quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Clichê


No dia em que sairia do hospital, aceitou finalmente receber a visita da sogra.

Mais quatro dias e completaria três meses desde que dera entrada na UTI, passando para a unidade semi-intensiva, e, pouco tempo depois, pôde, enfim, ir para o quarto. Quarto coletivo de hospital público, importante que se diga, pois dados os conflitos iniciais, a família da sogra recusara-se em arcar com as despesas de uma clínica particular, que poderia muito provavelmente antecipar em algumas boas semanas o tempo que tivera que ficar internada.

Aquela velha história, mais clichê do que time que começa com a letra A viver às voltas com a zona de rebaixamento do campeonato brasileiro de futebol, a menina pobre, muito pobre, que se apaixona e é reciprocamente correspondida pelo menino rico, muito rico. A família rica, como é determinado pelo clichê desde o tempo em que deus vestia calças curtas para brincar no playground do seu jardim eterno, posicionava-se contra a união por alimentar a certeza de tratar-se de um golpe do baú. A família pobre, por sua vez e também pela determinação do mesmo roteiro escrito pelo clichê entre um cigarro e outro, posicionava-se contra a união por sentir-se ofendida. Eram pessoas pobres, sim, eram, mas íntegras, honestas, e não havia nada nas tantas histórias do mundo, mesmo aquelas escritas pelo velho clichê, que provasse o contrário.

Mas o clichê não abre mão da sua obviedade, companheira inseparável, e sendo assim, a menina pobre o e menino rico resolveram enfrentar as tantas desventuras e oposições que se mostravam diante deles, e ficariam juntos e para sempre, houvesse o que houvesse, dissessem o que dissessem.

Ele disse à sua família que abria mão das tantas posses hereditárias, que um dia certamente viriam a ser dele, ainda mais se aceitasse se casar com alguma garota da sua classe social. Preferia o enfado de enfrentar uma das tantas filas que os pobres já estão acostumados desde quando suas mães precisaram esperar para poder dar a luz em maternidades públicas de higiene questionável, e tirar um daqueles documentos que se parecem com o passaporte dele, já gasto, tanto fora o seu uso, como é mesmo nome? Carteira de trabalho, isso, carteira de trabalho! Então, preferia tirar uma carteira de trabalho, entrar em outras tantas filas até que uma delas lhe acenasse com uma oferta de emprego, seja ele qual fosse, desde que fosse o suficiente para viver com sua amada menina pobre.

A família posicionou-se contrária, evidente. Clichê é clichê, oras. Não viam com bons olhos aquela união, mas humilhação ainda maior seria ver alguém que carregava na certidão de nascimento os tantos sobrenomes nobres da família secular, num destes empregos quaisquer que os pobres tanto gostam de ostentar como se fossem seus selos probatórios de pessoas direitas. Tudo bem, se fazia questão de ficar com a menina pobre, que ficasse. Não era do agrado deles, mas nem por isso lhe cortariam a generosa mesada, desde que prometesse deixar de lado aquele devaneio absurdo de tirar o tal documento, como é mesmo nome? Carteira de trabalho, isso, carteira de trabalho. Poderiam viver num dos tantos apartamentos da família. Mas num dos pequenos, um daqueles de só três ou quatro quartos, com pouco mais de duas vagas na garagem.

E, assim, casaram-se, papel passado e tudo!

