terça-feira, 9 de novembro de 2010

Ah, o amor...


Léo e Décio eram amigos desde os tempos das calças curtas. Cresceram juntos numa cidadezinha do interior do Rio Grande do Sul. Dividiram todas as aventuras de crianças, expedições intergalácticas no quintal de casa, roubavam goiabas nas árvores dos vizinhos, descobriram o sexo juntos. No sítio do avô de Décio, ambos dividiram o amor de Gertrudes, a vaca que fornecia o leite com o qual a avó fazia um queijo colonial delicioso.

Juntos, também desfrutaram pela primeira vez do corpo de uma mulher. Era uma edição de 1982 que trazia na capa a Monique Evans.

Foram coroinhas nas missas de domingo da capela da pequena cidade gaúcha.

Na adolescência, competiam para ver quem conquistava mais meninas, e ambos eram bons nisso. Muitas choraram por eles.

Passaram juntos no vestibular. Décio para arquitetura, Léo para Geografia. Os pais de ambos, também amigos, bancaram a vida estudantil em Porto Alegre.

Nessa época, as aventuras amorosas eram ainda mais intensas. Léo se saía um pouco melhor com as garotas, pelo seu jeito despojado de quem não quer nada com a vida, típico dos estudantes de Geografia, atraía o interesse de um número um tantinho maior de meninas. Mas Décio não ficava muito atrás. Mesmo com seu jeito meio desengonçado, colocando as mãos por dentro dos bolsos da calça para puxá-la constantemente cima, ainda assim exercia algum estranho fascínio nas meninas.

Nada atrapalhava aquela amizade.

Até que um dia, para surpresa de Décio, Léo apareceu com uma menina no apartamento deles, dizendo, Agora é sério, encontrei a mulher da minha vida.

Décio deu risada, logo Léo, o Don Juan do campus universitário, logo ele ia se amarrar assim, com mais da metade da faculdade pela frente? Mas ele se amarrou.

Comprou alianças de prata, perfume, e até passou a se barbear e andar penteado.

A surpresa de Décio só não foi maior do que a de Léo, quando seu melhor amigo anunciou que abandonaria a faculdade de Arquitetura.

Tá maluco? Perguntou Léo.

Pelo contrário, finalmente estou são. Vou ser padre.

Léo deu risada. Gargalhou.

Mas era verdade.

Da noite para o dia, Décio mudou radicalmente. Arrumou suas coisas, colocou-as todas numa mala velha, a mesma que trouxera suas roupas quando se mudaram para Porto Alegre e, num abraço não tão apertado quanto emocionado, despediu-se do amigo com os olhos marejados.

Léo ficou preocupado, achou que Décio não estava bem. Mas o amigo parecia tão sereno e estranhamente feliz, que acabou aceitando a decisão.

Décio se ordenou padre dois anos depois. A cerimônia foi linda, e Léo, apesar de declarar-se ateu, estava na primeira fila da igreja para congratular o amigo pela realização daquela que ele acreditava ser a sua verdadeira vocação. Léo e Amanda, sua namorada.

Horas mais tarde, na casa dos pais de Décio, Léo e Amanda se aproximaram do novo padre e, emocionados, comunicaram a ele que iriam se casar.

Décio abraçou-os com muito carinho e felicidade, afinal de contas, duas vocações se solidificavam naquele dia.

Mais do que o comunicado, Léo e Amanda pediram a Décio que ele celebrasse o casamento.

Eu?

Sim, claro, você!

Mas eu?

Claro, Décio, se eu vou me casar na igreja, logo eu, esse casamento só pode ser celebrado por aquele que conhece todos os meus defeitos melhor do que qualquer pessoa. Faço questão que seja você!

E eu também. Disse Amanda.

Outro abraço, mais emoção.

Os preparativos correram rápidos e, em poucos meses, a data chegara.

No dia do casamento, tensão para todos os lados. Aquele nervosismo choroso, pais orgulhosos, mães de coração partido, tudo conforme manda o figurino.

Na cerimônia, Décio fez um discurso inspirado. Não houve na igreja quem conseguisse conter as lágrimas ouvindo ele falar da amizade de ambos, e da sua felicidade em saber que estava entregando o seu melhor amigo nas mãos daquela que ele escolhera para dividir a tortuosa caminhada da vida a dois. Mais do que isso, se fora ela a escolhida de Léo, era também a escolhida dele, pois teriam nele todo o apoio que a qualquer momento viessem a necessitar. Léo era mais do que um amigo, e a mulher que passasse a fazer parte da família dele, seria também família de Décio.

No juramento, provavelmente o mais bonito já visto em uma igreja católica, Décio quase levou Amanda aos prantos, e entre soluços, ela só teve forças para dizer, Sim!

Repetiu o lindo juramento, agora para Léo, que enquanto ouvia as palavras do amigo segurava as mãos trêmulas de Amanda, olhando fundo nos olhos da sua futura esposa lavados por lágrimas que descompunham a maquiagem que levara tantas horas para ser pintada em seu rosto perfeito.

