sexta-feira, 16 de julho de 2010

Felizes para sempre, a despeito do amor


O Amor só é verdadeiramente feliz quando fode com a vida dos outros. Sua realização está em escolher alguém, apontar para outro, e dizer, É aquela, vai otário, caia de quatro agora!

Na maior parte das vezes, sensibiliza um e passa longe do outro, só para ver o primeiro sofrer inconsolavelmente, dizendo aos quatro ventos – que, diga-se de passagem, são surdos, caso contrário não haveria tanto mal entendido no mundo – “tenho um amor não correspondido”. Burra ilusão causada pela esperança, esta, outra grandessíssima filha da puta, já que o amor, egoísta que é, jamais se corresponde com quem quer que seja. Apenas se diverte com a desgraça alheia, muito parecido com o que deus faz com sua cega criação.

Em outras tantas vezes, cativa a ambos os escolhidos, mas quando tudo passa a parecer perfeito, desocupa a quitinete que alugou no peito de um deles, e continua a ocupar a mansão espaçosa com vista para o mar no coração do outro, causando, só para seu sádico entretenimento, um sofrimento indecente, de tão desumano, naquele que ainda é obrigado a lhe dar morada.

Como é de sua índole vagabunda, o Amor passeava ermo pelas ruas, fumando seus cigarros sucessivos, vez ou outra dando uma bicadinha na garrafa de whisky paraguaio que sempre traz consigo no bolso interno do seu paletó de linho branco, quando a avistou e escolheu-a por nova vítima, pobrezinha.

Com a má educação de que tanto se orgulha, o Amor empurrou aos tantos outros que caminhavam na rua velha do centro da cidade, sem pedir licença, aos trancos, e precipitou-se sobre ela como uma pedrada no meio da testa.

Não estava fazendo mal a ninguém, tadinha. Apenas tomava uma coca-cola light, tentando enganar-se que a quantidade menor de açúcar do refrigerante, amenizaria o estrago do pastel gorduroso que comia no intervalo que a empresa lhe concedia, muito a contra-gosto, para um lanche de quinze míseros minutos.

E foi para o caixa da lanchonete que o Amor apontou, Vai, otária, é aquele, caia de quatro agora!

Ela caiu.

Poucos sabem, mas o Amor é muito amigo da Morte. Encontram-se todas as sextas-feiras na casa de um ou de outro, para tomar cervejas e fumar charutos. Na juventude, um tempo antes de deus dizer, Faça-se a luz, saciavam as urgências hormonais das suas puberdades nos cantos escuros do universo. Mas, agora, são apenas bons e velhos amigos.

Se deus soubesse como o escuro era bom...

E foi exatamente por serem íntimos, que ao dizer o nome dela o Amor soube que em menos de dois anos a Morte ceifaria a vida daquela menina. Não tinha decidido ainda como, mas de dois anos não passaria. Nisso, o Amor viu ali uma ótima possibilidade de causar um sofrimento de dor rara, e por isso tocou também o rapaz que recebia os pagamentos na lanchonete.

Inocentes, como são todos diante do Amor, apaixonaram-se com a certeza de não haver sentido continuarem a viver se não fosse um nos braços do outro.

Namoraram, noivaram e casaram. Tudo em pouco mais de seis meses. Felizes como poucos. Respeitavam-se, acolhiam-se, saciavam-se como nenhum outro namorado ou namorada anterior, fora capaz de fazer por eles.

Estavam juntos há um ano, quando ela contou emocionada para o seu jovem marido que esperava um filho dele, o primeiro dos três que sonhavam ter.

Maquiavelicamente, Amor e Morte combinaram entre risadas que, então, ela morreria no parto. Mais do que isso, morreria também o bebê. Seria lindo o desespero dele ao deparar-se sem aquela que acreditava que teria ao seu lado até que os cabelos de ambos estivessem mais branquinhos que algodão, justo no dia que deveria ser o mais feliz da sua vida.

E assim o fizeram.

O jovem casal havia marcado a data da cesariana, mas para fazer da surpresa um tempero especial, Morte e Amor anteciparam a chegada do bebê, forçando um parto pré-maturo.

Na maternidade pública, os médicos preocuparam-se com a baixa pressão sanguínea dela, tão logo dera entrada na emergência. Depois de algumas horas de uma dor que só as mulheres que tornam-se mães conhecem e são capazes de suportar, apareceu o menino. Mesmo muito fraca, ela encontrou forças para perguntar para o médico de semblante muito tenso, por que não ouvia o choro do seu bebê. Visivelmente emocionado, o médico balançou a cabeça negativamente. Ela foi ficando cada vez mais debilitada, conseqüência de uma hemorragia inestancável. Terminou o abandono da vida minutos depois de já ter abandonado a consciência.

Amor e Morte gargalhavam, comemorando o sucesso da empreitada tão bem planejada, mas com uma pequena falha na execução.

Quando disse o nome da menina, o Amor esqueceu-se de dizer à Morte também o nome do rapaz. Se o tivesse dito, saberia que ainda antes da morte dela, estava programado para ele, naquele mesmo dia e horário, um atropelamento fatal.

Na sala da funerária onde os três caixões estavam lado a lado, as famílias de ambos encontravam o conforto que se é possível encontrar numa situação desta, no consolo de, ao menos, terem partido todos juntos. Se já eram felizes aqui na terra, onde tanto infortúnio se intromete na vida das gentes todas, plenamente agora o seriam no céu, pois lugar diferente para um casal que tanto e tão verdadeiramente se amara, não haveria de ter.

E, ao menos desta vez, o Amor se fodeu.

2 comentários:

mar. disse...

sempre suspeitei desse tal de amor.

Anônimo disse...

Nem terminei, podia ter posto aviso: proibido para gestantes!

rs

A gente sofre uma avalanche de histórias regadas a morte, recheadas de mortes, de sofrimento, de doenças, de morte, e mais morte, e muita morte. Ninguem tem uma boa historia boa, uma boa historia de parto, só boas historias de morte no parto, antes do parto, após o parto, enfim...

rs

Beijocas da Xixa