segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Ne me quitte pas


Havia chego naquele ponto em que o amor, que nos tempos primeiros lhe parecera uma fortuna, já não passava de uma ninharia que dia um dava ao outro, dia o outro dava para o um. E, no caso dele, muito a contragosto.

Queria acreditar que seria possível fazerem uma massagem cardíaca recíproca em seus peitos, tentando reanimar o já quase ex-amor. Contudo, não suportava mais tocá-la.

Ele pensava, refletia tentando descobrir em que ponto as declarações efusivas e extensas de amor se transformam em meias palavras ditas de má-vontade. O amor acaba quando o eu também se torna mais freqüente do que o eu te amo, divagava para si mesmo.

Amor acabado é como carne de gente morta, quando insepulto, apodrece e fede, pensava sozinho. Isso por que o cheiro da pele dela, que antes lhe enlouquecia, agora lhe causava desconforto.

E até o filho que tantas vezes sonharam ter, agora dava graças a deus por nunca ter nascido. Detestaria ter que passar os finais de semana com uma criança com o temperamento igual ao dela.

Ele sempre imaginou que se um dia viessem a se separar, poderiam ser amigos, bons amigos até, já que era sincera a admiração que sentiam um pelo outro. Mas até o que antes parecia virtude, agora era enfadonho.

Todas as noites planejava o dia seguinte, colocaria algumas roupas na mochila e iria embora, sem dizer nada, como essas histórias de cafajestes que abandonam a família sem dar satisfação. Era bom o apartamento que haviam comprado. Ótimo, na verdade, mas não se importaria em deixá-lo para ela, se fosse esse o preço para que ela não lhe enchesse o saco nunca mais. Que ficasse com o carro também, se fosse esse o preço.

Mas nunca colocava seus milhares de planos de fuga em prática, pois, apesar de praticamente detestá-la, detestava também a ideia de fazê-la sofrer. Não queria mais aquela companhia, mas não queria carregar a culpa de ter destruído a possibilidade que ela tinha de ser feliz.

Um dia tomou coragem. Antes, parou no bar para tomar um trago, indispensável para o ponto final que daria a história que haviam construído. Dizem que o álcool nos enche de afeto e coragem.

Em função da parada no boteco, chegou mais tarde do que o normal.

Ela não perguntou por que.

Realmente acabou, ele pensou, ela já não se interessa sequer em saber por onde andei. Mas vai sofrer, e isso eu não gostaria que acontecesse. Mas eu estou sofrendo, que se foda, que sofra ela, então.

Ela estava lavando as panelas que havia usado para fazer o jantar que ele não comeu. Tinha feito carne de panela com batatas, ele adorava carne de panela com batatas. Dizia até que a dela era melhor do que a da mãe, coisa rara de se ouvir um homem dizer.

Ele não disse boa noite quando entrou, e nem lhe deu o burocrático beijo de todos os dias quando chegava do trabalho.

Foi até a geladeira, encheu um copo de água, tomou tudo de um só gole.

Olhou para ela de costas, lavando panelas, lembrou do dia em que quando chegou do trabalho e ela estava ali, naquela mesma pia, fingindo que lavava louças só para que ele entrasse em casa e a visse de costas, vestindo apenas avental e um par de scarpin vermelho.

Aquela noite ela estava incrível, ele pensou.

Agora ela usava uma calça jeans, uma blusa larga e os cabelos soltos e molhados, indicando que havia recém saído do banho.

Eu vou embora, ele pensou em falar. E lembrou do dia em que haviam comprado a pedra de mármore para a cozinha e fizeram amor sobre ela, para inaugurá-la. E lembrou-se também que haviam feito amor em cada canto do apartamento, para que todos fossem devidamente batizados.

Levantou-se e foi até o banheiro lavar o rosto, precisava de um pouco de água fria na cara para poder olhá-la de frente e dizer que partiria. No banheiro, lembrou do dia em que havia tomado um porre e ela lhe segurara a testa enquanto ele se ajoelhava diante do vaso, lhe preparara um chá de boldo e uma compressa fria para colocar sobre a cabeça que girava sob o efeito do álcool em excesso.

Esse vai ser o quarto do nosso bebê, lembrou dela falando quando compraram o apartamento, enquanto olhava para o cômodo que na falta de uma criança, tornara-se escritório. Em cima da mesa, ao lado do computador, um porta retrato com a foto de ambos na praia, o sorriso dela estava tão lindo naquela foto... Na verdade, ainda era lindo, ele que já não se dava o trabalho de contemplá-lo.

Ela ainda estava lavando louças, e ele ainda não havia falado com ela.
Foi até a sala e olhou para o sofá de péssimo gosto que ela aceitara comprar, só para que tivesse as cores do time dele. Ela fez tantas concessões por mim, ele pensou. Que concessão eu já fiz por ela? Perguntou para si mesmo sem encontrar resposta.

Na parede da sala, viu a menção honrosa que havia recebido da empresa onde trabalhava, pelo excelente desempenho que tivera dois anos atrás, e que ela, toda orgulhosa do sucesso do marido, mandara emoldurar e pendurara na parede para que ele se sentisse todos os dias homenageado quando entrasse em casa, e soubesse da admiração que ela tinha pelo seu talento e capacidade profissional. Que homenagem eu já fiz pra ela? Perguntou para si mesmo sem encontrar resposta.

