segunda-feira, 5 de julho de 2010

Puta Amor


Não esperava forjar naquele fogo indecente os rumos da sua vida, cuja bússola o norte já não encontrava. Eram muitos os meses em que o imã da sua bússola surtara, e fazia a seta que deveria apontar-lhe o caminho certo girar com tamanha velocidade, a ponto de despetalar a indefesa rosa dos ventos. Fora apenas levar alguns poucos clientes de cidade distante para divertirem-se longe das esposas que dormiam, presumidamente sozinhas, a quilômetros dali.

Puteiro de qualidade média-baixa. Se lhe comprassem mais e melhor, aqueles clientes de merda, levaria-os a corpos mais bem cuidados, talvez no centro da cidade, mas para quem eram, estava mais do que bom.

Os clientes dele maravilhados com aqueles shows de mulheres nuas. Mulheres esquisitas, alguns bons corpos precedidos por rostos lastimáveis, outras o inverso.

E foi no escuro permeado pelas fumaças misturadas de cigarros de marcas diversas, que ele a viu.

Ao lado de uma outra ela esperava, com o cigarro em punho, por uma brasa que despertasse sua fumaça adormecida.

Chamou o garçom e pediu o balde de cervejas que o custo da sua consumação lhe dava direito. Pediu de tal modo que ela percebesse que ele estava ali, sozinho naquela mesa pequena, com espaço suficiente apenas para a bebida e para o cinzeiro imundo.

Não era feia, e era bem gostosa.

Vestido curtíssimo, pernas lindas.

Um pequeno regime talvez lhe caísse bem, mas nada grave. Nada que desabonasse o desejo que suas pernas deviam despertar noite após noite.

Não subia ao palco, guardava seu espetáculo para a alcova de quem arcasse com os custos altos que cobrava por seus préstimos.

Me chamo Raquel, ela disse, e você?

E faz diferença? Ele respondeu.

Tens cara de Rodrigo.

Passou longe, mas me chame assim, se te parece adequado.

Eu é que devo te dar nomes falsos.

E qual o teu verdadeiro?

Raquel.

Muito prazer, Raquel, me chamo Rodrigo.

Me pagas um drink?

O mais barato.

Ela pediu.

Ele pagou.

Não era falso o prazer que a companhia dele lhe despertava. Não era exatamente um homem esbelto, estava algo descuidado, mas, nem por isso, menos interessante.

Os clientes entretiam-se com as outras putas, enquanto a conversa deles fluía com tal flerte, que sequer parecia apropriado ao recinto.

Na pouca intimidade que se estabelecera no início da conversa, confessara-lhe ter um filho. Ela.

Já haviam ido embora os clientes dele, e uns poucos alcoólatras, assíduos do recinto, ainda permaneciam bravamente a espera de algum desconto misericordioso que qualquer das outras putas lhes pudesse oferecer. Mesmo para os bêbados, é triste terminar a noite sozinho.

Na verdade eu tenho quatro.

O quê?

Filhos. Vivem todos comigo. Tive a primeira aos quatorze.

Quantos anos tens?

Vinte e oito.

Achei que tinhas dito vinte e três, no começo da nossa conversa.

E faz diferença?

Ele sorriu.

Talvez descuido de fim de noite, mas entre uma música sertaneja e outra, surgiu Caetano cantando Cajuína.

Ela gargalhou do equívoco do DJ sonolento.

Dança comigo?

Ela sorriu.

Eles dançaram.

A música arrastava-se swingada, como que derramando-se nas coxas de ambos, que a cada passo procuravam-se mais.

Ele trazia para perto de si, puxando a cintura fina dela com uma firmeza muito delicada, aquele corpo que quanto mais a música evoluía, mais o apetecia.

Seus rostos cruzavam na melodia, aproximavam-se os lábios, mas a ética profissional negava-lhes o beijo ansiado.

O perfume dela era bom.

O dele, melhor.

Essa noite eu vou te ter, mas não vou pagar.

Já faz algumas horas que parei de negociar.

Se tiveres um quinto, e ele for meu, faço questão de que seja criado por mim.

Ela sorriu, quase com emoção.

No apartamento dele, tudo fora tão lento e malandro quanto a canção de minutos atrás.

Nem ele sabia-se capaz de tamanho carinho e cuidado.

Explorou-a sem pressa, com as mãos, com os lábios, com o corpo inteiro.

Ofereceu-lhe os arrepios que toda mulher deve experimentar ao menos uma vez na vida.

Ela retribuiu-lhe substituindo os gritos fingidos de outras noites, por sussurros verdadeiros.

As peles crispadas ferviam, gelavam e tornavam a ferver.

Ele serviu a ela com a mesma dedicação que era obrigada a oferecer a outros por ofício.

Não pediu o telefone dela, nem retornou ao puteiro. Deixou-lhe o seu cartão.

Se me quiseres, me ligue.

Raquel sorriu, mas não ligou.

Dez meses depois, sua secretária transferiu-lhe uma ligação em que uma voz feminina dizia que Raquel morrera no nascimento do seu quinto filho. Filha, na verdade.

Antes, porém, deixara com a amiga que agora telefonava o cartão dele, com a orientação de que caso lhe acontecesse algo, deveria ligar para aquele número e entregar-lhe o bebê. Só o último, os outros quatro a mãe dela se encarregaria de encaminhar na vida.

A menina era linda.

Olhos escuros, castanhos profundos, iguais aos da mãe.

O rapazinho do cartório recusara-se em aceitar o registro de Cajuína, mas nada que cinqüenta reais não bastassem para corromper a conduta profissional do jovem escrivão, e chegarem a um acordo satisfatório para ambos. Raquel Cajuína, constava na certidão da pequena. Nome mais verdadeiro, impossível, e essa verdade fazia diferença.

É pouco provável que outro homem tenha sido pai tão amoroso quanto ele.

Dias antes de completar quinze anos, ela veio aos prantos, tremendo de medo da reação paterna, confessar-lhe que estava grávida de um namoradinho da sua escola.

Com os olhos marejados ele sorriu. Sorriu e abraçou sua pequena criança a espera de uma outra. Beijou sua testa, secou as lágrimas que escorriam daqueles belos, grandes e amedrontados olhos castanhos, e disse com a voz mais doce e cheia de amor de toda a sua vida:

Mas tu és mesmo uma filha da puta...

4 comentários:

Anônimo disse...

Excelente!

Anônimo disse...

Mesmo para os bebados é triste terminar a noite sozinho

e quanto mais solidão aperta, mais um copo se convida

Beijocas da Xixa

minha palavra na "verificação de palavras" foi/é "impuni"

Lamaringoni disse...

que lindo, lindo, lindo... marejaram-se-me os olhos.

beijo!

jean mafra em minúsculas disse...

lindo lindo lindo, david!!!

EMOCIONANTE.

valeu a dica! semanas atrás esbarrei nesse post, mas na pressa, não o li.

beijocão!