disse que você não gostava de homens com bigode. Disse isso pra te proteger, pois tinha certeza que um cara que sempre veio aqui com a mesma cara, praticamente a mesma roupa, não ia raspar o bigode de tanto tempo só para impressionar uma putinha qualquer.

No dia em que esse cara veio dizer que ia chamar você para conversar, levei você lá pra trás e fiz você cheirar mais do que o normal, só para provocar uma pequena overdosesinha, para te manter longe dele. Eu estava te protegendo, manter você no hospital aquela noite, foi por cuidado, por proteção.

Mas você não foi capaz de compreender o meu cuidado, a minha proteção, e não atendeu ao único pedido que eu lhe fiz.

Eu fiz você ficar cativa do Flavinho, só para humilhar esse cara. Pois ele é baixinho, barrigudo e está ficando careca, com certeza se sentiria intimidado por um cara jovem, bonito, rico, que passava mais de duas horas por noite com você. Eu sabia há muito tempo que o Flavinho não era de nada, mas sabia mais ainda que aquilo te manteria protegida e bem paga.

Ninguém aqui viu, mas eu via como ele chorava escondido cada vez que você subia para os quartos com o Flavinho. Pensei que aquela decepção de ver você nos braços de um homem que, ao menos aparentemente era muito mais homem do que ele, seria suficiente para mantê-lo longe de você. Mas, pelo visto, não foi.

Agora, prestem bem atenção, vocês dois prestem bem atenção no que eu vou dizer, você, Michelle, suba, pegue suas coisas agora mesmo e dê o fora daqui, nunca mais apareça na minha frente, não quero ver sua cara nunca mais, entendeu bem? Entendeu bem? Nunca mais! Já que você agradeceu tudo o que eu fiz por você, toda a dedicação e o carinho que eu tive com você desse jeito, que você desapareça pra sempre da minha vida, não me interessa mais o que vai ser de você e dos seus filhos.

E quanto ao senhor, saiba que mesmo sendo assim, bruta, meio grosseira, tentando disfarçar minha feminilidade para que ela não pareça fraqueza, mesmo assim eu tenho sentimentos, sabia?

E mesmo que o senhor não se importe com isso, é importante que o senhor saiba. Eu só fiz isso tudo, só fiz tudo o que estava ao meu alcance para manter essa putinha longe do senhor, por que desde muito antes dessa desclassificada aparecer por aqui, há muito tempo que eu te amo.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

A trilogia da zona - Capítulo 2: Uma dose de sinceridade


Não sei por que ela lhe disse isso, mas não tenho nada contra homens de bigode. Você fica bem com ele, e não estou sendo paga pra dizer isso. Você realmente fica bem com ele. Meu pai usava bigode, mas o dele era feio. O seu é bonito. Bem aparado. Gosto mesmo do seu bigode.

Embora você tenha me pedido para dormir sozinha hoje a noite, meio que por ciúme, lhe afirmo que ninguém poderia me ter feito pedido melhor, justamente hoje. Será um prazer dizer não ao Flavinho. Esse é o nome do playboyzinho. Ele tem ejaculação precoce, mas me paga sempre para que eu fique duas horas no quarto com ele, para que seus amiguinhos pensem que ele é fodão. Tadinho, deve ser por causa dos anabolizantes que toma, dizem que isso faz um mal danado para o pau. Muitas vezes o negocinho dele nem levanta, e quando levanta, fica cabisbaixo bem rapidinho. Rapidinho mesmo.

Mas não estamos aqui para falar dele.

Hoje eu não vou ser paga para dormir por duas horas enquanto ele fica vendo filme pornô.
Você disse que tem uma vidinha filha da puta, mas você não faz ideia do que é ter uma vida de puta. A grana é boa, a droga rola solta, o que alivia bastante a tristeza. Sei que isso pode lhe decepcionar, mas quero retribuir a sua sinceridade, não vou me permitir mentir ou omitir o que quer que seja.

Tem dias que só a beleza de uma boa carreira alivia o quão insuportável a vida às vezes se torna. Na primeira vez que me ofereceram, fiquei espirrando por mais de dez minutos, eu tenho rinite. É preciso desenvolver uma boa técnica para dar uma cheirada sem que saia espirrando na parte das outras meninas.