Durante alguns meses, foram felizes. Muito felizes, ainda que a desgosto de ambas as famílias. Mas nem havia dado o tempo necessário para que uma criança viesse ao mundo e as primeiras desavenças começaram. É que, assim como é difícil acostumar-se a viver sem aquilo que sempre se teve, é muito fácil tomar gosto por aquilo que é bom e nunca se possuiu. Ele passou a se sentir desconfortável com as pequenas coisas do dia-a-dia, como a falta de uma empregada que viesse diariamente ao apartamento para lhe preparar o desjejum, pois ainda que nas primeiras semanas ela, a menina pobre, tivesse feito questão de lhe servir café na cama, não demorou para que passassem a ter que realizar a desgostosa tarefa de comer à mesa, e nada de brioches, sucos e frutas várias. Apenas café, leite, pão da padaria ali de baixo, margarina, queijo, presunto e, de vez em quando, uma geleia qualquer, destas de potes de plástico. Era difícil para ele viver num apartamento onde, na sua suíte, a banheira comportava apenas um corpo por vez e com tão poucos jatos de hidromassagem. Não conseguia conceber como as pessoas poderiam viver em condições tão desumanas quanto àquelas. Do mesmo modo, ela, a cada dia, deslumbrava-se mais e mais com todo aquele conforto. Antes acostumada a dividir o pequeno quarto em que dormia com outras duas irmãs e o irmão ainda de colo, que interrompia o sono das três todas as noites com suas cotidianas cólicas noturnas, agora tinha uma casa inteira só para ela e seu marido. A suíte onde ambos dividiam o leito matrimonial era quase do tamanho inteiro da casa onde a família ainda se apinhava. Ela, que na infância divertia-se tomando banho no tanque de cimento nos dias de verão, agora tinha até banheira no quarto, daquelas que fazem bolhinhas e tudo! Todos os dias tinham o que comer no café da manhã, o pão era sempre fresco e sempre havia o que nele passar, queijo e presunto não faltara um dia sequer, às vezes, até geleia, veja só você! Claro que o jeito afetadinho do seu amado marido menino rico, às vezes a incomodava. E nos últimos tempos ele só fazia reclamar. Como ele podia reclamar da vida? Além daquele conforto todo, ainda tinha a sua esposinha menina pobre a sua inteira disposição, ela cuidava da casa com muito esmero, estava tudo sempre limpinho, não entendia por que aquela mania besta de querer ter empregada.

Certo dia, ele acordou decidido, não poderia continuar a viver daquele jeito. Gostava sim muito dela, mas aquilo não era vida digna, aquilo não poderia continuar assim.

Brigaram, brigaram feio. Ela o chamou de uma quantidade incontável de adjetivos pouco carinhosos, começando por merdinha esnobe, e terminando com outras palavras cujo significado ele desconhecia, devia ser algo do vocabulário das gentes iguais a ela, um dialeto próprio e só entendido pelos miseráveis iguais à família dela. E, assim, voltou para a casa da mãe.

Ela, a mãe rica, regozijou-se ao receber o telefonema do filho, pedindo que o motorista fosse buscá-lo.

Ela, a esposa menina pobre, ficou muito triste, deprimida, até, por que não dizer. Mas ele estava decidido, divorciar-se-iam, não havia como permanecer enclausurado numa vida tão limitada quanto àquela.

A família rica tratou de dar entrada nos trâmites legais, mas ela fez questão que fossem sozinhos ao cartório assinar a papelada. Ela mesma foi buscá-lo na casa da mãe rica, pois uma das tantas coisas que lhe ocorrera no tempo em que estivera com ele, fora a carteira de motorista. Ele, de início, queria que tivessem um dos chofer da família à sua disposição, mas ela disse que não, ela mesma levaria o marido aonde ele bem entendesse, teriam a vida deles, a liberdade deles. Ele aceitou. Pegou o marido no horário combinado. No início do trajeto, silêncio, depois, ela começou a chorar, ele afagou-lhe os cabelos dizendo que também sentia muito, mas seria melhor assim. No futuro, ambos perceberiam que o divórcio era a decisão mais acertada. O apartamento que dividiram durante os poucos meses do matrimônio, estava no nome dele, ele não importava em deixá-la morando lá por quanto tempo quisesse, a vida toda, se lhe parecesse conveniente. Está no meu nome, mas ele é seu, dizia o iminente ex-marido menino rico. Está no seu nome? Está, ele disse. Assim como este carro e o outro que usávamos, mas você sabe, eu não dirijo, fique com os dois. Não lhe asseguro uma pensão gorda, mas alguma ajuda financeira eu lhe darei, pelo menos até que você consiga um emprego novamente, como você tinha antes de me conhecer. Você não precisa se preoc...

E antes que ele terminasse a frase, um caminhão em sentido transversal acertou em cheio a porta do carona do carro, acidente horrível.

