segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

A trilogia da zona - Capítulo 1: Um copo cheio de coragem


Espero que você não se importe, mas eu te amo.

Não, não ria. Por favor, não ria de mim. É verdade, eu te amo.

Sei que sou chato e você não gosta de homens que usam bigode, mas raspá-lo seria o mesmo que solicitar em juízo a autorização para abolir do meu nome composto o sobrenome que herdei de meu pai. As três únicas heranças que me deu, diga-se de passagem, o nome composto, o sobrenome e o bigode ancestral.

Não tenho por que abrir mão do meu sobrenome, o mundo não será um lugar melhor, tampouco pior, para se viver com um Silva a mais ou a menos. Somos tantos, que sequer fazemos diferença. Criar uma estatística para saber quantos somos, seria o mesmo que estabelecer a quantidade de grãos de arroz que há num saquinho de um quilo. Não importa, é só um quilo. Um grão a menos, outro a mais, permanecerá sendo um quilo.

E como você não há de notar em mim, mesmo que raspe o bigode, que ele fique, então.

Além do quê, se pagar, sei que você dirá que meu bigode é lindo, que fico másculo com ele, que ele me confere uma austeridade serena, coisa de homem bem sucedido. Mas sei também que será mentira. Pagando, você deverá até dizer que sou bom de cama. Mas não vou pagar pelo seu amor, ainda que te ame. E também sei que não sou bom de cama, mas sou ótimo com números. Poderia ajudar você com a declaração do imposto de renda, embora acredite que o que você recebe pelos seus préstimos não seja registrado em carteira profissional.

Faz tempo que venho aqui, muito antes de você aparecer. Antes mesmo de você ter idade para trabalhar num ofício destes, se é que agora você já tem.

Não venho em busca de mulheres, embora goste muito de vê-las tirando a roupa naquele palquinho sem vergonha com paredes espelhadas e um cano de ferro enferrujado no centro. Quando comecei a freqüentar esta budega, era novo o cano de ferro, e percebi que ele foi enferrujando na exata proporção em que meu cabelo foi rareando.

Gosto muito daqui, pois aqui ninguém faz tipo. Os homens que vem aqui não estão interessados em se fazerem notar, pelo contrário, quanto mais despercebidos passarem aos outros, tão melhor será.

Eu também não gosto de ser notado, seja fora daqui, muito menos aqui.

Queria ter conhecido você na saída da missa, talvez acompanhada pelos seus pais, eles haveriam de gostar de mim. Embora não seja um homem atraente, possuo alguma respeitabilidade, sou razoavelmente bem sucedido na minha profissão de números e cálculos, de certo um bom modelo de genro para pais que desejam às suas filhas algum sossego e estabilidade emocional e financeira.

Todavia, pior do que ter conhecido você aqui, seria não ter lhe conhecido.

Vidinha filha-da-puta, esta minha. Não costumo recorrer a palavrões, mas não encontro expressão mais adequada para minha biografia. E, por favor, não pense que esta expressão chula seja alguma referência irônica a sua indispensável profissão. Se o mundo já está a merda que está contando com as suas colegas de profissão para aliviar o insuportável nível de estresse nosso de cada dia, não quero nem imaginar como estaria sem você e suas colegas.

Sei que essa minha conversa não deverá surtir qualquer efeito nos seus sentimentos, até por que duvido que alguma puta leve a sério o que qualquer homem diga. Vocês devem ouvir tantas coisas aqui, tantas histórias, que vocês, mais do que qualquer outra mulher do mundo, podem dizer de boca cheia que os homens são sim, todos iguais. Todos um bando de merdas, todos um bando de bostas que deixam suas famílias em casa e vem aqui se deitar com você e suas colegas, dizendo nos seus lares que ficaram trabalhando até mais tarde.

Mas eu não sou casado. Poderia ser, se você quisesse. Mas não sou. Poderia ser com você, ou até mesmo com outra, caso isso lhe agradasse.

Não vá ainda, por favor, eu lhe pago outra bebida. Vocês ganham comissão por isso, não? Então, não vou pagar para me deitar com você, mas lhe pago outra bebida para que você fique aqui mais um pouco. Faz tanto tempo que tento encontrar coragem para falar com você, venho aqui quase toda semana, só na última do mês que geralmente não venho, pois o dinheiro já me começa a faltar. Mas venho sempre que posso. Venho sempre nos dias que sei que você estará aqui. Peguei sua escala com aquela garçonete machorra que vive de papinho com você. Morro de inveja dela pela intimidade que ela tem com você, tanto quanto imagino que ela deva invejar o meu bigode. Ela que me disse que você não gosta de homens de bigode.

Só tomei coragem para conversar com você, pois antes de chegar aqui, tomei quase uma garrafa inteira de whisky sozinho. Já cheguei bem bêbado, e antes de começar a conversar com você, ainda tomei as quatro cervejas que a casa oferece de cortesia aos clientes mais assíduos. Pois é, mesmo que você jamais tenha notado minha presença aqui, sou um deles.

Não era tão assíduo assim, só me tornei depois que você apareceu. Que bom que você apareceu. É a primeira vez na minha vida que espero ansiosamente por algo, as noites de quinta feira, no caso. Antes, estar no trabalho era mais interessante do que voltar pra casa.
Teve uma vez que eu quase tomei coragem para falar com você, comentei com a garçonete machorra que falaria com você, mas naquele dia você faltou. Depois, no fim da noite, a garçonete machorra me disse que você tinha passado mal, que precisou ir para o hospital. Pensei perguntar em que hospital você estava, mandar flores, sei lá. Mas no fim, achei melhor ir pra casa. Foi nesse dia que ela, a garçonete, me disse que seu nome verdadeiro é Michelle, e não Samantha. Fui dormir ouvindo a sétima do Rubber Soul no repeat, embora prefira os Stones. Ter esperado a semana inteira por aquela quinta feira e, no fim das contas, não ver você, me deu uma sensação tão grande de vazio... Dormi triste, aquele dia.