A Maria, esse é o nome da garçonete machorra que você mencionou, ela é que consegue pra gente. Me disseram que antes não tinha disso, foi pouco tempo depois de eu ter começado a trabalhar aqui que ela começou a nos servir. Dizem que é da boa, como eu nunca experimentei outra, acredito que seja mesmo. Às vezes o nariz sangra, mas, hoje em dia, sem ela é difícil de agüentar a rotina. Teve um dia que eu quase tive uma overdose, parei no hospital e tudo, mas hoje sei bem o meu limite. Sei quantas carreiras agüento.

Não posso negar que a grana seja boa, mesmo que boa parte fique para o dono do bar, ainda assim a grana que nos cabe é bastante boa.

Tenho dois filhos e, mesmo sabendo que sou muito bonita, não conseguiria outro emprego que me pagasse o que ganho aqui. Só estudei até a quarta série. Não gosto de estudar, nunca gostei. E de dar eu gosto. Se bem que aqui, não dou do jeito que gosto, até por que para se dar do jeito que se gosta, é preciso dar para quem se gosta.

Tem uma menina que trabalha aqui, aquela ali, a ruiva, que diz que só faz sexo com amor, mas que ama sexo, logo, sempre é com amor. Diz que é realizada por que trabalha naquilo que mais ama fazer, e no que acredita ter talento para fazer. Aquela consegue gozar até com mendigo, devia ser estudada por alguma universidade, não pode ser normal. Não vou ficar de falsa modéstia, também tenho talento para a coisa, mas não é qualquer um que me faz gozar. Acho que só o pai dos meus filhos que conseguiu isso, os outros, alguns deles, só chegaram perto. Mas ele me deixou, me largou para ficar com a minha prima. A vagabunda da família.

Não, ela não faz programa, é vagabunda mesmo, só de sacanagem, não por profissão.
Mas, mesmo eu tendo jeito pra coisa, mesmo ganhando um bom dinheiro e tendo cocaína boa de graça a minha disposição, mesmo que esse trabalho me permita dar tudo do bom e do melhor para os meus dois filhos, já que o sacana do meu ex não me paga um centavo de pensão, não foi por nenhum desses motivos que eu vim trabalhar aqui.

Quando o safado do Dionísio – esse é o nome do meu ex – me deixou, eu fiquei muito mal. Queria arrancar os olhos da vagabunda da minha prima, ela rindo da minha cara, dizendo que não tinha culpa se era mais gostosa que eu. E vou dizer, ainda que seja bonitinha, é toda cheia de celulite. Mas vive enfiada naquelas roupas de periguetes, saias curtíssimas, shortinhos atochados no cu, decotes que vão até o umbigo, uma vaca! Homem gosta de vacas, gosta de mulher vulgar. E eu, que sempre fui toda gostosinha de verdade, não tenho uma celulite, como você já deve ter percebido nos meus shows, mas na rua não ando fantasiada de puta. Só sou puta no trabalho, lá fora sou mulher normal, como qualquer outra, como a sua irmã, sua mãe, ou qualquer outra mulher direita que você conheça. Vou à missa e tudo. Numa dessas, até nos esbarramos por lá, mas como lá eu sou mulher normal, você não teria me notado. Você me notou aqui, por que aqui eu ando igual a minha prima, aquela vagabunda.

Um dia, eu estava no meio da rua no maior bate-boca com a minha prima, ela me bateu na cara, eu caí. Nisso, o Dionísio apareceu. Achei que ele ia me defender, mas o safado me deu um chute na barriga quando eu tava caída. Ele não sabia, mas aquele chute matou o terceiro filho dele.

Eu estava caída, me contorcendo de dor, quando alguém puxou o Dionísio por trás, agarrou o colarinho do safado e encheu a cara feia dele de soco. Pois é, ele é muito feio, eu e a vagabunda da minha prima brigando por um cobradorzinho de ônibus feio como o capeta, mas bom de cama como sei lá o quê. Como era gostoso, o desgraçado.

Aquele dia ele apanhou, apanhou muito. Quando caiu no chão, depois de ter a cara toda amassada de tanto soco que levou, ainda levou uns bons chutes. Pena que ele não estava grávido, para saber como dói abortar. Ainda caída, vi ele deitado no chão com a boca toda ensangüentada cuspir uns três dentes.

