terça-feira, 16 de novembro de 2010

Umazinha, rapidinha


Valeu pela carona, achei que depois de tudo você nunca mais ia querer olhar na minha cara.

Que é isso, já faz tanto tempo.

Eu sei, mas sei lá, achei que você ainda estava com ódio de mim.

Página virada, o que passou, passou. Além do mais, não poderia deixar você lá no ponto de ônibus parado, ainda mais com essa chuva toda. Te cuida, beijo.

Peraí, peraí.

Oi?

Você não quer subir, tomar um cafezinho?

Não misturemos as coisas, eu só ofereci uma carona, nada mais.

Eu sei, eu sei. É que o trânsito nesse horário já é um caos, com essa chuva então, está tudo parado. Suba, tome um cafezinho enquanto espera a chuva diminuir um pouco.

Melhor não, sabemos como isso tudo pode terminar.

Não, fique tranqüila. É como você mesma disse, página virada.

Sei não...

Que é isso, somos adultos, civilizados. Só um cafezinho, depois você volta para a sua vida e eu para a minha.

Começa no cafezinho, depois vem um vinhozinho, nós sabemos que tudo começa assim.

Um cafezinho, eu juro. Só um cafezinho.

Só um cafezinho mesmo?

Palavra, só um cafezinho. Claro, se você quiser um vinhozinho depois, eu recebi ontem mesmo uma caixa de um cabernet fantástico de uma amiga minha que está passando um tempo em Milão.

Não falei? Nem saí do carro e você já está me servindo um cabernet.

Cafezinho, só um cafezinho.

Tudo bem, mas é sério, hein?! Uma xícara de café, e vou embora.

Uma xícara, nada mais

O sofá sempre esteve ali?

Não, dei uma mudada nas coisas. Precisava mudar um pouco a cara desse apartamento, criar um clima novo aqui dentro. Duas colherinhas de açúcar?

Adoçante, três gotinhas, por favor.

O tempo fez bem para você.

Você parece mais tranqüilo.

Deve ser a idade, a gente acaba sempre dando uma sossegada.

Gostei da barba.

Mudar os móveis de lugar não foi mudança suficiente, mas como o tempo me trouxe um pouco mais de calma e em troca levou quase todo o meu cabelo, deixar a barba crescer foi a única maneira que encontrei de me renovar.

Ficou legal.

Obrigado. Mais café?

Só mais um pouquinho. Sua mãe está bem?

Sim, sim, está ótima. Estão todos bem. Ainda perguntam por você. Não acreditam que nos afastamos desse jeito.

É que eles não presenciaram as coisas que essas paredes assistiram.

Águas passadas.

Claro, águas passadas.

Quer comer alguma coisa, um queijinho, azeitonas, amendoim? Tenho pistache, sei que você gosta.

Nossa, ficou chique, hein?

Nada disso. Veio numa cesta de natal que eu ganhei lá na firma.

Não, obrigado, pistache não. É provolone?

Camembert.

Manda. É bom mesmo esse cabernet?

Sabia que você não ia resistir.

Só uma tacinha.

Duas. Uma pra mim, outra pra você.

Engraçadinho.

Um brinde?

Ao reencontro.

Aos velhos tempos.

Eles passaram.

Novos podem vir.

Não, nós sabemos como isso termina.

Nós sabemos como começa, como termina não temos como prever.

Claro que temos, nossos antecedentes nos condenam.

Mais vinho?

Só um pouquinho, metade, por favor.

Nós nos divertimos muito aqui.

Eu sei. Eu sempre me lembro das coisas boas.

Então, por que não nos darmos outra chance?

Por que eu também me lembro das coisas ruins.

Vamos focar somente nas boas.

Não dá certo, nós já tentamos muitas vezes, e sempre termina em agressão.

Podemos fazer diferente, vai exigir um pouco mais de esforço, mas estamos mais velhos, mais experientes, podemos fazer diferente desta vez.

Sabia que não devia ter subido.

Se lá no fundo você realmente não quisesse ter subido, não teria me oferecido carona. Vai dizer que não sente nada quando está aqui?

Claro que sinto. Por isso que não deveria ter subido.

Nunca rolou com outra pessoa a química que rolava com você.

Nós formávamos uma boa dupla.

Podemos ser de novo uma boa dupla. Podemos ser uma ótima dupla, é difícil tanta sintonia quanto a que a gente tinha.

Eu sei, também já tentei com outros parceiros, mas não é igual.

Então, vamos nos dar outra chance.

Melhor não. As coisas começam bem, depois vêm as brigas, as acusações, as ofensas. Não quero mais ser ofendida, não quero mais ofender.

Se não tentarmos, nunca saberemos se já superamos as brigas. Mais vinho?

Sim.

Vamos tentar?

Não. Melhor não.

Só mais uma vez. Vamos tentar sermos de novo aquela dupla de sintonia perfeita só mais uma vez.

Acho que não.

Então só mais umazinha.

O quê?

Umazinha, rapidinha, pelos velhos tempos.

Isso não vai acabar bem.

Claro que vai, você sabe que com outro nunca vai ser igual.

Pior que eu sei.

Então, pelos velhos tempos, só umazinha. Topa?

Rapidinha?

Se você quiser demorar, eu não me importo.

Mas é só umazinha, hein? Amanhã nada vai mudar, vamos fingir que nada disso aconteceu. Combinado?

Palavra, só umazinha e amanhã tudo volta a ser como era ontem.

Então tá bom, eu topo.


E assim, embora tivessem jurado um para o outro que jamais fariam aquilo novamente, mais uma vez viram o sol nascer jogando canastra a dinheiro.

9 comentários:

jean mafra em minúsculas disse...

boa. o final fez tudo ficar muito melhor.

Daca disse...

Bem boladommmm...e a palavra-chave é: cafézinho.

Bruna Rafaella disse...

Ler os seus textos me deixam em êxtase, quanta criatividade!
como sempre adorei!

Shuzy disse...

É sempre na última linha... Quando não nas últimas palavras, que... O inesperado acontece...!


E eu penso... errei de novo ¬¬

hsuahsuahushahsa

mundo da lu disse...

queria que vc conhecesse meu blog, adorei conhecer o seu...

http://mundo-da-lu.blogspot.com

China disse...

Hehehe
Bem criativo Dom.
Otimo.
Abraco.

Trév disse...

Ela se rendeu por culpa do Cabernet, certeza.
rsrs

Beijos!

Madý disse...

uma canastra real para bater, canastrão.

Casa de Mariah disse...

Tarde demais. Sou rápida no raciocínio. Na minha imaginação, quando chegou na ... "canastra a dinheiro"...já estava pelados.
Muito bom.