quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Mal entendido


Já fazia mais de quarenta anos, ela quase não o reconheceu.

Quanto tempo!

Posso me sentar, ou você ainda me odeia?

Ela sorriu encabulada. Estava tão surpresa, que quase não lembrou os motivos da separação abrupta que pusera fim a união de onze anos, onde se magoaram muito, mas não tanto quanto haviam se amado.

Sente-se, por favor. Um café?

Por que não?

Sentados frente a frente, emocionaram-se com a torrente de lembranças que os calava. Embora seja cruel com o corpo, o tempo é gentil com os sentimentos. Trata de esfumaçar as desavenças, deixando a vista apenas as coisas boas que existiram. E não haviam sido poucas.

Ele sofrera por muitos meses antes de conseguir refazer sua vida. Nunca entendera o motivo do rompimento quando, enfim, pareciam ter superado os problemas e viviam numa lua de mel que durava meses. Mas, três anos depois da separação, conheceu a mulher com quem até hoje estava casado. Embora jamais tenha sentido algo parecido com o que sentira por ela, era muito feliz com a esposa. Havia um companheirismo tranqüilo, filhos, e até dois netos lindos, que agora eram a alegria dos seus finais de semana.

Ela também casara-se. Sua vida não fora tão feliz quanto a dele. Seu marido fora um bom homem, mas frio. Também tinha filhos, mas ainda não sabia o que é ser avó. Enviuvara há três anos e, desde então, tem vivido sozinha. Embora não pudesse afirmar que era feliz, estava bem consigo mesma.

Lembraram de cada detalhe, riram juntos, quase choraram juntos. Fora linda, a história que tiveram.

Eu teria ficado contigo minha vida inteira.

Eu também.

Por que não ficou? Por que você foi embora? Por que você me mandou embora justo quando eu quis te dar apoio, ficar perto de você, justo no dia da morte do seu pai?

Eu não confiava mais em você. E você deve se lembrar, sempre disse – e continuo dizendo – que amor é importante, mas sem confiança ele rui. Eu não queria mais chorar por você.

Mas eu achei que tinha superado a sua desconfiança. Estávamos bem, nunca entendi a nossa separação.

Você era alcoólatra, bebia escondido de mim.

Sim, mas quando eu prometi para você que ia parar, eu parei. Aliás, caso lhe interesse, até hoje eu não bebo.

Nada?

Nem socialmente.

Você me traiu. Eu chorei muito, e não queria mais chorar por você.

Eu sei, confessei para você. Foi bobeira de uma noite, tínhamos tido uma daquelas brigas de novela mexicana, saí, enchi a cara e acabei dormindo com outra mulher. Mas eu me arrependi, quis morrer por causa disso. Fui correndo ao teu encontro e confessei meu pecado. Nos separamos, depois você voltou, disse que me perdoava.

E perdoei. Acreditei no seu arrependimento. Evitava pensar no assunto para não esfaquear você no meio da noite mas, mesmo com o coração apertado, perdoei. Mas foram as sucessões de pequenas mentiras que corroeram a nossa vida juntos. Elas me faziam chorar em silêncio, escondida, e eu não agüentava mais chorar por você.

Não havia mentira nos últimos meses.

Havia sim, e não tem por que você fingir que não agora.

Não entendo. De minha parte, não havia mais mentiras.

Você disse que tinha parado de fumar. Aliás, se ainda lhe conheço bem, você deve estar ansioso para acender um cigarro. Conversas sérias faziam você fumar um cigarro atrás do outro.

Eu não fumo mais.

Desde quando?

Há mais de quarenta anos.

Resolveu parar quando nos separamos?

Eu parei antes, conforme havia lhe prometido.

Olha, repito, não tem por que mentir agora, depois de tanto tempo.

Chega de meias palavras! Diga logo por que você não nos quis mais.

