terça-feira, 28 de setembro de 2010

O grosso do lotação


Que tempinho, hein?

Oi?

O tempo, esse chove e pára o dia inteiro, coisa chata, né? Ainda mais para quem pega ônibus.

Ah, sim, o tempo.

Pois é.

Pois é.

Viu o debate ontem?

Oi?

O debate ontem, entre os presidenciáveis, no canal 4.

Ah, o debate.

É, o debate. Viu?

Não.

Devia ter visto, o negócio pegou fogo.

Legal.

Você devia ter visto! É importante para a consolidação do nosso estado democrático que participemos deste tipo de evento.

Assistir não é participar.

Mas é importantíssimo para que conheçamos os candidatos, para na nossa hora de participar, que é na hora do voto, possamos participar da maneira mais acertada.

Legal.

Em quem você vai votar?

Oi?

Nas eleições, em quem você vai votar?

O voto é secreto.

Mas quem sabe você não me convence a votar no seu candidato.

Eu não quero. Vote em quem você achar melhor.

Bom, não sei se você já escolheu todos os seus candidatos, mas eu tenho uma sugestão para deputado estadual que é muito boa, ele já trabalhou com a minha mãe, o cara é bom mesmo, muito sério.

Legal.

Posso te entregar o santinho dele?

Não.

Você já tem candidato?

Não. Sim. Enfim, não interessa, vou votar nulo.

Mas isso é um absurdo! É desrespeitar todos aqueles que se sacrificaram nos porões da ditadura para que hoje nós tivéssemos a oportunidade de escolher através de um processo democrático os nossos representantes no legislativo e no executivo.

A fila.

Você não pode abrir mão de um direito privilegiado como esse! Mais do que um direito, é um dever!

Moça, a fila.

Oi?

A fila andou. O motorista abriu a porta do ônibus.

Ah, sim. Desculpe.

Olha só que coincidência, o único lugar vago é esse do seu lado.

Oi?

Nós dois no maior diálogo lá na fila, e justo um lugar do seu lado que está vago.

Monólogo, na verdade

Como?

Nada não.

Nossa, como esses motoristas correm, nem param nos pontos de ônibus para que outras pessoas possam entrar.

Oi?

Os motoristas, correm muito.

Que bom. A viagem acaba mais rápido.

O que você está lendo?

Oi?

O livro que você está lendo, deve ser bom, você está tão compenetrado nele. Qual é?

O livro que eu estou TENTANDO ler, não te interessa. Você não precisa fingir interesse, você não vai descer do ônibus e ir voando à uma livraria comprar um exemplar.

Como você sabe? Eu posso gostar muito de ler.

Platão, A República.

Oi?

O livro. Posso voltar a ler?

Claro.

É bom?

Oi?

O livro, é bom.

É.

Do que fala.

Oi?

O livro, do que fala?

Não sei, não estou conseguido ler. Mas façamos assim, você anota o seu email numa nota de cinqüenta reais, deixa ela comigo, eu termino de ler o livro e te mando um resumo crítico assim que terminá-lo.

Hahaha, você tem um senso de humor ótimo!

Não, eu não tenho.

Sim, sim, você tem. Esse seu sarcasmo é ótimo.

Ótimo, posso voltar a ler?

Claro.

Ok.

Você lê muito?

Ai meu caralho...

Que foi, tá tudo bem?

Não, não está tudo bem! Olha só, eu não quero saber como está o tempo, entendeu? Eu quero que o tempo se foda! Eu não quero saber em quem você vai votar! Eu quero que caia um dilúvio e afogue todos os seus candidatos, inclusive o senhor muito sério que trabalhou com a sua mãe! Talvez você não tenha percebido, mas eu não quero conversar, eu não gosto de conversar, eu não gosto de gente, eu detesto multidão, entendeu?

Nossa, que nervosinho, você precisa é de um psicólogo. Minha terapeuta é ótima, se você quiser, eu te dou o telefone dela.

NÃO, MINHA FILHA, EU NÃO QUERO O TELEFONE DA PORRA DA SUA PSICÓLOGA, QUE SE FODA ELA E VOCÊ TAMBÉM! EU SÓ QUERO LER O MEU LIVRO SOSSEGADO, DIFÍCIL DE ENTENDER?

Grosso!

GROSSO É O CARALHO! DEIXA DE SER SURDA, DEIXA DE SER BURRA, EU NÃO QUERO CONVERSAR, VOCÊ NÃO DEVIA CONVERSAR COM ESTRANHOS! EU POSSO SER UM LADRÃO, UM ASSASSINO, UM ESTUPRADOR. EU POSSO CONVERSAR COM VOCÊ, TE CONVENCER A DESCER NO MEU PONTO, TE LEVAR PARA O MATO, TE ESTUPRAR, TE ESTRANGULAR E TE ABANDONAR COM A ROUPA TODA RASGADA NUM TERRENO BALDIO, PÁRA DE FALAR COMIGO, PELO AMOR DE DEUS! NÃO BASTASSE AQUELA PORRA DAQUELE IPOD TOCANDO SERTANEJO UNIVERSITÁRIO A VIAGEM INTEIRA, QUE O IDIOTA INSISTE EM OUVIR SEM FONE, AINDA TENHO QUE AGUENTAR VOCÊ FALANDO SEM PARAR, ME DEIXA EM PAZ, PELO AMOR DE DEUS.

Ê amigo, qual o problema com a minha música?

TODOS! TODOS OS PROBLEMAS DO MUNDO! PRIMEIRO QUE EU NÃO SOU SEU AMIGO, SEGUNDO QUE ESSA MÚSICA É HORRÍVEL, E VOCÊ PIOR AINDA PELA SUA FALTA DE EDUCAÇÃO! QUER OUVIR ESSA MERDA, ESCUTE NO FONE, MEU OUVIDO NÃO É FOSSA PARA TER QUE AGUENTAR ESSE LODO GRITADO!

Ô rapaz, acha que tá falando com quem?