Quando olhei para cima, era a Maria que estava ali. Ela que havia espancado o desgraçado do Dionísio. A Maria é baixinha, gordinha, mas forte como poucos homens são. E sabe bater. Sabe bater pra fazer doer. A Maria é foda! Eu que não me meteria a besta com ela, melhor tê-la como aliada do que como desafeto. Quando ela apareceu com a farinha a primeira vez, eu disse que não queria, mas no fim, achei que era melhor não fazer desfeita com ela, justo ela que me estendeu a mão, me defendeu.

Ela me trouxe pra cá, me acolheu, cuidou de mim até que eu ficasse boa. Ela pagou com o dinheiro dela o médico que me atendeu, que fez a curetagem do meu filho morto, tudo clínica particular, atendimento de primeira.

A Maria tem aquele jeito grosseirão, mas é pessoa muito boa.

Antes disso tudo que você me falou, foi a primeira vez que alguém me tratou com carinho, carinho de verdade. Nem carinho de mãe eu tinha. Ela não gostava de mim, pois como sempre fui bonitinha, gostosinha, ela tinha medo que meu pai quisesse ficar comigo e deixasse ela. Ele até se engraçou pra cima de mim algumas vezes, mas aí eu conheci o Dionísio e logo saí de casa.

Desde que eu cheguei aqui, a Maria se tornou meio que a minha protetora. Ela que me indicou para o Flavinho, o playboyzinho. A Maria sabia que ele era inofensivo, e com ele eu poderia ganhar uma boa grana sem ter que me esforçar ou humilhar por isso. Você não faz ideia da quantidade de humilhação que algumas meninas têm que se sujeitar aqui para ganhar dinheiro. Tem homem que nasceu podre, e quanto mais envelhece, mais fede. A Maria sempre me protegeu, sempre me indicou para clientes certos, que pagam bem e não ultrapassam certos limites. Taras todo mundo tem, mas, mesmo as putas merecem respeito. Talvez a gente mereça até mais do que as outras mulheres, pois para que elas não apanhem em casa, é preciso que a gente leve alguns tapinhas dos maridos delas. Não sei se você gosta disso, mas uns tapinhas às vezes até que vai bem. O Dionísio era bom nisso.

Estou realmente comovida com a sua declaração de amor, tão simples, tão sincera. A gente escuta tantas promessas de clientes dizendo que vão pagar para que sejamos exclusivas deles, que vão nos dar apartamento, carro, o mundo, mas nunca escutamos alguém dizer que gosta da gente de verdade. Ouvir isso faz um bem danado, você nem imagina.
Mas não posso mentir pra você, por tudo o que eu vivi desde o dia em que apanhei na rua, no dia em que perdi meu terceiro filho, fui cuidada com tanto carinho pela Maria, que foi inevitável me apaixonar por ela.

Hoje, eu só trabalho aqui pra poder ficar perto dela. Só me sujeito a ir com os clientes que ela indica, por que imagino que ela vai ficar feliz por isso, por confiar nas indicações dela. É minha maneira de dizer pra ela como ela é importante pra mim, mesmo que, diretamente, eu nunca tenha dito. Tenho medo. Acho que não faço o tipo dela.

Mas tê-la por perto já me conforta, sei que ela vai me proteger. Queria ser a mulher dela, faria tudo por ela, e tenho certeza que com ela eu gozaria muito mais e melhor do que com o nojento do Dionísio, mas não tenho coragem.

Não fique triste por favor, não te conheço, mas já gosto muito de você. Mas entenda, ainda que já tenha um grande carinho por você, no meu coração só tem espaço para a Maria.

Maria, venha cá, por favor.

O que você está fazendo?

Vou lhe ajudar.

Eu não quero ajuda, você não vai falar nada pra ela, eu confiei em você, abri meu coração, você não tem o direito de me entregar assim, isso pode estragar tudo.

Não se preocupe, você vai me agradecer por isso.

Pois não?

Maria, já conversamos algumas vezes, você já sabe há algum tempo do meu interesse pela Michelle, mas existe algo que você ainda não sabe e precisa saber.

Pare já com isso, eu não quero que você diga nada, se você abrir a boca eu vou embora e você nunca mais vai me ver na sua vida.

Confie em mim, você ainda vai me agradecer por isso.

Escutem aqui vocês dois, sei que vocês já estão de conversinha há muito tempo, embora eu não tenha lhe indicado para falar com ele, mais do que isso, tenha dito para você ficar longe desta mesa, sei que você já está aqui com ele a bastante tempo, dona Michelle. Agora quem vai me ouvir são vocês dois.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

A trilogia da zona - Capítulo 1: Um copo cheio de coragem


Espero que você não se importe, mas eu te amo.

