segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Um bom dia (enfim)




Foi um Preto muito preto que confundiu à mulher que tateava sonolenta, buscando no criado mudo ao lado da cama o despertador que tocava impertinente. Ela abriu os olhos contrariada, seduzida pelo morno dos lençóis que abraçavam-na tentadores, e contrariada viu o Preto. Era um Preto muito grande e forte, tomava os espaços todos do quarto, não deixando vago qualquer canto para nada mais além de si.

De tão largo que era o peito do Preto, além do quarto dela, a cozinha, a sala, o banheiro, o lavabo do estreito corredor, tudo na casa por ele, o Preto, fora ocupado. E não só na casa, em tudo o mais que havia, o Preto se fazia notar. Só a si e ninguém mais.

Há os que temem os pretos, mas este Preto – tal qual a maior parte dos outros - era uma boa pessoa, um bom amigo. Tanto o era, que sua visita nada mais era do que o anseio genuíno de atender ao pedido de um amigo querido, o primeiro de todos os deuses que houveram. Quando nada mais havia, o Sol era deus bastante, e na sua suficiência partilhada, fazia do mundo um lugar bom. O Preto conhecia bem o Sol, era até parte dele, quando necessário. O Sol disfarçava o Preto, como a anestesia que tenta disfarçar a grosseria do bisturí, querendo convencer que o corte não existe. Mas ele há, e cedo ou tarde irá requerer os ais que lhe são de direito.

Fizeram o Sol e o Preto a combinação de que o Sol, por ser de personalidade mais preguiçosa e leniente, trataria de cuidar apenas de uns poucos planetas, enquanto o Preto, este muito mais disposto ao trabalho pesado, por mais cansativo que fosse, tomaria conta do restante dos universos inteiros. Importante salientar que este Preto não é o escuro da noite, tampouco da madrugada, que nada mais é do que a noite em processo paulatino de desbotamento, clareando os tons negros para tingir-se das cores diurnas. Este é o Preto absoluto, pesado, denso, irrecusável.

Quando os outros tantos deuses não haviam, o Sol e o Preto ocupavam nos universos todos os espaços disponíveis, e é desta época distante que data a amizade de ambos. Não fosse questionável a paternidade, em função da diferença da cor da pele, poder-se-ia dizer até que eram irmãos gêmeos. O certo é que se havia um, era exclusivamente pela existência do outro.

Contudo, o Sol fez-se notar mais profusamente, dada sua indiscrição alegre, tornou-se popular e sinônimo de boas-novas. Mas, diferente de Caim, o Preto não viu no sucesso de seu par motivo para descontentamento, pelo contrário, regozijou-se pelo amigo querido.

Ao Sol atribuía-se as tantas coisas boas, as estações mais belas, as sensações mais ternas, os perfumes mais apurados, as convalescenças, os poemas, as canções, tudo o que havia de bom era acompanhado por algum raio morno que descia do Sol como um afago nos cabelos revoltos do mundo. Isso alegrava o Sol e também o Preto. O Preto orgulhava-se do bem querer que as pessoas tinham pelo Sol, fazia-o feliz a admiração que seu amigo querido despertava em todos. De tão grande o bem querer, não demorou para que os habitantes do mundo passassem a tratar o Sol por divindade. Viam nele a razão, a causa, a justificativa para o que havia de bom, e atribuíam a eventuais indisposições de seu humor, o que por ventura houvesse de ruim. E assim, os dias todos eram bons.

Mas não eram vaidosos, nem o Sol, nem o Preto. E por mais que fosse divertido ser tratado como divindade, o Sol sabia-se apenas parte do todo, nem maior nem menor, nem melhor nem pior do que qualquer outra partícula imprescindível para a manutenção da ordem universal. Talvez por não ter dado importância ao tratamento divinal que recebera, as gentes sentiram necessidade de buscar outros deuses que atendessem suas infindas lamúrias. Precisavam de deuses mais severos, mais rígidos, que lhes impusesse castigos, decretasse pecados, expusesse suas pequenas existências em juízo sacramental.