COM UM BANDO DE MAL EDUCADOS DO CARALHO, VÃO SE FODER TODOS VOCÊS, PAREM DE FALAR COMIGO, EU NÃO QUERO FALAR COM VOCÊS.

Vai baixando a bola aí, ô folgado!

É, é, engraçadinho, quer pagar de macho vai ter que agüentar o tranco!

VÃO SE FODER! VÃO SE FODER! VÃO SE FODER!

Como é que é, palhaço?

VÁ SE FODER! VÁ TOMAR NO SEU CU! VÁ TOMAR NO MEIO DO OLHO DO SEU CU, MAS PELO AMOR DE TUDO O QUE É MAIS SAGRADO, PAREM DE FALAR COMIGO, EU SÓ QUERO LER A PORRA DO LIVRO EM PAZ, SEM TER QUE FINGIR SIMPATIA COM UM BANDO DE GENTE QUE EU NÃO CONHEÇO E NEM QUERO CONHECER, VÃO TODOS ÀS PUTAS QUE LHES PARIU, VÃO TODOS TOMAR NOS SEUS CUS!

Depois disto veio o primeiro soco, de um senhor que estava sentado à sua frente. Depois, outro, depois outro, ele caiu, vieram os pontapés. O motorista parou o ônibus, e foi ele também dar a sua dose de pontapés no rapaz caído. Foi o chute dado pela menina, a primeira que puxou conversa com ele, que rompeu o seu baço. Morreu horas depois, conseqüência de uma hemorragia interna inestancável.

Quando chegou ao céu, Deus se aproximou e tentou puxar conversa, parabenizá-lo pelo feito. Deus sabia que os outros é que estavam sendo mal educados e que, de fato, colocavam suas vidas em risco ao puxar conversa com estranhos.

PUTA QUE O PARIU, ATÉ TU, DEUS? QUE MERDA, NEM AQUI NESSA PORRA DE PARAÍSO EU POSSO TERMINAR DE LER O MEU LIVRO SOSSEGADO?

Deus ficou puto. Só de raiva, fez com que reencarnasse imediatamente.

Quando saiu do ventre materno todo empapado dos mucos uterinos, ainda que não houvesse um instrumento apropriado para medir os decibéis do seu choro, é certo que nenhuma outra criança na história tenha berrado tão alto.

Sua nova mãe deu a luz dentro de um ônibus.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

A voz da experiência


O problema, é que eu gosto de homens inteligentes e, embora ele seja bem bonitinho, muito querido, quase educado, não é exatamente uma pessoa culta.

Minha menina...

Não fale assim, eu me sinto uma criança, quando você fala assim.

Mas você é uma criança.

Não, eu já sou mulher. Sou nova, mas bem madura para a minha idade.

Tudo bem, pulemos esta parte. Vou tentar ser bem objetivo, de uma objetividade que teus amigos não terão contigo. Se você não quer, esqueça, bola pra frente. Faça somente o que você tem vontade e, sem querer lhe ofender, tampouco ofender a ele, ele que sofra um pouco, vai passar rápido, mais rápido do que você pensa.

Não é assim tão simples.

É assim tão simples sim!

Ele me agrada todos os dias, sempre com presentinhos, docinhos...

Não é por que ele lhe deu um bom-bom anteontem, ontem, hoje, que você tem a obrigação de beijá-lo por gratidão, por agradecimento, por pena. Você não vale tão pouco.

Você é muito frio, cruel!

Não, eu sou prático. Se você não quer, diga claramente, com todas as letras que você não quer. Evitar a recusa, para tentar fazer dela panos quentes para aplacar uma dor que ainda não existe, é só agravar uma mágoa que de algum modo virá. Ela vai vir, isso você não tem como impedir, mas, a única coisa que ainda está ao seu alcance, é dosar para mais ou para menos o impacto que essa pequena mágoa terá sobre o seu admirador. Sim, ele vai ficar decepcionado, mas isso não vai afetar em nada a vida dele. Acredite, daqui uns anos ele nem vai lembrar disso.

Ai, não fala assim, você faz parecer que eu não tenho importância alguma.

Você tem, e muita. Não é esta a questão. O fato é que ele é muito novinho, você mais do que ele, ele vai sofrer muito por amor ao longo da vida, você ainda mais, como todas as mulheres que já existiram. As mulheres sempre sofrem mais do que os homens, até por que elas podem sofrer de verdade, os homens não, pois está convencionado e aceito por todos que sofrer afeta a virilidade.

Você deve ser muito experiente nos assuntos do amor, para falar com tanta convicção.

Até que não. Sou um pouco, admito, mas ainda estou aprendendo. Sou um estudioso, digamos assim. A maior parte do que eu sei, absorvi de algumas experiências e dos livros. Eles são a melhor escola que uma pessoa pode ter.

Eu preciso ler mais.

Leia, minha menina, leia muito. Mas esqueça estes livros metódicos e óbvios da sua faculdade, cheios de tecnicidades inúteis para a vida de verdade. Leia os romances, leia os poetas. Entregue-se aos bons escritores, são eles que realmente sabem nos ensinar, mesmo quando não dominam os assuntos que discorrem. Só os bons escritores têm a coragem necessária de escancarar nossos medos. Nossos costumes, nossos valores. Nossa moral é um porão cheio de vespeiros adormecidos. Os bons escritores vão lá e cutucam os vespeiros, infectam nossos pensamentos com tudo aquilo que morremos de medo de pensar. São eles que nos infestam de dúvidas sobre tudo o que parecia certo. Não tema contestar suas convicções. Ter certeza de tudo não serve para muita coisa. Permita-se duvidar. Lendo, você se afogará em todas as dúvidas necessárias que farão de você a mulher inteligente e segura que você sonha ser.

Mas os meus amigos, todos eles estão armando tudo para que fiquemos juntos, para que eu dê uma chance.

Você pode até dar a chance que eles lhe pedem, mas só estará adiando e, mais do que isso, aprofundando a mágoa dele. Ele ainda não está apaixonado, uma recusa agora não vai fazer dele nem mais nem menos do que hoje ele é.

