quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Adeus, amigo


Cara, eu quis tanto não escrever este texto.

Quis mesmo, acho que nunca quis tanto não escrever alguma coisa como quis não prestar essa minha tentativa de homenagem.

Pela terceira vez a vida me leva a textos de despedida, destas definitivas, destas que gostaríamos que não houvessem.

Acontece que na última madrugada o meu ídolo, amigo, pai de um dos dois melhores amigos que têm estado ao meu lado para qualquer coisa que eu viesse a precisar nos últimos dezoito meses, depois de lutar com todas as forças contra a incompetência, falta de carinho, cuidado e respeito do nosso serviço público de saúde, Mausé pendurou os pincéis.

Como é doído ver uma pessoa tão boa partir.

Passei boa parte dos finais de semana dos últimos dezoito meses na casa dele, na linda praia de Sambaqui, que hoje acordou chorando a chuva que lava o chão, traz a tristeza que lateja, mas não é capaz de levar a saudade.

É difícil descrever para você que está lendo e não teve o privilégio de tê-lo conhecido pessoalmente, o que significa esta perda. Quem o conheceu, sabe do que estou falando.

Mausé era um homem reservado, discreto, mas de uma delicadeza no trato das pessoas, no jeito de sorrir para nos mostrar que éramos bem vindos, exalava bondade e generosidade no seu jeito de receber seus convidados, que só as pessoas muito especiais possuem. Tão generoso, que ao longo da sua bem vivida vida tratou de disfarçar as feiúras do mundo com a beleza do seu talento, das suas combinações de cores, dos seus traços, da sua maneira ímpar de retratar o que é ser florianópolitano, orgulho de ser manezinho da ilha, com um talento só comparável à beleza da cidade que ele tanto amou, e à família que formou e cultivou ainda com mais amor e talento.

Antes de conhecê-lo, tinha uma ideia meio estúpida de que os grandes artistas eram, de alguma maneira, infelizes, pois precisavam dedicar-se com tanto afinco as suas artes, aos seus talentos, que aquilo lhes consumia de tal maneira a ponto de deixar de lado a própria vida pessoal. Depois de conhecê-lo, foi que me dei conta do quão estúpida essa ideia era.

Mausé soube materializar seu talento, suas ideias com a maior intensidade, sem precisar com isso abandonar ou deixar de lado o que de mais importante uma pessoa pode ter na vida, que são os laços que se cria com aqueles que nos amam, mais particularmente a família.

O amor que sempre existiu entre ele e dona Regina foi de um companheirismo de cinema, coisa de artista de verdade. Ele, um artista completo, genial, ela uma mulher indescritível, inteligente, sensível, parceira, companheira. Era como estar diante de Pablo Neruda e Matilde, com a diferença que o Neruda ilhéu, que escrevia suas poesias com tintas, fazendo das telas papel para suas tantas e tão lindas histórias, não precisou de três casamentos para encontrar o grande amor da sua vida, teve a sorte de deparar-se com ele de primeira.

E, de um amor dessa magnitude, só pessoas boas poderiam surgir. Não conheço muito bem os outros dois filhos do casal, mas conheço Rodrigo Pereira – vulgo Daca – bem o suficiente para saber que ele herdou do pai o talento, a bondade e a generosidade. Com a diferença sutil de que, ao invés de escrever suas poesias com tintas, como fez o Neruda ilhéu pai, o Neruda ilhéu filho vale-se de acordes e uma voz linda para expressar sua arte.

Vai ser dolorido voltar aquela casa, passar pela salinha de televisão e não vê-lo na velha poltrona laranja assistindo a qualquer jogo de futebol que estivesse passando, para, depois, no fim da noite, vê-lo juntar-se a nós na varanda para tomar a sua Brahma Extra e, juntos, falarmos mal dos comentaristas da RBS e suas opiniões sobre o meu Figueirense e o Avaí da família Dacampora-Pereira, enquanto ouvíamos um velho disco que Mausé trouxe de uma de suas viagens ao exterior com o melhor que Frank Sinatra registrou na sua carreira. Outro registro que vale ser mencionado, por mais desaforado que eu naturalmente seja, e sempre tenha ido aquela casa azurra vestindo minha inseparável camisa alvinegra, nossas diferenças nas arquibancadas, nossas piadas recíprocas sobre o desempenho de um time ou de outro, nunca foi motivo de discórdia, desavença ou algo que o valha. Pois é assim que deve ser, faz-se a piada, ela acaba depois da risada, e depois abrimos mais uma e brindamos juntos à amizade que não dá a mínima importância para a cor da camisa do time que estiver em campo.