Ele morreu na hora, ela ficara os tais quase três meses internada no hospital público.

No início, a família rica a acusou de ter causado a morte do único herdeiro, pois sabiam que na idiotia da paixonite que o levou ao descabimento do casamento, casara em comunhão total de bens, apenas para afrontar ainda mais a família que, na época, mostrara-se contrária à união.
Logo, sendo viúva, e não ex-mulher, logicamente tudo o que antes ele herdaria, passaria a ser, então, dela.

Quando, ainda internada, soube das acusações, todos perceberam com preocupação a tristeza que lhe assolava, e parecia postergar ainda mais a sua convalescença. Não bastasse a violência da batida, a violência da perda daquele menino rico que ainda amava, sofria ainda a violência daquelas acusações tão vis.

Mas, no dia em que sairia do hospital, a sogra veio pedir-lhe desculpas. Passada a revolta e tristeza inicial pela perda do filho tão querido, ela e seu marido concluíram que era absurda aquela acusação. Afinal de contas, como os inquéritos policiais apuraram, o tal caminhão cruzara o sinal vermelho antes de fazer do carro quase novo que ela dirigia, um amontoado de ferro retorcido, a culpa não fora dela. Ela, a agora viúva menina pobre, estava ofendidíssima, magoadíssima com as acusações que sofrera. Disse à quase ex-sogra, que ela podia ficar tranqüila, não ia querer nada da família, nem o apartamento, nem o carro que sobrara na garagem, nem uma mesada para lhe ajudar a restabelecer-se, nada. A sogra disse que não esperava mesmo que ela ficasse no apartamento, conseguiriam para ela algo melhor, maior, e, mais do que isso, já haviam comprado para a família da viúva menina pobre, uma ótima casa em condomínio fechado. Fazia questão de assegurar-se de que nada viesse a faltar àquela que o filho tanto amara, ainda que na ocasião do acidente, estivessem rumando ao divórcio. Ela fazia questão, e não aceitaria um “não” como resposta. Apesar de inicialmente mostrar-se contrária a todas aquelas ofertas, pensou na família, nas dificuldades que enfrentaram desde sempre, e acabou cedendo e aceitando as desculpas da sogra.

A família adorou a casa, e o apartamento novo onde morava era de fato muito maior do que o anterior. A banheira, então, nem se compara. Agora entendia porque o seu finado marido menino rico reclamava da anterior.

Uma semana após sair do hospital, a sogra levou-a ao advogado da família para assegurar-lhe que legalmente nada do que prometera quando ela, a nora menina pobre, ainda estava internada, deixasse de ser cumprido.

Assinaram os papéis, despediram-se com cordialidade, e a menina pobre seguiu para sua nova vida.

Estava na jacuzzi do seu novo apartamento, quando tocou o interfone. Vestiu o hobby muito fino, atendeu dizendo, Oi, claro, pode subir, está aqui comigo.

Era Waldemar, o motorista do caminhão.

Ela, a menina pobre, entregou a ele o envelope recheado de garoupas, conforme havia prometido, para que ele acertasse em cheio o lado do carona no momento em que passassem por aquele cruzamento daquela avenida que levava ao cartório da cidade. Quando ela fez a proposta, ele alertou que ela também poderia se machucar, ela disse que não se importava, que machucados cicatrizam, difícil é cicatrizar a pobreza. Se fosse esse o remédio, que fosse tomado de uma dose só.

E assim, agora sem poder ser chamada de menina pobre e com aquele merdinha esnobe devidamente enterrado a sete palmos do chão, ela viveu feliz para sempre.

3 comentários:

Shuzy disse...

Menininha genial!

jean mafra em minúsculas disse...

RÁ!!!

Bruna Rafaella disse...

Clichê?
Isso daí é uma novela mexicana completa!!!
Eu estava com os cenários gravados na cabeça, que loucura!
Eu sinceramente não achei genial o que ela fez, eu pensei que ela gostava do playboyzinho, pobre de merda!

Adorei o texto!!!

Adoro, adoro, adoro!!!!!!!!!


Grande Beijo!