Acho que você tem razão.

Vá por mim, eu tenho.

É ótimo conversar com você.

Também gosto de conversar com você. Quando você quiser, e minha agenda permitir, será sempre um prazer.

Bom, eu tenho que ir.

Fique bem e, não esqueça: leia! Não tenha medo de cutucar os seus vespeiros.

Despediram-se com cordialidade, ela foi embora sentindo-se mais segura e pronta para dizer não.

Sem olhar pra trás, ela pensou, Como é bom conversar com alguém mais velho, mais vivido, mais inteligente.

Sem olhar pra trás, ele pensou, Até o fim da semana eu como essa menina.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Mal entendido


Já fazia mais de quarenta anos, ela quase não o reconheceu.

Quanto tempo!

Posso me sentar, ou você ainda me odeia?

Ela sorriu encabulada. Estava tão surpresa, que quase não lembrou os motivos da separação abrupta que pusera fim a união de onze anos, onde se magoaram muito, mas não tanto quanto haviam se amado.

Sente-se, por favor. Um café?

Por que não?

Sentados frente a frente, emocionaram-se com a torrente de lembranças que os calava. Embora seja cruel com o corpo, o tempo é gentil com os sentimentos. Trata de esfumaçar as desavenças, deixando a vista apenas as coisas boas que existiram. E não haviam sido poucas.

Ele sofrera por muitos meses antes de conseguir refazer sua vida. Nunca entendera o motivo do rompimento quando, enfim, pareciam ter superado os problemas e viviam numa lua de mel que durava meses. Mas, três anos depois da separação, conheceu a mulher com quem até hoje estava casado. Embora jamais tenha sentido algo parecido com o que sentira por ela, era muito feliz com a esposa. Havia um companheirismo tranqüilo, filhos, e até dois netos lindos, que agora eram a alegria dos seus finais de semana.

Ela também casara-se. Sua vida não fora tão feliz quanto a dele. Seu marido fora um bom homem, mas frio. Também tinha filhos, mas ainda não sabia o que é ser avó. Enviuvara há três anos e, desde então, tem vivido sozinha. Embora não pudesse afirmar que era feliz, estava bem consigo mesma.

Lembraram de cada detalhe, riram juntos, quase choraram juntos. Fora linda, a história que tiveram.

Eu teria ficado contigo minha vida inteira.

Eu também.

Por que não ficou? Por que você foi embora? Por que você me mandou embora justo quando eu quis te dar apoio, ficar perto de você, justo no dia da morte do seu pai?

Eu não confiava mais em você. E você deve se lembrar, sempre disse – e continuo dizendo – que amor é importante, mas sem confiança ele rui. Eu não queria mais chorar por você.

Mas eu achei que tinha superado a sua desconfiança. Estávamos bem, nunca entendi a nossa separação.

Você era alcoólatra, bebia escondido de mim.

Sim, mas quando eu prometi para você que ia parar, eu parei. Aliás, caso lhe interesse, até hoje eu não bebo.

Nada?

Nem socialmente.

Você me traiu. Eu chorei muito, e não queria mais chorar por você.

Eu sei, confessei para você. Foi bobeira de uma noite, tínhamos tido uma daquelas brigas de novela mexicana, saí, enchi a cara e acabei dormindo com outra mulher. Mas eu me arrependi, quis morrer por causa disso. Fui correndo ao teu encontro e confessei meu pecado. Nos separamos, depois você voltou, disse que me perdoava.

E perdoei. Acreditei no seu arrependimento. Evitava pensar no assunto para não esfaquear você no meio da noite mas, mesmo com o coração apertado, perdoei. Mas foram as sucessões de pequenas mentiras que corroeram a nossa vida juntos. Elas me faziam chorar em silêncio, escondida, e eu não agüentava mais chorar por você.

Não havia mentira nos últimos meses.

Havia sim, e não tem por que você fingir que não agora.

Não entendo. De minha parte, não havia mais mentiras.

Você disse que tinha parado de fumar. Aliás, se ainda lhe conheço bem, você deve estar ansioso para acender um cigarro. Conversas sérias faziam você fumar um cigarro atrás do outro.

Eu não fumo mais.

Desde quando?

Há mais de quarenta anos.

Resolveu parar quando nos separamos?

Eu parei antes, conforme havia lhe prometido.

Olha, repito, não tem por que mentir agora, depois de tanto tempo.

Chega de meias palavras! Diga logo por que você não nos quis mais.

Você sabia que eu detestava cigarro. Trauma de infância. Vi meu pai enfartar três vezes por causa do maldito cigarro. Você fumava feito uma chaminé, eu implorava para você parar, você dizia que tinha parado e, pelo menos umas quatro vezes, eu flagrei você fumando escondido.

Mas nos últimos meses eu tinha parado mesmo.

Pare de fingir. Eu sei que não é verdade. Foi por isso que eu deixei você.

O quê?

Quando me ligaram no trabalho, avisando que meu pai tinha enfartado de novo, enquanto dirigia, e batido o carro perto da nossa casa, quando me disseram que ele tinha morrido, eu fiquei maluca. Não sabia o que pensar, o que fazer, como agir, não conseguia sequer chorar, de tão desesperada que fiquei. Eu estava brigada com ele a mais de um mês. Não nos falávamos a mais de um mês. Quando um policial rodoviário me disse por telefone que meu pai havia morrido, como quem diz que o pneu furou, eu fiquei sem chão. Fui correndo para nossa casa, precisava do teu abraço, precisava de alguém que me fizesse sentir acolhida, amparada.

Eu sabia, estava esperando por você.