Não, não ria. Por favor, não ria de mim. É verdade, eu te amo.

Sei que sou chato e você não gosta de homens que usam bigode, mas raspá-lo seria o mesmo que solicitar em juízo a autorização para abolir do meu nome composto o sobrenome que herdei de meu pai. As três únicas heranças que me deu, diga-se de passagem, o nome composto, o sobrenome e o bigode ancestral.

Não tenho por que abrir mão do meu sobrenome, o mundo não será um lugar melhor, tampouco pior, para se viver com um Silva a mais ou a menos. Somos tantos, que sequer fazemos diferença. Criar uma estatística para saber quantos somos, seria o mesmo que estabelecer a quantidade de grãos de arroz que há num saquinho de um quilo. Não importa, é só um quilo. Um grão a menos, outro a mais, permanecerá sendo um quilo.

E como você não há de notar em mim, mesmo que raspe o bigode, que ele fique, então.

Além do quê, se pagar, sei que você dirá que meu bigode é lindo, que fico másculo com ele, que ele me confere uma austeridade serena, coisa de homem bem sucedido. Mas sei também que será mentira. Pagando, você deverá até dizer que sou bom de cama. Mas não vou pagar pelo seu amor, ainda que te ame. E também sei que não sou bom de cama, mas sou ótimo com números. Poderia ajudar você com a declaração do imposto de renda, embora acredite que o que você recebe pelos seus préstimos não seja registrado em carteira profissional.

Faz tempo que venho aqui, muito antes de você aparecer. Antes mesmo de você ter idade para trabalhar num ofício destes, se é que agora você já tem.

Não venho em busca de mulheres, embora goste muito de vê-las tirando a roupa naquele palquinho sem vergonha com paredes espelhadas e um cano de ferro enferrujado no centro. Quando comecei a freqüentar esta budega, era novo o cano de ferro, e percebi que ele foi enferrujando na exata proporção em que meu cabelo foi rareando.

Gosto muito daqui, pois aqui ninguém faz tipo. Os homens que vem aqui não estão interessados em se fazerem notar, pelo contrário, quanto mais despercebidos passarem aos outros, tão melhor será.

Eu também não gosto de ser notado, seja fora daqui, muito menos aqui.

Queria ter conhecido você na saída da missa, talvez acompanhada pelos seus pais, eles haveriam de gostar de mim. Embora não seja um homem atraente, possuo alguma respeitabilidade, sou razoavelmente bem sucedido na minha profissão de números e cálculos, de certo um bom modelo de genro para pais que desejam às suas filhas algum sossego e estabilidade emocional e financeira.

Todavia, pior do que ter conhecido você aqui, seria não ter lhe conhecido.

Vidinha filha-da-puta, esta minha. Não costumo recorrer a palavrões, mas não encontro expressão mais adequada para minha biografia. E, por favor, não pense que esta expressão chula seja alguma referência irônica a sua indispensável profissão. Se o mundo já está a merda que está contando com as suas colegas de profissão para aliviar o insuportável nível de estresse nosso de cada dia, não quero nem imaginar como estaria sem você e suas colegas.

Sei que essa minha conversa não deverá surtir qualquer efeito nos seus sentimentos, até por que duvido que alguma puta leve a sério o que qualquer homem diga. Vocês devem ouvir tantas coisas aqui, tantas histórias, que vocês, mais do que qualquer outra mulher do mundo, podem dizer de boca cheia que os homens são sim, todos iguais. Todos um bando de merdas, todos um bando de bostas que deixam suas famílias em casa e vem aqui se deitar com você e suas colegas, dizendo nos seus lares que ficaram trabalhando até mais tarde.

Mas eu não sou casado. Poderia ser, se você quisesse. Mas não sou. Poderia ser com você, ou até mesmo com outra, caso isso lhe agradasse.

