quarta-feira, 16 de março de 2011

O Samurai


Igual a um amputado que sente coceiras no membro que já não tem, ao chegar, sua alma ainda sentia as dores do acidente que despedaçara seu corpo. Ainda estava confuso, mas já imaginando do que se tratava a cena armada ao seu redor.

Sente-se ali, disse a voz grave que vinha do centro da cena armada.

Me dá um cigarro, respondeu a alma, girando o ombro esquerdo pra trás, tentando aliviar a dor que não se desprendia.

Aqui não se fuma.

Ouvi dizer. Não se trepa também, né? Vidinha de merda, essa eterna.

Sugiro um pouco mais de cuidado na escolha das palavras, esse não é exatamente um vocabulário adequado para quem está prestes a ser julgado.

A alma fez o mesmo esforço que o corpo fazia há minutos atrás para abrir os pequenos olhos puxados que mostravam-lhe as coisas do mundo para fitar os olhos da voz grave, e olhando-os, deu um sorriso de desdém.

Não é prudente me olhar, e você sabe disso.

Vai fazer o quê? Me matar? Já estou morto. Você não sabe tudo? Deve saber disso também. Talvez não seja prudente para você, me olhar com esse ar de superioridade. Sou – ou fui – oriental, os orientais são bons nas artes marciais e você sabe disso.

Eu sei de tudo.

Sabe porra nenhuma.

Seu caso só vai se agravando com essa sua atitude.

Minhas atitudes não são nada perto das suas.

O medo deste momento é mais comum, mas a raiva não chega a ser uma coisa rara. Apesar de você saber, ira é pecado.

Não se trata de raiva, ira ou seja lá o que for. Não estou revoltado. Na verdade, eu queria isso há mais tempo. Você sabe que eu já tentei me matar, queria ter vindo antes te encarar de frente, só para você saber que pelo menos algum dos idiotas lá de baixo não tem medo de você. Quem você pensa que é para julgar os outros?

Eu sou o que tudo criou.

O que você criou é um monte de merda. Você criou um monte de gente ruim que vive num mundo mal acabado e que está cagando e andando para quem está ao seu lado. O que você criou é a sua imagem e semelhança.

Você foi um péssimo pai. Poderia ter ajudado o seu filho quando ele passou por necessidade, tinha condições para isso. Ele só queria um pouco de dinheiro para dar entrada num apartamento de dois quartos e poder ter um lar para criar um filho com a sua esposa. Você tinha esse dinheiro sobrando, não deu por que não quis. Avareza é pecado.

Mas não matei nenhum dos meus filhos. E jamais os expulsaria de casa por terem pego uma maçã sem me pedir.

Você foi um péssimo marido.

Mas me casei e, algumas vezes, a fiz feliz. Muito feliz. Você não sabe tudo? Deve saber disso também.

Você traiu a sua mulher e, mais do que isso, contava para todos os seus amigos suas aventuras amorosas como se isso fosse merecedor de crédito, de louvores. Orgulho é pecado.

Mas nunca engravidei a mulher dos outros para depois escrever um livro sobre isso, dizendo que esse livro é o guia da moral e dos bons costumes. Não deixaria meu filho para que o marido corno o criasse. Pior, se tivesse feito isso, quando aparecesse seria para pagar pensão, não para crucificá-lo.

E não foi uma vez só que você a traiu, você era promíscuo, sujo. Luxúria é pecado.

Sujo? Fico admirado de esta sua túnica ser tão branquinha. Deve ser ótimo o alvejante que se usa por aqui. Tanta carnificina e nem uma gotinha de sangue nessa túnica. Você diz isso por que, até onde se sabe, só comeu uma virgenzinha de dezesseis anos. Você deve ser broxa, qualquer um fica de pau duro com uma menina de dezesseis anos. Quero ver ficar a vida inteira, mais de trinta anos do lado da mesma mulher e ser fiel a ela.

Você bebia demais. Gula é pecado.

E isso que eu não sabia multiplicar o vinho. Imagina se soubesse...

Você mentiu para seu melhor amigo, para quem mais confiava em você. Você corrompeu a mulher dele. Você roubou a TV à cabo dele. Você arranhou a lataria do carro importado dele. Inveja é pecado.

Não se trata de corromper a mulher dele. Acontece que nem todo japonês tem pau pequeno. Você não sabe tudo? Deve saber disso também. Mas ele tinha, eu não. A mulher dele merecia um pouco de felicidade. Uma gozadinha na vida, que fosse. Mas foram mais. Você não sabe tudo? Deve saber disso também. Mas, se tratando de confiança, nunca pedi para que ele matasse o seu filho por mim.

Você poderia ter sido demitido por desídia, nunca fez seu trabalho direito, sempre prorrogando prazos, comprando atestados para ficar em casa, inventando mortes na família para não precisar ir trabalhar. Preguiça é pecado.

Não me parece uma acusação válida vinda de quem trabalhou seis dias e passou o resto da eternidade coçando o saco.

Você está condenado, vai para o inferno.

Foda-se. Só não te mando para o inferno também, para não precisar te encontrar por lá.

Você vai arder no fogo, no enxofre.

Não deve ser pior do que não saber de onde tirar dinheiro para pagar o financiamento da casa, a fatura do cartão de crédito, escolher entre atrasar o telefone ou a luz, aguentar um imbecil que sabe um terço do que você sabe, e ganha quatro vezes mais do que você.

Você não merece a minha bondade, o meu perdão.

Já tive dose suficiente de coisas vindas de ti, não quero mais nada. Mas, te aviso, não sou só eu que se deu conta da sua farsa. De onde eu vim, a gente costuma estar um passo a frente do resto do mundo, e não digo isso só na tecnologia, mas no raciocínio de um modo geral, na percepção das coisas ao nosso redor. Posso até ter sido o primeiro, mas não serei o último a te confrontar, a confrontar a fraqueza dos teus argumentos. Na minha terra somos todos samurais, preferimos ser condenados com honra, do que viver sem ela.

Levem-no pra fora, levem-no pra baixo. Agora!

A alma, que ainda sentia as dores do acidente de carro, desceu ao inferno gargalhando por saber que em pouco tempo outros mais o confrontariam.

Preocupado com a possibilidade de ver ruir em ideias humanas todo o trabalho que tivera em camuflar suas malvadezas divinas sob a égide de pecados superficiais, no dia seguinte, deus deu ordens expressas para que seu exército de arcanjos sanguinários tomassem as providências necessárias para que ninguém mais além das fronteiras onde vivia aquele que o afrontara, alimentasse pensamentos iguais aos dele. E foi tão repentina a ação, que mesmo preparados, só conseguiram fazer soar o alarme um minuto antes da tragédia. Insuficiente.

E do alto do seu trono iluminado e branco, fez que um terremoto de proporções apocalípticas, seguido por uma onda gigante, engolisse todo o Japão.

3 comentários:

Daca disse...

Porraz... Estou aprendendo a chegar até o fim. Parabéns, cara! Esse foi foda.

Anônimo disse...

adoro vc.


luiza

Bruna Rafaella disse...

Não gostei.

=/