Quando cheguei em casa, entrei na sala e vi o buquê de flores em cima da mesa, fiquei com muita raiva. Como você podia pensar em ceninhas românticas numa hora daquelas? Depois eu vi o cinzeiro na mesinha de centro da sala. O cigarro apagado, mas a fumaça ainda empesteando o ar. Se eu tivesse forças, teria matado você. Foram duas decepções seguidas. Pode parecer bobeira agora, mas fiquei muito decepcionada em saber que você fumava na nossa casa enquanto eu não estava. Não quis mais ver você, não queria ouvir a sua voz, pedi para minha irmã te ligar pendido para que você não fosse ao velório. Não conseguia sequer imaginar a minha reação caso encontrasse você. E foi por isso, por causa daquele cigarro bobo, do buquê de flores, como o presente de uma criança que quer se desculpar por saber que fez algo muito errado, foi por isso que eu nunca mais quis ver você, por isso que eu fui embora, por isso que nossas vidas seguiram rumos separados, por isso que não coubemos no “e eles viveram felizes para sempre”.

Você devia ter me perguntado. Eu poderia ter uma explicação para tudo.

Você inventaria uma desculpinha qualquer, ou confessado o seu pecado com os olhos chorosos, pois você sabia que eles me comoviam e eu acabaria perdoando.

Bom, não que isso vá fazer diferença agora, mas apenas para que eu não morra carregando uma culpa que não é minha, é importante que você saiba.

Já falei, não precisa inventar nada agora. O tempo passou, nossas vidas seguiram em frente, nada vai mudar mesmo.

O cigarro era do seu pai.

O quê?

As flores também. Ele foi a nossa casa para te pedir desculpas, queria se reconciliar com você. Mesmo não se considerando culpado pela briga de vocês, e de fato ele não era, ele resolveu levar flores para você, pedir desculpas. O cigarro era dele, ele fumou enquanto esperava. Mas você demorou e ele resolveu ir embora. No meio do caminho aconteceu o que aconteceu. Depois você me deixou e eu nunca tinha entendido por quê. Agora eu entendo, e talvez lamente ainda mais do que lamentava antes de entrar neste café.

Você está falando sério?

A promessa que eu fiz para você de nunca mais mentir, mantive durante toda a minha vida, mesmo longe de você.

Você devia ter me contado.

Você não me deu oportunidade.

Você ainda me ama?

Não se deixa de amar a quem se ama. A vida até tem cura, o amor não.

Ainda temos alguma chance?

Não. Não agora. Já não faz mais sentido. Não quero mais chorar por você.

Ele levantou, sorriu, beijou-lhe com carinho uma das mãos e foi embora, com os passos lentos, ditados pelo ritmo pesado da idade avançada.

Enquanto ele se afastava, ela abaixou a cabeça, respirou fundo, tirou um maço de dentro da bolsa, acendeu um cigarro e, mais uma vez, chorou por ele.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Fim de caso


Cansamo-nos tanto de tanto sentir amor, que o amor se cansou de nós.

E você ainda trouxe cá pra perto esse balde cheio de ciúme.

O ciúme é azedo, no cheiro e no gosto.

E não me venha com essas frases feitas de que quem ama sente ciúme, nem que seja um pouquinho. Isto está errado.

Quem ama de verdade não sente ciúme, não entende o ciúme, não tem o menor interesse em provar o ciúme. Ele é mais danoso do que a nicotina, e vicia muito mais rápido. Você não seria idiota de começar a fumar agora, depois dos trinta. Você não precisa mais se incluir socialmente, a adolescência passou faz tempo, embora algumas das suas atitudes ainda sejam bastante questionáveis. E se você não vai ser idiota para começar a fumar agora, depois dos trinta, não entendo por que começar a sentir ciúme agora, depois de ter dito que sim. Eu e você dissemos que sim, o ciúme seria negar o que dissemos um ao outro.

Tire o seu balde de ciúme azedo de perto de mim.

Ciúme é sofrer por saber que não se tem, é perder a paz de espírito por saber que a escritura do outro não nos pertence. E por medo de perder o que já não se tem, sofre-se e faz-se sofrer do azedo ciúme. Ciúme é querer ter, amor é estar. Por favor, não os confunda.

Mas faz tempo que não estamos bem, e talvez essas minhas palavras tenham a mesma eficácia de um sorriso amarelado na televisão vendendo adesivos de nicotina para pessoas que querem abandonar o vício enquanto acendem mais um cigarro. Só mais um, só até terminar essa carteira, o maço está quase acabando, depois desse eu paro, cigarro nunca mais, eu juro. Quem acredita?

Rejeito soluções homeopáticas, minha vida é regida pela alopatia.

Você me procurou, eu aceitei. Quando você me ofereceu promessas, pedi que não as fizesse.

O amor sofre menos com as mentiras do que com as promessas não cumpridas.
Sim, eu vou me casar. Também tenho esse direito.

E que fique claro, não fosse o seu balde, nada precisaria mudar. Nossa história nunca precisou de capítulos, apenas parágrafos. Você continuaria escrevendo a sua história, eu passaria a escrever a minha e, vez por outra, nos encontraríamos nas entrelinhas, ora do meu enredo, ora do seu.

Mas não com o seu balde de ciúmes por perto. Nós dois somos algo que já não me basta, edredon gasto e fino que já não me aquece. E calor é o mínimo que um cobertor deve oferecer. Enfim, chega.

Agora vá, volte para o seu marido.

Anunciado novo técnico do Avaí!

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

O Cafajeste


Vem cá, posse te dizer uma coisa? Mas, por favor, não vá pensar que é uma cantada.

Falou o homem com olhar cabisbaixo, folheando a edição muito surrada de Cem anos de solidão, que deveria ter sido relida algumas vezes, e estava em cima da mesa.

Catarina fez que não ouviu, e perguntou o que o levara até ali.

Ele precisava de uma declaração atestando que não representava risco as pessoas e, por tanto, poderia deixar o país num voo que sairia de São Paulo com destino a Paris no meio da tarde do dia seguinte.

Catarina lhe explicou que aquilo não se resolveria assim, era necessária uma investigação, um diagnóstico. Ela não era uma vendedora de atestados. Naquele prédio havia uns dois ou três profissionais de ética bastante flexível que, pagando-se um pouco mais do que o valor de uma consulta, cederiam o documento sem maiores questionamentos. Mas ela não. Ela era ética e zelava pela sua reputação.