Léo ouviu cada palavra, Amanda ouviu cada palavra, todos, a igreja inteira ouviu cada delicada palavra cuidadosamente escolhida por Décio, para ao final delas, quando o jovem padre disse, Você aceita Amanda como sua legítima esposa, para amá-la e respeitá-la, na saúde e na doença, na alegria e na tristeza até que a morte os separe; presenciarem Léo suspirar profundamente, passar uma das mãos na face de Amanda, tirar o lenço do bolso para tentar em vão conter as copiosas lágrimas de felicidade, e dizer, Não!

Naquele momento, por um segundo a igreja fora tomada por um silêncio de jazigo. Aos poucos, os burburinhos começavam a espocar nos bancos da capela, até que Décio, tão assustado quanto todos os presentes, perguntou instintivamente, COMO É QUE É?

Não! Repetiu Léo, Eu não quero ser teu marido, Amanda.

COMO É QUE É? Agora quem perguntou foi Amanda, já sem chorar, em estado de choque.

É isso mesmo, eu não quero casar contigo. Quando estava virado para a porta da igreja e vi você entrar vestida de branco, nesse vestido lindo, tive certeza de que era a coisa certa a fazer. Mas depois que nos viramos e vi o Décio, também de vestido branco, percebi que é ele que eu amo.

AQUILO É UMA BATINA, SEU FILHO DA PUTA! Disse Amanda, já sem muita delicadeza.

Batina também é vestido, retrucou Léo.

Todos, Léo, Amanda, os pais, amigos, a igreja inteira, todos se viraram para Décio, esperando que ele, na autoridade eclesiástica que ostentava naquele momento tão solene quanto tragicômico, dissesse alguma coisa que removesse da cabeça de Léo aquela inconseqüência descabida.

Décio estava assustado, olhou para todos com o mesmo pavor dos tempos de infância, quando ouviam histórias de assombrações ao redor da fogueira que o seu avô fazia no sítio.

Sentiu o mundo girar ao seu redor, ficou sem ar, achou que ia desmaiar. Mas não desmaiou.

Respirou fundo, olhou uma vez mais para a igreja atônita, dirigiu o seu olhar para Léo, o olhar sereno que só os homens de Deus possuem, abriu um sorriso largo e disse, Eu também te amo.

Léo caiu aos prantos de felicidade.

Décio colocou a mão sobre o seu ombro, e disse, Eu também te amo, mas sou apaixonado pela Amanda.

Nova consternação generalizada.

COMO É QUE É? Agora quem perguntou foi Léo.

Porra, Léo, disse Décio, naquela época, na faculdade, eu tinha te dito que estava gostando de uma menina, que achava que era diferente, de repente você me aparece com a Amanda. Era ela, cara! Era por ela que eu estava apaixonado! Quando vi vocês juntos, resolvi me tornar padre, foi um refúgio para o meu coração partido.

Então eram suas as cartas anônimas? Perguntou Amanda.

Claro, eram minhas!

Mas o Léo disse que eram dele!

Ah, você estava apaixonada pelo cara que te mandava as cartas, o idiota não se manifestou, eu só concluí o serviço.

Eu era o idiota.

Foi mal.

E nós? Perguntou Léo olhando para Décio.

E nós? Perguntou Décio olhando para Amanda.

Ainda dá tempo de largar essa batina?

Décio tirou a batina, atirou-a em cima do altar, pegou Amanda pelas mãos e saiu correndo pelo corredor da Igreja.

Léo ficou lá, parado, sem ação.

Aos poucos, os convidados foram saindo devagar, mais encabulados do que o próprio noivo apaixonado, confesso e largado. Quando se viu sozinho, na igreja praticamente vazia, Léo saiu caminhando devagar pelas ruas da pequena cidade gaúcha.

Naquela estranha noite de corações partidos, depois de beber em todos os bares que encontrou abertos pelo caminho, Léo ainda encontrou um pouco de refúgio na companhia da surpreendentemente longeva Gertrudes, que embora já estivesse mais pra lá do que pra cá, ainda dava no couro. Literalmente.

Décio terminou a faculdade de arquitetura, casou com Amanda e viveram felizes por muito tempo, mas não para sempre.

Quando se separaram, ela ficou com praticamente tudo que era dele, exceto uma pick-up Vitara, que ele fez questão de ficar para si, só por saber que ela adorava.

Léo pensou em virar padre, mas acabou passando o resto da vida sozinho.

3 comentários:

Shuzy disse...

Eu jurava que ia acabar num casal homoafetivo...

Me enganei... Pra variar, como SEMPRE!

Daca disse...

ah o amor rural...

Bruna Rafaella disse...

Oi Don...
essa história foi muito boa, nunca imaginei que ele ficaria com a vaca, muito bom!!
E eu não tinha percebido anteriormente que você tinha me dito no meu blogue que tem alguns livros, fiquei super feliz e estou torcendo pra que você encontre uma editora logo, lógico é difícil mais seus textos são geniais, tem cultura, adrenalina, humor, ódio eu consigo não parar de ler, viajo neles!! vou indicar pra todos os meus amigos, é sério...
Enfim espero que você tenha muita sorte ai, enquanto isso pode deixar que daqui não saio!

Beijos e obrigada pelas suas visitas também!!