Dada a índole íntegra e desinteressada do Sol, ele não magoara-se quando perdera o posto de deus que, sem que o houvesse requisitado, lhe deram. Até por que não fazia questão de ostentar as adorações que os outros deuses, todos de caráter pequeno e conduta irresponsável, faziam questão de amarrá-las em cordão de ouro maciço e ostentá-las no pescoço. Os outros deuses tinham orgulho das culpas que inseminavam nas comunidades do mundo, até competiam entre si, para saber qual deles ao cometer um número maior de maldades aos seus adoradores, acabaria por ser ainda mais adorado.

Todavia, quando os anos passaram a acumular-se no depósito do tempo de maneira já bastante notória e volumosa, o Sol notou um comportamento bastante relapso das pessoas do mundo para com as tantas coisas boas que seu calor proporcionava. Não era a falta de bajulação que o apoquentava, mas o descaso com seus singelos cuidados em tornar o mundo uma manjedoura acolhedora e confortável para todas as espécies, tendo elas recebido a vista de quantos reis magos fossem, ou não.

Passavam os anos e mais relaxados tornavam-se os habitantes do mundo, mais sujos, perversos e indignos até mesmo da bondade daqueles deuses de caráter desidioso. O Sol tentou alertar as pessoas, alongou verões, asseverou invernos, eclodiu pequenas catástrofes naturais, alterou marés, tudo na intenção de chamar-lhes a atenção. Mas já fazia tanto tempo que lhe haviam deposto da divindade, que sequer ouvidos lhe davam. Julgavam-se, inclusive, maiores do que ele, o Sol. Acreditavam-se capazes de fazer do mundo e até mesmo da natureza, tudo o que bem entendessem, pois com a suposta inteligência que tinham ganhado dos outros deuses, poderiam reproduzir em seus laboratórios tudo quanto é recurso de que necessitassem. O Sol, outrora divino, agora era tido como residual.

O Sol recolhera-se magoado. Escolheu uma das tantas cidades do mundo, e dela se ausentou sem data marcada para o retorno, e deixou em seu lugar, como se preposto fosse, o Preto, que por ser sabedor da importância que seu amigo tinha para o bem estar do mundo, tentou dissuadi-lo, alertou para as boas pessoas que havia, mas o Sol, ainda que com pesar no coração, já não se interessava por aquela espécie tão vil.

Para que não se causasse pânico, foi no meio da madrugada que o Preto tomou os lugares todos da pequena cidade. Fez do seu negrume espesso, a vida naquela cidade. O ar era negro, as ruas estavam negras, e quando a mulher tateou o criado mudo ao lado da cama à procura do despertador, ainda não havia se dado conta que independente do que fizesse, não haveria luz artificial capaz de cortar a escuridão estabelecida.

Acreditavam as pessoas que a eletricidade dos seus laboratórios, suas fontes, renováveis ou não, de energia, seriam capazes de iluminar qualquer escuro que lhes afrontasse. Mas ainda não haviam sido apresentados àquele Preto. O Preto, quando faz-se presente, não admite luz. Só aceita a interferência do Sol, que por ele é sempre bem-vindo. A mulher tentou o interruptor, a luz do telefone celular, a lanterna que ficava na gaveta do quarto, tateou no escuro até a cozinha, pegou o maço de velas embaixo da pia para acendê-las, mas se assustou quando percebeu que a chama do fósforo que riscara para acender a vela, mesmo tendo queimado a ponta dos seus dedos, não produzira luz nenhuma. Nada podia ser feito, o Preto estava instalado, e até que o Sol resolvesse retornar, daquela cidade não sairia.

Quando as pessoas das outras casas perceberam o profundidade do Preto e deram-se conta de que nada poderiam fazer para ludibriá-lo, acreditaram que saindo da cidade os seus problemas estariam resolvidos. Mas concomitante à ausência da luz, as pessoas todas perceberam que com a chegada do Preto, fora-lhes também removida a disposição para qualquer atitude que pensassem em tomar. Sabiam que não estavam cegos, tanto quanto sabiam também que não voltariam a enxergar. Já não havia em quem quer que fosse a vontade necessária para sair de casa e buscar as respostas que os fariam entender o impasse.