Ele relutou, não queria se expor, mas Catarina, ainda que bastante jovem, tinha a habilidade dos profissionais experientes de fazer com que seus pacientes se sintam encorajados a desaguar as angústias que lhes rouba o sono.

Ele cedeu. Deitou-se no divã e contou sua história.

Chamava-se Arthur. Era francês, mas vivia no Brasil desde pequeno. Vinha de uma tradicional família da pequena cidade de Langedoc. Mas antes de falar de sua família, afirmou à Catarina que ele era um cafajeste irrecuperável. Mulherengo, beberrão e, ainda que não dissesse, mesmo a distância o cheiro de sua pele denunciava que não era pouco o quanto fumava.

Catarina riu da presunção daquele homem que se auto-reverenciava como um conquistador irresistível.

Precisava da declaração, pois havia batido num rival que lhe roubara a mulher amada. Fora encaminhado à delegacia após a agressão, e solto depois de assinar um termo circunstanciado que o impedia de sair da cidade. Exceto sob a avaliação de um psicólogo ou psiquiatra.

A presunção que Catarina percebera no início da conversa, dava lugar à culpa que ela identificava em cada frase. Havia na sua voz uma amargura ressentida consigo mesmo.

Contou-lhe uma longa e maçante história de toda a sua família, desde os tempos remotos da França pós-queda da Bastilha. Citou o nome de cada uma das várias pessoas que o antecederam, o amor proibido dos seus pais, os vários cafajestes que passaram, geração após geração, despedaçando os corações indefesos das mulheres que cruzavam os seus caminhos.

Ela ouvia tudo impassível, com a frieza dos melhores profissionais, mas sem perder o interesse que deixa os clientes confortáveis na exposição dos seus pecados.

Quando ele narrou a maneira trágica com que seus pais foram assassinados, numa tentativa de seqüestro que terminara sob a intervenção desastrosa da polícia despreparada, Catarina ficou emocionada.

Ele contou que, na oportunidade, regressara à França, mas desta vez fora morar em Paris, na casa dos seus tios, na companhia de suas primas gêmeas. Disse que foi nessa época que se dera conta que no seu sangue corria o talento de conquistar, usar e descartar as mulheres.

Fez da empregada da família sua professora sexual, e das primas suas primeiras vítimas.

Quando Olivier, seu tio, descobriu, quis mandá-lo para Langedoc, para a casa dos avós. Mas para massacrar ainda mais seu desespero de pai, percebera pela angústia de sua esposa tentando impedir o afastamento do sobrinho órfão, que ela também, já passada dos trinta anos, havia sido vítima de um menino com pouco mais de dezesseis.

Olivier escorraçou-o de casa.

Voltou ao Brasil para tentar refazer sua vida na terra onde seus pais foram vitimados.

A cada novo detalhe, Catarina surpreendia-se com os meandros da história daquele paciente inesperado. Mas não deixava sua surpresa transparecer.

Catarina percebia na narrativa um orgulho magoado pela sina que Arthur acreditava ter, de decepcionar as mulheres que conquistava.

E nas suas várias conquistas, Arthur contou com detalhes bastante íntimos suas histórias com Érica, Alice, Jussara, Soraia, Verônica, Ana Paula, Suzana, Carolina, Maria Eduarda, Roberta, Antônia, Helena, Janaína, e muitas outras cujos nomes lhe escapavam da memória.

Catarina lutava contra, mas os detalhes que Arthur contava, deixavam-na excitada. Muito excitada. Mas ela sabia como disfarçar.

Até que Arthur contou a história de Clara. Ele apaixonara-se verdadeiramente por Clara, e ela demonstrava que o sentimento era recíproco. Por ela, Arthur desinteressou-se das outras mulheres. Só tinha olhos, mãos, pele, boca, para ela, a sua Clara.

Arthur fixou-se em um emprego, e pediu Clara em casamento.

Ela aceitou.

Financiou um apartamento, e o decorou com cada detalhe desejado por Clara. Tudo estava perfeito, até que uma semana antes do casamento, Clara pediu que ele a encontrasse no apartamento que seria o lar do casal apaixonado.

Quando lá chegou, encontrou sua noiva na cama com José Aureliano, seu melhor amigo.

Sem ação, Arthur viu a cara assustada de José, e a gargalhada eufórica de Clara.

Ela revelou a ele que premeditara aquela cena desde que tinha quatorze anos, quando seu pai havia se separado de sua mãe, após flagrá-la com Arthur, saindo de um motel vagabundo. Clara ficara desesperada com a separação dos pais, eles eram o seu exemplo de casal perfeito. Desde então, seguira os passos do francês conquistador, observando seus métodos, na certeza de que a oportunidade certa surgiria, e quando surgisse, ela saberia exatamente como agir para fazer dele a vítima maior das suas histórias de conquistas e decepções amorosas.

Contudo, quando José Aureliano ouviu a narrativa de Clara, percebeu que ele havia sido apenas usado para que ela pudesse realizar sua vingança pessoal. Enfiou-lhe a mão na cara, fazendo sangrar o canto dos lábios.

Foi nessa hora que Arthur partiu para cima dele e espancou-o. Bateu nele com raiva por tê-lo visto agredir a mulher que amava, com raiva por ter sido cúmplice – ainda que inconsciente – da destruição do seu sonho de amor perfeito, e com raiva por saber que poderia descontar nele, aquilo que não seria capaz de fazer com ela.

Foi preso, e só liberado após a assinatura do termo circunstanciado que o impedia de sair do país sem a declaração de um profissional habilitado.

Os olhos de Catarina estavam indisfarçavelmente marejados. Lutou contra, mas deixou-se envolver por todo aquele infortúnio. Pegou o receituário para fazer a declaração, Arthur chegou perto dela com a tensão de quem acaba de se expor de uma maneira que jamais havia feito, e antes mesmo que Catarina pegasse a caneta, ela puxou-o para perto de si que, sem ação, deixou-se beijar.