Contudo, apesar de dolorido, é uma casa que pretendo freqüentar por tanto tempo quanto ainda me quiserem por perto, pois além das pessoas lindas e boas que moram lá, também haverá para sempre as marcas da alegria e do talento do Mausé, seja nos quadros que enfeitam as várias paredes, nas tintas do atelier que também já sofrem de saudade dele, ou na lembrança saudosa daquela companhia tão prazerosa que ele sempre foi.

Tive a honra de poder estampar na capa do meu livro uma obra dele, criada especialmente para mim. Perguntei cheio de vergonha e receio se ele topava fazer, e ele aceitou cheio de generosidade e entusiasmo. Achei que demoraria, que talvez fosse fogo de palha, que tinha me respondido com toda aquela ênfase mais por consideração a amizade que tenho com o filho dele, mas, em poucos dias ele me mandou de volta três ideias de capa, três possibilidades, ou seja, não só criou algo exclusivo para mim, como criou três possibilidades, não sei nem como descrever a minha alegria quando vi que ele realmente levou a sério o meu pedido e o fez com tanto empenho e solicitude.

Depois do livro pronto, devidamente ornado com as cores do Mausé, bolamos juntos um projeto que, caso sua saúde – ou a falta dela – não tivesse nos proibido, certamente já estaria num estágio avançado de desenvolvimento. Faríamos um livro juntos, um destes grandes, destes de fotos, de obras de arte, de deixar na mesinha de centro da sala. O livro conteria dez textos meus e dez obras dele, e seria desenvolvido da seguinte maneira, ele me enviaria cinco pinturas inéditas, e eu enviaria a ele cinco contos inéditos. Eu faria cinco contos a partir das pinturas dele, e ele faria cinco pinturas a partir dos meus textos, depois juntaríamos tudo e publicaríamos nosso livro a quatro mãos.

A ideia não pode ser concretizada pela malvadeza da vida de não permitir que os planos sejam todos concluídos antes do nosso derradeiro capítulo, mas não abdiquei dela. Apenas sofrerá algumas alterações.

Não sei quando, mas podem anotar aí nos seus caderninhos, dentre as coisas que pretendo realizar antes de morrer, uma de minhas prioridades será fazer o livro que planejamos, com a diferença lógica de que, agora, serão dez textos escritos a partir de alguma das tantas obras que ele criou enquanto nos agraciou com sua companhia.

Na última vez em que estive com ele e dona Regina, quando já estava hospitalizado, recebi uma multa por ter estacionado onde não devia. Naquele dia fui presenteá-lo com um exemplar do meu livro, dar naquele casal lindo o meu mais sincero abraço e estimas de melhora, pude vê-lo sorridente, feliz, com aspecto de franca recuperação e cheio de planos e projetos para trabalhos futuros, um deles, inclusive, seria a capa do meu romance que pretendo lançar em breve, “Mais vinho pra mim”. Que pena que já não posso ser multado pelo mesmo motivo.

Contudo, entretanto, porém e todavia, apesar da tristeza que agora todos estamos sentindo, fico feliz por ter tido a oportunidade de conhecê-lo e, de ter tido o privilégio de tomar para mim, para o meu livro, um tantinho daquele talento todo que ele exalava quase que instintivamente e, mais do que isso, por de certa forma fazer parte daquela família que nunca deixará de ser parte de mim.

A ele, muito, muitíssimo obrigado.

Daca e dona Regina, eu não estou com vocês, eu SOU com vocês!


(Abaixo, as outras duas versões de capa que ele criou para o meu livro, e algumas das várias lindas obras dele)














3 comentários:

Daca disse...

David, meu amigo, meu irmão, a casa é tua pelo tempo que achares necessário. Faltou a tua presença, mas ele compreendeu. Ele estava sorrindo, cara. Forte abraço.

Bruna Rafaella disse...

É triste ir embora um puta talento, não o conhcei eu sei,
como você fala dele, é muito bonito e não há palavras...

jean mafra em minúsculas disse...

ah, david, sempre emocionando a gente...

desde a semana passada venho tentando ler este texto, mas só agora consegui...