As pessoas ficaram recolhidas às suas camas, encolhidas e muito tristes. Algumas choravam copiosamente pela saudade de um tempo que lhes parecia afastado há séculos, embora fossem poucos os minutos passados desde que o Preto chegara, outras simplesmente ficavam deitadas conformadas com a sentença que recebiam. Alguns ainda pensavam que tratava-se do juízo final prometido por algum dos tantos deuses que haviam passado a adorar, mas outros entenderam que tratava-se da mágoa do Sol.

Mas o Sol não estava magoado pelo desrespeito que tiveram com ele. Sua mágoa era com o desrespeito das pessoas para com o mundo.

Abandonadas por si mesmas em suas camas, as pessoas não entendiam o que se passava com seus animais domésticos, eles permaneciam dispostos, alegres, vivos, e transitavam pelo Preto, como se claro fosse.

Foi no início do terceiro dia, que as primeiras pessoas da cidade abandonada pelo Sol começaram a morrer. Todas permaneciam nas suas camas, deitadas, sozinhas, ainda que estivessem acompanhadas. Não se levantavam sequer para atender as reinvidicações urgentes dos seus organismos. E em pouco tempo todo o ar estava empesteado pelos odores acumulados de todas as pessoas. Poder-se-ia acreditar que numa situação dessas fosse ocorrer uma onda de suicídios, mas não. Nem para tanto havia disposição. As pessoas apenas deitaram-se cegadas pelo Preto.

Por uma mera coincidência, foi no final do sexto dia que a última pessoa viva da cidade parou, para sempre, de respirar. No sétimo dia, o Preto pediu ao Vento ajuda, para afastar dali os odores de dejetos e gente morta, era muita carne apodrecendo entre fezes e urinas. O Preto ficou com pena dos animais, que embora vivos e dispostos, ficavam nauseabundos com o mau cheiro.

Quando, ao meio dia de domingo, o Vento terminou de varrer da cidade os maus cheiros acumulados ao longo daqueles seis dias, o Preto avisou o Sol de que ele poderia voltar, pois já não havia na cidade as pessoas ruins que haviam atrapalhado a coexistência harmônica de tudo o que de tão bom havia. Às três horas da tarde, reticente, o Sol voltou.

Ainda incerto da decisão que tomara, o Sol mandou alguns dos seus fachos mais finos verificarem se aquilo que seus próximos lhe haviam relatado era verdade.

Sim, era verdade.

Não havia no vasto horizonte, que era varrido por seus raios cada vez mais significativos, o menor sinal dos homens.

E o Sol viu que isso era bom.

Agora certo, corajoso, assumiu no céu o posto que lhe estivera reservado desde sempre, mas que deixara vago na noite em que se recolhera magoado. Não usou de prepostos, ele próprio certificou-se que entre as ruínas de uma civilização desnecessária, já não havia qualquer vestígio daquela espécie.

E depois de muito, muito tempo, o amanhecer anunciava, enfim, um bom dia.

O Sol, radiante menos de luz do que da euforia que lhe inundava, decidiu tornar perene a felicidade que, ao menos até então, era circunstancial.

Naquele mesmo dia, nos amanheceres dos outros lugares, com algumas diferenças de horas, o Sol se fez ausente, e o Preto, aquele bem preto, seu amigo mais íntimo e confidente primeiro, tomou nos céus, nos ares, nas ruas, casas, praças, em tudo, o lugar da luz temerária que obstruía a felicidade definitiva.

3 comentários:

Priscilla disse...

Enfim resolveste publicar o teu melhor texto!
Música tão boa quanto.

Beijos e beijos

jean mafra em minúsculas disse...

muito muito muito bom.

se é o melhor, como a priscila disse, não sei. mas está entre os melhores, certamente. lindo texto. penso que ele poderia ser apresentado por algum bom contador. que respeitasse cada vírgula, claro...

A-D-O-R-E-I.

Bruna Rafaella disse...

Belo texto!!!
senti sua insipração fluir na luz
do dia, me deu vontade ficar deitada horas a fio, olhando pro céu, muito lindo!
adoro sua escrita!!

parabéns!