No meio da madrugada Catarina abriu os olhos, ainda muito sonolenta, esgotada da sucessão de prazeres que não sabia serem possíveis, e virou-se para o lado da cama para pedir que, embora ela tivesse dado a declaração, Arthur não viajasse no dia seguinte. Não viajasse nunca mais. Ela estava ali, e tinha certeza que poderia fazê-lo esquecer a decepção que tivera com Clara. Mas Arthur já não estava mais lá.

Levantou-se, foi até o banheiro, à cozinha e nada. Nem sinal de Arthur. Nisso, tocou o telefone. Era da delegacia.

A própria delegada ligara para Catarina, dizendo ter prendido um homem que tentara comprar cigarros num posto de gasolina com o cartão de crédito dela.

Olhou para a cômoda, e percebeu que sua carteira não estava onde havia deixado.

Catarina foi à delegacia, incrédula com aquele enredo que agora protagonizava.

Sentou-se em frente à delegada, que mandou chamar Domingos.

Quem? Perguntou Catarina.

Domingos, o meliante que estava com seus cartões e documentos.

Catarina suspirou aliviada, não fora Arthur. Seu sonho romântico não se desfizera, embora ainda carecesse de explicações. Mas quando o soldado abriu a porta, foi ele quem entrou.

Arthur? Perguntou Catarina.

Arthur? Perguntou a delegada.

Alguém tem fogo? Perguntou Arthur, Comprei os cigarros, mas esqueci do isqueiro.

Em meio ao estado catatônico de Catarina, a delegada lhe explicou que aquele era Domingos, também conhecido como Dodô da Coloninha, um malandro que passava os dias dando golpes em mulheres carentes. Conquistava-as, roubava-as e abandonava-as. Catarina não fora a primeira, e certamente não seria a última.

Ele pediu a delegada dois minutos de privacidade com Catarina.

A delegada concedeu.

Contou a Catarina que trabalhava como jardineiro do prédio onde ela tinha o consultório, dava-lhe bom dia todos os dias, mas ela sequer olhava em seu rosto. Disse estar verdadeiramente apaixonado por ela, mas precisava de alguma história muito boa para que ela lhe desse atenção.

Ela não acreditava, eram muitos os detalhes para que tudo fosse mentira.

Ele explicou que a história da França, fora criada em cima de uma reportagem que lera em uma das revistas Gula, especial sobre vinhos, que havia na recepção do consultório. Criou uma genealogia de nomes repetidos inspirado no livro que estava em cima da mesa do consultório, e confessou que arriscou-se muito a ser desmascarado, quando usou o nome José Aureliano. Como ela, que lera tantas vezes Cem anos de solidão, não percebera a armadilha?

Para surpresa da delegada, Catarina pagou a fiança e liberou Arthur. Ou Domingos, enfim.

Quando chegavam à rua, o sol começando a dar seus primeiros sinais, pediu que Catarina esperasse um pouco, pois havia esquecido seu maço de cigarros na mesa da delegada.

Com licença doutora, só vim pegar meus cigarros.

Mas você não vale nada mesmo, hein ô vagabundo?!

Que é isso doutora, sou só um homem buscando o amor verdadeiro.

Chega de conversinha, pega o seu cigarro e cai fora daqui antes que eu me arrependa de ter te soltado.

Já tô indo, doutora, já tô indo.

Pegou o maço de cigarros, abriu a porta, mas antes de sair, virou-se para a delegada e falou:

Vem cá, posso te dizer uma coisa? Mas, por favor, não vá pensar que é uma cantada.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Oberdan


Acreditava-se irresistível. Julgava ter um charme exclusivo, tão particular que era impossível ser recusado por qualquer mulher que fosse. Bastava ele escolher a mulher de seu interesse, que na oportunidade de poder trocar dois minutos de conversa, a erudição que supunha ter faria com que a dama desejada se rendesse aos seus pretensos encantos.

Fernandos, Robertos, Ricardos, estes existem aos montes, mas me diga, minha princesa, quantos Oberdans você conhece? E era assim que ele, Oberdan, abordava suas pretendendidas.

Quando alguma mulher não cedia as suas investidas, exclamava que ele é quem se desinteressara, pois percebera logo no início da conversa que se tratava de uma vaca. Ele não gostava de vacas. Tem mulher interessante demais no mundo para que eu perca meu tempo com esta vaca, dizia, dispenso as vacas, tomo meu café preto, não preciso de leite. Vaca! Só mais uma vaca, dizia.

Um dia, ainda que a contragosto, foi a uma confraternização na casa de Fabíola, sua melhor amiga. Oberdan olhava ressabiado para aquelas pessoas todas ao seu redor, intelectuais, músicos, jovens escritores, alguns envolvidos com cinema, gente muito culta e descolada. Oberdan não gostava daquela gentinha e, além do mais, havia um certo desconforto cada vez que comparecia ao apartamento de Fabíola. Ao olhar para aqueles homens da festa, ele pensava, Pobrezinhos, acham que conseguem alguma coisa com esse papinho metido a cabeça. Eles não tinham o seu charme. Ninguém tinha. Se for do meu interesse, tenho qualquer uma destas mulheres, mesmo que estejam acompanhando alguns dos convidados intelectualóides de merda, dizia para si mesmo. Até por que, sabia que nenhum deles saberia tanto de tanta coisa quanto ele tinha certeza saber. Se quisesse, teria qualquer uma delas, qualquer uma! Exceto se fosse uma vaca. Detestava as vacas.

Fabíola estava linda, vestida com a beleza que só as mulheres que já passaram dos trinta possuem. Menininha nenhuma é capaz de portar uma beleza daquelas. Mulher inteligente, bem sucedida, pernas indefectíveis, sorriso indefectível, pescoço longo, pele alva, pura, olhos castanhos, tão impenetráveis quanto absorventes, exalava sensualidade até no modo como empunhava os talheres de prata. Mas ela era amiga, e Oberdan, diferente do que dizem muitos machistas por aí, acreditava sim, que existia amizade entre homens e mulheres. Além das vacas, Oberdan não envolvia-se também com as amigas. Era seu código de ética. Amigas são sagradas, vacas são malditas, dizia.