Você sabia que eu detestava cigarro. Trauma de infância. Vi meu pai enfartar três vezes por causa do maldito cigarro. Você fumava feito uma chaminé, eu implorava para você parar, você dizia que tinha parado e, pelo menos umas quatro vezes, eu flagrei você fumando escondido.

Mas nos últimos meses eu tinha parado mesmo.

Pare de fingir. Eu sei que não é verdade. Foi por isso que eu deixei você.

O quê?

Quando me ligaram no trabalho, avisando que meu pai tinha enfartado de novo, enquanto dirigia, e batido o carro perto da nossa casa, quando me disseram que ele tinha morrido, eu fiquei maluca. Não sabia o que pensar, o que fazer, como agir, não conseguia sequer chorar, de tão desesperada que fiquei. Eu estava brigada com ele a mais de um mês. Não nos falávamos a mais de um mês. Quando um policial rodoviário me disse por telefone que meu pai havia morrido, como quem diz que o pneu furou, eu fiquei sem chão. Fui correndo para nossa casa, precisava do teu abraço, precisava de alguém que me fizesse sentir acolhida, amparada.

Eu sabia, estava esperando por você.

Quando cheguei em casa, entrei na sala e vi o buquê de flores em cima da mesa, fiquei com muita raiva. Como você podia pensar em ceninhas românticas numa hora daquelas? Depois eu vi o cinzeiro na mesinha de centro da sala. O cigarro apagado, mas a fumaça ainda empesteando o ar. Se eu tivesse forças, teria matado você. Foram duas decepções seguidas. Pode parecer bobeira agora, mas fiquei muito decepcionada em saber que você fumava na nossa casa enquanto eu não estava. Não quis mais ver você, não queria ouvir a sua voz, pedi para minha irmã te ligar pendido para que você não fosse ao velório. Não conseguia sequer imaginar a minha reação caso encontrasse você. E foi por isso, por causa daquele cigarro bobo, do buquê de flores, como o presente de uma criança que quer se desculpar por saber que fez algo muito errado, foi por isso que eu nunca mais quis ver você, por isso que eu fui embora, por isso que nossas vidas seguiram rumos separados, por isso que não coubemos no “e eles viveram felizes para sempre”.

Você devia ter me perguntado. Eu poderia ter uma explicação para tudo.

Você inventaria uma desculpinha qualquer, ou confessado o seu pecado com os olhos chorosos, pois você sabia que eles me comoviam e eu acabaria perdoando.

Bom, não que isso vá fazer diferença agora, mas apenas para que eu não morra carregando uma culpa que não é minha, é importante que você saiba.

Já falei, não precisa inventar nada agora. O tempo passou, nossas vidas seguiram em frente, nada vai mudar mesmo.

O cigarro era do seu pai.

O quê?

As flores também. Ele foi a nossa casa para te pedir desculpas, queria se reconciliar com você. Mesmo não se considerando culpado pela briga de vocês, e de fato ele não era, ele resolveu levar flores para você, pedir desculpas. O cigarro era dele, ele fumou enquanto esperava. Mas você demorou e ele resolveu ir embora. No meio do caminho aconteceu o que aconteceu. Depois você me deixou e eu nunca tinha entendido por quê. Agora eu entendo, e talvez lamente ainda mais do que lamentava antes de entrar neste café.

Você está falando sério?

A promessa que eu fiz para você de nunca mais mentir, mantive durante toda a minha vida, mesmo longe de você.

Você devia ter me contado.

Você não me deu oportunidade.

Você ainda me ama?

Não se deixa de amar a quem se ama. A vida até tem cura, o amor não.

Ainda temos alguma chance?

Não. Não agora. Já não faz mais sentido. Não quero mais chorar por você.

Ele levantou, sorriu, beijou-lhe com carinho uma das mãos e foi embora, com os passos lentos, ditados pelo ritmo pesado da idade avançada.

Enquanto ele se afastava, ela abaixou a cabeça, respirou fundo, tirou um maço de dentro da bolsa, acendeu um cigarro e, mais uma vez, chorou por ele.

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