terça-feira, 30 de novembro de 2010

Abandonado


Quando você me deixou, naquele dia que você partiu sem dizer pra onde ia, quando voltava, se é que voltava, naquele dia eu tentei compor um samba. Um dos antigos.

Samba velho é bom pra essas coisas do amor mal acabado.

Tentei incorporar o Paulinho da Viola. Mas o desgraçado ainda tá vivo e, até onde eu sei, só se incorpora gente morta. E também é preciso ser médium para incorporar quem quer que seja. Pelo menos acreditar em vida após a morte, mas nem pra isso minha fé serve.

Não fiz o nosso samba. Até por que para fazê-lo, seria conveniente que eu soubesse tocar algum instrumento, e eu não sei.

Mas, também, foda-se, odeio samba. Ideia de merda, essa minha.

Compor um samba... Só pra minha cara mesmo...

Quando você me deixou, abri um livro velho de poesia para me distrair, um do Quintana. Tinha um poema que dizia que para atrair as borboletas bastava que se cuidasse do jardim, ou algo parecido.

Não sei muito bem o que o acaso quis me dizer com isso. Eu cuidei de você, você que nunca cuidou de mim.

Mas, mesmo assim, eu cuidei do nosso jardim.

Você não sabe, mas depois que você partiu, tivemos um jardim.

Aquele pedacinho de terra que tinha no fundo do quintal da nossa casinha alugada, aquele onde havia amontoado uma porrada de pneus velhos de outros moradores, um verdadeiro berçário da dengue, ali naquele tantinho de chão eu fiz um jardim. Bem bonitinho, até.

Plantei várias cores de Amor-Perfeito.

Irônico, não?

Não vieram as borboletas. Acho que não tem disso por aqui.

Mas surgiram vários passarinhos que me acordavam às seis da manhã.

Não podiam começar a cantar as dez, os filhos das putinhas?

Pensei em comprar uma espingarda de chumbinho para me vingar do meu sono interrompido por aqueles desgraçados daqueles filhos das putinhas. Mas não sei onde se compra uma dessas.

Concretei toda a porra do jardim e cortei a goiabeira que tinha no quintal. Só dava goiaba bichada mesmo. E da branca, eu gosto é da vermelha. Concretei ali também.

Em pouco tempo os filhos das putinhas desapareceram.

Acho que você teria gostado do nosso ex-jardim.

É provável que com o seu temperamento imprevisível, em algum momento você destruísse toda a porra do jardim. Mas, de início, acho que você teria gostado do nosso ex-jardim.

Você já me deixou outras vezes, mas nunca passou tanto tempo fora.

Tenho vontade de sumir também, quando imagino que posso nunca mais te ver.

Por que você faz isso comigo?

Eu fui bom pra você, sei que você sabe disso. Talvez, os meses que passamos juntos tenham sido os únicos em que eu tenha sido realmente uma pessoa boa, preocupado com algo além de mim.

Mas você me deixou, e já começo a duvidar que vá voltar.

É triste admitir, mas no fundo sei que você só ficou comigo por interesse. Você sabia que comigo, teria tudo do bom e do melhor. Ainda que faltasse algo para mim, jamais permitiria que faltasse algo a você.

Mas, mesmo assim, você me deixou.

Os meus amigos, que te conheceram e nunca te acharam grande coisa, não entendem essa minha tristeza. Riem de mim, quando digo que sofro pela tua ausência, pelo teu abandono.

Vou deixar essa carta lá naquele cantinho da casa que você adorava, numa esperança burra de que você volte e a encontre e, mais do que isso, a leia, entenda o que eu quero dizer, e com a mesma determinação que te esperei, você busque me encontrar.

Mas tenho que me mudar, o dono da casa pediu ela de volta. Vou ter que pagar uma indenização fodida por ter cortado a goiabeira e concretado o berçário da dengue.

Eu não devia te aceitar de volta, mas, caso você volte, não saberei te dizer não.

Não sei ainda onde vou morar, mas prometo que se você voltar, faço de novo um jardim para te entreter. Acho que você se divertiria com os passarinhos filhos das putinhas. Prometo tolerá-los, caso você volte para mim.

Fomos muito felizes nessa casa, mas te garanto que poderemos ser ainda mais em qualquer outro lugar, desde que estejamos juntos.

Chega a ser ridículo esse meu sofrimento, mas não consigo controlá-lo.

Eu, justo eu, que jamais me permiti sofrer por ninguém, agora estou aqui, desconsolado por você.

Pensei em espalhar aquela foto nossa, nós dois deitados no sofá, pelo bairro todo, mas desisti por saber que você deve estar por aí, se divertindo com um outro qualquer enquanto eu fico criando minhas lamúrias como se fossem bebês cujas mamadeiras abasteço com meu velho whisky vagabundo.

Se duvidar, você até já tem filhos. Mas eu te aceitaria de volta mesmo assim.

Criaria os teus filhos como se fossem meus também. Seríamos uma família.

Agora eu tenho que ir. Vou curtir a minha fossa em outro lugar.

Se você quiser voltar, vou estar te esperando de braços abertos.

Não devia, você não merece. Mas vou estar te esperando de braços abertos.

Que merda...

Eu que nunca sofri por mulher nenhuma, agora estou aqui chorando por ter sido abandonado por uma cadela vira-latas.

Que merda...

4 comentários:

Shuzy disse...

Dessa vez, estupefata!

Bruna Rafaella disse...

e eu?
fiuei mais que estupefata com
o final, eu não desconfiei em nenhum momento, é disso que eu gosto, entretenimento total!
na verdade mais que isso!!!
filhas das putinhas foi foda...

luiza disse...

maravilhoso!

Po, minha irmã tá te seguindo rsrs

Casa de Mariah disse...

A realidade (e espero do fundo da alma que não seja real) é infinitivamente mais engraçada que qualquer ficção.
PS. isso vale também para as tragédias.

vim cair aqui pelos motivos mais errados ... mas confesso que estou me divertindo.