Enquanto observava Fabíola se abaixar para pegar a garrafa de um Pinot Noir que trouxera da última viagem que fizera com seu amor à Paris, Oberdan lembrou-se daquela vez, há muito tempo atrás, na época em que ainda era muito próximo dela, e tinha nela sua confidente primeira e última, em que a convidara para ir com ele à uma pizzaria para conhecer a mulher que acreditava piamente que seria a mãe do seu filho, a mãe do Oberdan Jr., que ele tanto e tantas vezes sonhara em trazer ao mundo.

Chamava-se Patrícia e, embora Oberdan estivesse certo de que era ela a mulher de sua vida, precisava da aprovação de Fabíola.

Patrícia achou estranho o fato de ele querer um encontro com a amiga, como quem leva a namorada para obter a aprovação dos pais, mas aceitou. Abriu a porta da pizzaria para que ambas adentrassem ao recinto, dizendo, Sivuplér. Ambas olharam com estranheza para ele, que tratou de esclarecer, Significa “A casa é sua”, em italiano.

Sentaram-se à mesa em silêncio, constrangidas.

Sua amada estava linda, ultrajantemente linda. De certo, vestiu-se daquele modo para demarcar território. Se outra mulher iria ao encontro, que ficasse claro para ela quem ali era a dona do macho da ocasião. Trajava um vestido solto, à altura dos joelhos, com um decote escancarado que deixava à mostra as curvas dos seios indecentemente lindos, inconfessavelmente desejáveis. As costas nuas prenunciavam a circunferência exata da bunda mais perfeita que Oberdan jamais sonhara em ter ao alcance das suas mãos. Sem contar a sutil demarcação que a minúscula calcinha fio dental sob o tecido fino e solto do vestido, que dependendo do modo como Patrícia caminhava, fazia-se notar.

Ele, por sua vez, trajava uma bermuda de tergal marrom, sandálias franciscanas, uma camiseta amarela com o desenho de dois coqueiros, que trouxera de uma excursão que fizera anos antes com o grupo de jovens à Fortaleza, e sua inseparável pochete de couro presa à cintura.

Oberdan quis impressionar Patrícia com toda a sua vasta cultura, e sem que qualquer uma das duas lhe houvesse solicitado, tratou de explicar a origem das coberturas das pizzas que o cardápio apresentava aos três. Funghi é uma ótima pedida, um molho a base de castanhas e nozes. Muito tradicional na Noruega.

Fabíola ficou com vergonha, mas não corrigiria o amigo diante da mulher que tentava impressionar.

Quando o garçom ofereceu a carta de vinhos, Oberdan antecipou-se e pediu, Um tinto seco, por favor, Qual? Perguntou o garçom. Oberdan sorriu com o canto da boca, o sorriso que acreditava ser o tiro certeiro de todas as facetas do seu charme másculo, e respondeu, Como, “qual”? Um tinto seco, oras. Tinto, aquele roxinho, sabe? Esses garçons... Quanto despreparo, disse com uma risada sarcástica. A não ser que as princesas prefiram um vinho suave, mulheres adoram vinhos docinhos. Um suco de laranja, por favor, disse Fabíola sem saber como disfarçar o desconforto, Dois, disse Patrícia. Bom, amigo, então traga dois sucos de laranja para as princesas, e para mim uma taça de tinto seco. Tá bem geladinho? Como, senhor? Perguntou o garçom, O tinto seco, tá bem geladinho? É... Bem, os vinhos ficam condicionados na adega, numa temperatura própria para cada origem e uva, mas não estão gelados, Então me veja um tinto seco numa taça com duas pedrinhas de gelo, Como o senhor quiser, respondeu o garçom, também encabulado. Não, não, suspenda o tinto seco, me traga uma malzibier, por favor.

E assim a noite transcorreu, entre fatias de pizza calabresa e toda uma disenteria verbal sobre os mais variados assuntos. Oberdan não permitia que qualquer das duas dissesse o que quer que fosse, apenas inundava-as com toda a sorte de despautérios incultos, que na sua inocência estúpida, presumia impressionar sua amada Patrícia.

Depois daquele dia, Patrícia sumiu. Não atendeu aos telefonemas de Oberdan, não retornou os inúmeros recados e emails, passou a fazer um trajeto duas vezes maior entre a sua casa e o trabalho, só para não correr o risco de encontrá-lo pelo caminho.

E agora, seis anos depois, lá estava Oberdan, no apartamento de sua amiga Fabíola. Enquanto ela pegava o Pinot Noir, Patrícia entrou na sala com taças e um frisante, para que todos os convidados brindassem o sexto aniversário da união de ambas.

Cada um dos presentes pegou uma das taças e, ao erguer o braço para o brinde, trajando um vestido tão provocante quanto aquele de tempos atrás, Patrícia mostrou para quem quisesse ver que o tempo em nada afetou a beleza obscena do seu corpo perfeito, e disse, Amigos, se vocês nos permitem, eu e a Bíola queremos brindar ao nosso querido Oberdan, pois sem ele não teríamos nos conhecido, e hoje não estaríamos aqui cercadas por pessoas tão queridas quanto vocês. A você, Oberdan. Ao Oberdan! Repetiram em uníssono os convidados com suas taças erguidas, alguns batendo palmas, todos com sorrisos estampados na face.

Oberdan ergueu a taça, sorriu com o canto da boca, aquele sorriso só dele, fez que sim com a cabeça, e murmurou apenas para si mesmo, Vaca!

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Oh, Anna Julia...


Como é verdadeira aquela canção...

Me disseram que você odeia aquela música, mas ela é perfeita! Incrível como ela descreve tão bem a nossa história. Embora você não saiba, e provavelmente nunca venha a saber, ela descreve com riqueza de detalhes a nossa história.

É como diz a canção, quem te ver passar assim por mim, não sabe o que é sofrer.

Eu só um assistente do almoxarifado, você herdeira deste império. Sorte a sua, azar seria se você estivesse ao meu lado.

Isso quase me conforta.

Quase...