Não vá ainda, por favor, eu lhe pago outra bebida. Vocês ganham comissão por isso, não? Então, não vou pagar para me deitar com você, mas lhe pago outra bebida para que você fique aqui mais um pouco. Faz tanto tempo que tento encontrar coragem para falar com você, venho aqui quase toda semana, só na última do mês que geralmente não venho, pois o dinheiro já me começa a faltar. Mas venho sempre que posso. Venho sempre nos dias que sei que você estará aqui. Peguei sua escala com aquela garçonete machorra que vive de papinho com você. Morro de inveja dela pela intimidade que ela tem com você, tanto quanto imagino que ela deva invejar o meu bigode. Ela que me disse que você não gosta de homens de bigode.

Só tomei coragem para conversar com você, pois antes de chegar aqui, tomei quase uma garrafa inteira de whisky sozinho. Já cheguei bem bêbado, e antes de começar a conversar com você, ainda tomei as quatro cervejas que a casa oferece de cortesia aos clientes mais assíduos. Pois é, mesmo que você jamais tenha notado minha presença aqui, sou um deles.

Não era tão assíduo assim, só me tornei depois que você apareceu. Que bom que você apareceu. É a primeira vez na minha vida que espero ansiosamente por algo, as noites de quinta feira, no caso. Antes, estar no trabalho era mais interessante do que voltar pra casa.
Teve uma vez que eu quase tomei coragem para falar com você, comentei com a garçonete machorra que falaria com você, mas naquele dia você faltou. Depois, no fim da noite, a garçonete machorra me disse que você tinha passado mal, que precisou ir para o hospital. Pensei perguntar em que hospital você estava, mandar flores, sei lá. Mas no fim, achei melhor ir pra casa. Foi nesse dia que ela, a garçonete, me disse que seu nome verdadeiro é Michelle, e não Samantha. Fui dormir ouvindo a sétima do Rubber Soul no repeat, embora prefira os Stones. Ter esperado a semana inteira por aquela quinta feira e, no fim das contas, não ver você, me deu uma sensação tão grande de vazio... Dormi triste, aquele dia.

Sei que você só tira a sua roupa no palco se alguém lhe pagar, você não faz parte do plantel de strippers habituais da casa. Sua amiga machorra que me contou.

Mas também já assisti você dançando nua várias vezes naquele palquinho do cano enferrujado. Tenho medo que você pegue tétano. Você já tomou a anti-tetânica? Seria bom tomar.

Sei que quando vem aquela turma de playboyzinhos, eles sempre pagam para que você tire sua roupa no palquinho e, mais do que isso, o carinha que aparentemente tem mais dinheiro do que os outros, sempre lhe leva para um dos quartos deste pulgueiro após o seu showzinho pré-pago, como se você fosse o troféu dele. Ninguém percebe, mas sempre que eu vejo você saindo com ele, eu abaixo a cabeça e contenho minha amargura tentando evitar o choro. Vez ou outra, me escapam uma ou duas lágrimas. Mas, como já disse, aqui ninguém nota em ninguém, só eu noto em você. Noto em você de verdade, não no seu corpo, embora ele seja lindo e também o note.

Sei que daqui a pouco os playboyzinhos devem chegar, hoje é o dia deles virem aqui. Mas, se você aceitar a minha proposta, hoje eu que irei lhe pagar. Mas não pelo seu show, e sim para que hoje, apenas hoje, você não tire a sua roupa e, mais do que isso, pago o dobro do que ele habitualmente lhe oferece para que hoje você não se deite com ele, para que hoje você durma sozinha.

Desculpe se lhe importuno com esta conversa fiada, mas a bebedeira me encheu de coragem, e sei que não terei essa coragem noutro dia.

Enfim, como disse, espero que você não se importe, mas eu realmente te amo.

Eu não me importo.

Não?

Não.

E estou realmente comovida com tudo o que você me disse. Acho que é a primeira vez que alguém repara em mim, e não na minha bunda bronzeada. Estou muito comovida mesmo, de verdade.

Não vou fazer o show, não vou me deitar com ele, e você não precisa me pagar nada por isso. Se eu puder ficar aqui lhe fazendo companhia a noite inteira, já estará mais do que bem pago. Só hoje, me deixe fazer companhia para você. Me pague as bebidas que eu beber durante a noite, e lhe asseguro que não terá showzinho e que dormirei sozinha, embora hoje, quase queira dormir com você. De graça.

Gostei muito de ouvir você dizer que me ama, como disse, estou comovida com a sinceridade que suas palavras parecem ter, mas, para que possamos passar essa noite bebendo juntos, fazendo um companhia para o outro, também preciso ser sincera, você precisa saber de algo muito importante sobre mim.