Sei que você só tira a sua roupa no palco se alguém lhe pagar, você não faz parte do plantel de strippers habituais da casa. Sua amiga machorra que me contou.

Mas também já assisti você dançando nua várias vezes naquele palquinho do cano enferrujado. Tenho medo que você pegue tétano. Você já tomou a anti-tetânica? Seria bom tomar.

Sei que quando vem aquela turma de playboyzinhos, eles sempre pagam para que você tire sua roupa no palquinho e, mais do que isso, o carinha que aparentemente tem mais dinheiro do que os outros, sempre lhe leva para um dos quartos deste pulgueiro após o seu showzinho pré-pago, como se você fosse o troféu dele. Ninguém percebe, mas sempre que eu vejo você saindo com ele, eu abaixo a cabeça e contenho minha amargura tentando evitar o choro. Vez ou outra, me escapam uma ou duas lágrimas. Mas, como já disse, aqui ninguém nota em ninguém, só eu noto em você. Noto em você de verdade, não no seu corpo, embora ele seja lindo e também o note.

Sei que daqui a pouco os playboyzinhos devem chegar, hoje é o dia deles virem aqui. Mas, se você aceitar a minha proposta, hoje eu que irei lhe pagar. Mas não pelo seu show, e sim para que hoje, apenas hoje, você não tire a sua roupa e, mais do que isso, pago o dobro do que ele habitualmente lhe oferece para que hoje você não se deite com ele, para que hoje você durma sozinha.

Desculpe se lhe importuno com esta conversa fiada, mas a bebedeira me encheu de coragem, e sei que não terei essa coragem noutro dia.

Enfim, como disse, espero que você não se importe, mas eu realmente te amo.

Eu não me importo.

Não?

Não.

E estou realmente comovida com tudo o que você me disse. Acho que é a primeira vez que alguém repara em mim, e não na minha bunda bronzeada. Estou muito comovida mesmo, de verdade.

Não vou fazer o show, não vou me deitar com ele, e você não precisa me pagar nada por isso. Se eu puder ficar aqui lhe fazendo companhia a noite inteira, já estará mais do que bem pago. Só hoje, me deixe fazer companhia para você. Me pague as bebidas que eu beber durante a noite, e lhe asseguro que não terá showzinho e que dormirei sozinha, embora hoje, quase queira dormir com você. De graça.

Gostei muito de ouvir você dizer que me ama, como disse, estou comovida com a sinceridade que suas palavras parecem ter, mas, para que possamos passar essa noite bebendo juntos, fazendo um companhia para o outro, também preciso ser sincera, você precisa saber de algo muito importante sobre mim.

6 comentários:

mundo da lu disse...

ah Don, que aconteceu? vc esqueceu-se do final? assim é sacanagem!! tava tão bom!

Don Mattos disse...

Olá Lu, eu não esqueci do final não. É que este é um texto em três atos, uma trilogia. Este aqui é o primeiro, amanhã vem o segundo, e sexta o terceiro, aí sim virá o final da história.

Bruna Rafaella disse...

Oi David...
que prazer imenso te ver no meu pequenino blogue...
quem disse que eu sumi?
vou te contar o que aconteceu e depois comentar sobre a 1° parte da sua trilogia ok?!

foi assim:

Não tenho computador em casa, e entro no blog diariamente devido ao meu trabalho de segunda aos sabádos, folguei segunda e terça nem entrei, ontem tinha muito trabalho aqui, nem deu para ler, porque gosto de ler com calma e atenção, gosto dos mínimos detalhes e de sentir o sabor do texto, minha imaginação vai longe, e eu não queria ler esse maravilhoso texto correndo, com pressa, odeio isso. E desde o começo de janeiro foi assim, não pára, mais eu entrei no meu blogue agora pouco e já fui direto no seu porque vi as atualizações né? eu precisava ler, ansiava por isso, tirei meu descanso para ler.

sobre o texto:

Você já sabe dos meus elogios á você,já sou sua fã de carteirinha, e pode sim ficar mal-acostumado porquê eu não saio daqui por nada!!
Eu viajei, entrei na história, a imagem na minha cabeça, ainda não li a 2° parte, estou curiosa, percebi que tinha continuação, adorei...
Vou deixar para ler na minha última pausa, não há o que dizer por completo, mais você sabe que amo seus textos, e que quero seu livros o quanto antes!!!

....


eu volto!

jean mafra em minúsculas disse...

david, querido,
não achei verossímel ele ouvir beatles... porque não poderia ser odair josé?!? roberto carlos?!? marcio greyck?!? hã?!? hein?!?

abraço.

Don Mattos disse...

Jean, por três motivos:

1 - por que achei que ouvir "Eu vou tirar você desse lugar", seria escrachado demais.

2 - por que meu pai tem a idade dele, e meu pai gosta especificamente desta fase dos Beatles, a transição entre o começo - que os mais velhos normalmente gostam; e o final - que os mais cults normalmente idolatram.

3 - Por que estava ouvindo essa música quando escrevi o texto.

Don Mattos disse...

Mas também pensei em chamá-la Roxanne.