No criado mudo ao lado da cama de casal, viu a sua fotografia com a perna engessada, quando caíra de moto fazendo uma trilha num dia de chuva, e ela ao seu lado servindo-lhe sopinha na boca. Lembrou de como ela cuidou dele com o máximo carinho, paparicando-o como se fosse o filho caçula, mas talvez com mais amor, pois ainda estava concentrado dentro dela todo o amor que um dia pretendia dividir em frações, esta parte é sua, esta é do primeiro filho, esta do segundo, esta do terceiro, o caçulinha. Quando foi que eu cuidei dela? Perguntou para si mesmo sem encontrar resposta.

Quando foi a última vez que dei um pouquinho de carinho pra ela? Perguntou para si mesmo sem conseguir se lembrar.

Foi então que percebeu o quanto ainda a amava. Foi então que um maremoto de vontades de lhe fazer carinho, de lhe oferecer cuidado, de lhe fazer tantas concessões quantas fossem necessárias, de lhe homenagear vinte e quatro horas por dia inundara-o.

Foi então que percebeu o quão afortunado era por estar casado com a mulher da sua vida, e sequer tinha se dado conta disso.

Voltou à cozinha, ela ainda lavava as panelas.

O que é isso? Perguntou olhando para duas malas que estavam no chão, ao lado da pia e ele não tinha percebido quando fora tomar água, logo que chegara.

Eu vou embora, ela respondeu.

Por quê?

Por que não faz mais sentido, acabou.

Não, não acabou. Podemos fazer dar certo. Já demos certo tantas vezes, podemos dar certo de novo.

Não mais. Se você tiver fome, tem comida na geladeira. Pode ficar com o apartamento, com o carro. Pelo menos não tivemos um filho.

Assim? Acabou e pronto? Sem uma conversa, sem uma tentativa?

Talvez você não tenha percebido, mas eu tentei.

E foi embora.

E nunca mais voltou.

Ele ficou desesperado, nada mais fazia sentido, sua vida tornara-se um caos, remédios tomaram o lugar do cafuné que antes o fazia dormir. Era tão feliz ao lado dela, que jamais havia se preocupado em saber se também a fazia feliz. Sofria por não tê-la ao seu lado, sofria por imaginar que agora um outro afortunado deveria estar sendo feliz ao lado dela, e que retribuía a altura, dando muito mais do que a ninharia que sempre oferecera a ela.

Envelheceram distantes e sem terem se tornado amigos, sem trocarem notícias, sem saberem o que havia acontecido ao outro.

Ele teve um ou dois relacionamentos, mas a comparação com a vida que tivera ao lado dela tornava inviável qualquer envolvimento mais profundo.

Imaginava que ela tinha sido feliz longe dele, mas não fora.

Na verdade, também envelhecera triste e cheia de saudade da época em que podia cuidar dele, que era a coisa que mais lhe dava prazer.

Mas por ser cheia do tipo de amor que homem nenhum é capaz de compreender, mas do qual as mulheres entendem muito bem, chegara a conclusão que não o fazia feliz, tamanha a indiferença dele para cada pequeno cuidado seu. E o conhecia muito bem, o bastante para saber que ele, como a maior parte dos homens, não teria coragem para romper um casamento que já não o satisfazia e, por mais que soubesse que com aquela atitude drástica passaria o resto da vida lamentando não ter tido um filho com o temperamento dele, com os olhos dele, com o sorriso dele, o libertaria para que pudesse ser feliz. Sofreria por ele, por amor a ele.

E eles viveram infelizes para sempre.

8 comentários:

Shuzy disse...

É... A vida, mais que voltas, dá reviravoltas...

(*=

luiza disse...

perfeito.

Anônimo disse...

Nesta situação a pior besteira foi a dela de não ter saido da relação antes, quando a outra pessoa NÃO ama, não adianta forçar a barra achando que um dia vai tê-la por inteiro p/ você, e isso pode ocorrer com ambos os sexos. ela podia ter saído antes e não esperado a relação chegar ao ponto que chegou, a dedicação total de um e o desprezo total do outro, que acaba se acomodando pq é bom ter alguém a nos bajular. mas, enfim isso dependo muito da vontade de cada um de querer realmente feliz de verdade ou fazer que está tudo bem.
Bom texto e que ele fique de alerta para todos que se entregam ao amor, sem saber se realmente é correspondido, arriscar é bom mas, deve-se ter cautela.
Valeu

Anônimo disse...

* ser feliz de verdade ou fazer que está tudo bem.

Anônimo disse...

Isso chama-se comodidade. A mulher quando ama e quer ficar com seu amor faz tenta de tudo para mostrar o quanto é especial, mas cansa.

Parabéns por retratar tão bem o cotidiano da maioria dos casais.

Anônimo disse...

deve haver a chamada relação de troca e não somente servir, já passamos dos tempos de ser submisso (a). e não penso q a maioria doa casais vivem assim, penso q existem muitos casais felizes, como existem os infelizes ñ existe uma regra.

Bruna Rafaella disse...

É melhor felizes longe um do outro, do que acabar tendo uma merda de vida, com filhos pra criar...
São poucas mulheres que cedem á relação, muitas querem viver feliz, mesmo tendo um casamento filho da puta, mais cada um tem a consequência que merece ter, temos a liberdade, isso basta.

ps- não estou falando da escravidão, hahahaha.

Débora disse...

Ei Don, adorei o texto. Estou passando por uma situação semelhante. Me ajudou a ver melhor as coisas. É, de certa forma, confortante saber que não sou única. Não conhecia seu blog mas agora vou começar a acompanhá-lo.