Você não sabe, mas passo os dias a te esperar. De longe te contemplo, e teu olhar é como o sol. Tudo tão meu, tão familiar, mas sempre perco você no ar. E você sem me notar...

E não adianta, sem te dar meu carinho, sem ter teu carinho, eu me afogo em solidão. Na cachaça também. Ela deixa a solidão meio dormente, mas ainda sentida.

Tenho certeza deste amor, mas ele faz com que eu me sinta um nada.

Como me atormenta a previsão dos nossos destinos. Mas, por mais que me doa, é com aquele cara que você vai estar. Tão mais velho que você, tão mais velho que eu. Mesmo pobre, eu poderia te oferecer muito mais coisas que ele. Mais tempo, pelo menos. Eu sei que ele não tem tempo pra nada, eu te daria todo o meu tempo, todo o tempo do mundo!

Mas sou um homem de palavra, e prometi para a sua mãe que nunca contaria nada pra ninguém.

Só me resta continuar aqui, sofrendo ao te ver passar assim por mim, afogado na solidão e na cachaça, sem ter teu carinho, contemplando o sol do seu olhar e perdendo você no ar, desacreditado na ilusão de ter você pra mim, atormentado com a previsão do meu destino, não com o seu, pois sei que você está muitíssimo bem encaminhada. Mas eu aqui, me achando um nada.

É ele quem você chama de pai.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Matéria-prima


Por quê você fez isso comigo? Foi só por diversão?

Não, minha querida, de jeito nenhum.

Você não tinha o direito de escrever a nossa história, transformá-la num conto e publicá-la no seu blog!

Não se preocupe, minha querida, os outros não vão saber que é a nossa história. Vão ficar desconfiados, como ficam com tudo o que eu escrevo, vão ficar se perguntando se é auto-biográfico, mas vou negar, dizer que não, que é só mais um conto. Fique tranqüila, ainda que fiquem desconfiados, ninguém vai saber de nada.

Claro que vão saber! Temos amigos em comum, eles saberão que a história trata do nosso caso, do caso que tivemos.

Minha querida, eles vão achar que é só mais uma história, não se preocupe. As pessoas até prestam atenção no que eu escrevo, mas ninguém me leva muito a sério, fique tranqüila. Vão achar que é só mais uma brincadeira minha.

É isso que eu fui para você? Só mais uma brincadeira?

Não, minha querida, de jeito nenhum. Você não foi uma brincadeira, mas serviu de matéria prima, o que eu posso fazer?

Você pode ir lá no seu blog e tirar o texto do ar.

De jeito nenhum! Você já reparou como aquele texto deu audiência? Milhares de pessoas indicaram no twitter, mais de três mil acessos em menos de uma hora, meu recorde absoluto! Depois dele tive dezoito novos seguidores! É muita coisa, não posso desprezar uma audiência dessas. Já pensou se um destes dezoito for de alguma editora e acabe se interessando em publicar um livro meu? Você é uma jornalista famosa, carreira consolidada, ganha bem, eu sou só um balconista aspirante a escritor. Não posso me dar ao luxo de desprezar uma audiência dessas.

Você não tinha o direito de me expor desse jeito.

Eu troquei os nomes, ninguém vai saber de nada.

Claro que vão saber! Já me perguntaram se era de mim que tratava o texto.

Relaxe, meu bem, que fiquem desconfiados, nunca vão saber de nada mesmo. A verdade só a nós pertence.

Que verdade? Você me flertou, eu resisti, resisti, e depois que eu finalmente cedi você deu no pé. Você brincou comigo! Ainda mais depois de uma noite daquelas! Eu tinha que ter dado no pé, não você!

Não, minha querida, eu não brinquei com você. Mas serviu de matéria-prima, eu não podia desprezar uma história dessas. Há tempos eu buscava uma história realmente boa para publicar, foi a sua/nossa, o que eu posso fazer?

Só fico pensando com quantas mulheres você fez esse tipo de calhordisse!

Não muitas. Algumas, mas não muitas. Mas você não tinha como deixar passar, você é famosa, pô! Nunca tinha levado uma jornalista pra cama, não podia deixar a oportunidade passar.

Deixa disso, faz tempo que eu não escrevo algo que preste!

Mas nem por isso deixou de ser famosa.

Você não vale nada!

Mas você valeu muito a pena!

Você só usou as partes que lhe interessavam, teve muita coisa ali que você não contou. No fim das contas eu fiquei com cara de pateta, e você saiu como o bonzão.

Meu amor, você é jornalista, você sabe como as coisas funcionam. Os fatos são o que menos interessa, o que realmente importa é como eles são contados.

Seu canalha!

Um beijo, minha querida. Beijão!

(Dois dias depois...)

QUE PALHAÇADA É ESSA?

O quê?

ESSE TEU TEXTO NO JORNAL, QUE PALHAÇADA É ESSA?

Que é isso, meu querido, é só uma história.

Só uma história o meu cacete! É a nossa história!

Eu troquei os nomes, fique tranqüilo, ninguém vai saber de nada.

Claro que vão saber! Até o meu tipo físico você se deu ao luxo de descrever!

Meu querido, é só uma história, não precisa ficar assim.

Você não tinha esse direito!

Fazia tempo que eu não escrevia uma boa história, se você soubesse como esta edição do jornal vendeu... Nunca a minha sessão deu tanta audiência, choveram emails e cartas na redação, milhares de mulheres se sentindo vingadas. Acho que algumas delas até deviam te conhecer.

Você não tinha esse direito! Você falou que eu broxei!

Mas você broxou!

Mas você disse que não ligava, que isso acontece!

E não ligo mesmo, eu sei que acontece.

Você não tinha o direito de me expor desse jeito! É ridícula essa sua vingancinha! Ridícula e infantil!

Que é isso, meu querido, não é vingança.

Você não tinha o direito de brincar comigo desse jeito!

Eu não brinquei com você, meu querido. Eu só precisava de uma boa matéria-prima, só isso.

Sua canalha!

Beijo, meu querido. Beijão!