terça-feira, 16 de agosto de 2011

Dos males o menor


Nervosa, fazia perguntas em seqüência para a autoridade do outro lado da linha do telefone. Teve trabalho para acomodar o fone no gancho. Suava como se fosse janeiro, mas era agosto e o ar que entrava pela fresta da janela fechada era gelado. Janela fechada, mas desalinhada desde sempre pela construção mal feita, as aberturas todas fora de esquadro e cheias de pequenas frestas que permitiam aos ares da rua o livre acesso no recinto, mesmo quando não eram bem vindos por ela ou pelo marido, com quem financiara em muitas décadas a aquisição daquela casa mal acabada. No princípio ficou nervosa, muito nervosa. Além do suor, as mãos tremiam muito. Mas, depois, ainda antes de desligar o telefone, respirou fundo e ficou aliviada, dos males o menor, pelo menos isso.

Algumas horas antes dela desligar o telefone, ele desligou o computador, finalizou com pressa as últimas coisas para poder ir atrás do resto de sábado que seu horário de meio expediente lhe concedia aos finais de semana. Fechou a grade, um cadeado, outro, mais outro, depois a porta, tranca o pino da parte de baixo, o pino da parte de cima, chave tetra aqui, chave tetra ali, girou três vezes a chave central. Esqueceu de ligar o alarme. Volta tudo, chave central, tetra, pinos, cadeados, liga o alarme, cadeados, pinos, tetras, chave central. A irmã ligou desmarcando o almoço que fariam naquela praia lá longe, ostras e iscas de peixe, uma caipirinha para cada um compradas em um site de compra coletiva. A caipirinha não seria problema, mas não daria conta de tanta comida, melhor deixar para outro dia. Ligou para um amigo, quem sabe ele quisesse sair para ater um papo, não estava afim de ir direto pra casa. O amigo dormia e não atendeu. Convidou um dos colegas de trabalho que ainda estava por lá para tomarem alguma coisa no boteco ali da frente. O colega não podia, a esposa estava esperando com uns parentes em casa para que ele acendesse o carvão e começasse de uma vez a assar os dois quilos de alcatra e os coraçõezinhos comprados no dia anterior. Acenou para o outro colega que já manobrava o carro, repetiu o convite, teve repetida a recusa. Não tinha almoço algum marcado, o segundo colega, só estava com sono, bebera mais do que devia na noite passada e a ressaca estava pesada, ia pra casa tomar um copo de coca gelada e dormir pra ver se a cabeça parava de latejar. Foi sozinho ao boteco. Tomou uma Brahma, litrão. Tomou outra. Pediu a terceira. Um Free vermelho maço, Só azul, Box, Serve. Fumou um, dois, três, pediu a quarta garrafa, fumou quatro, cinco, seis, pediu a quinta, pediu um pacote de salgadinho, fumou sete, oito, nove, dez, pediu a sexta, fumou onze, doze, foi ao banheiro, pediu a sétima, outro pacote de salgadinho, fumou treze, quatorze, pediu a saideira, levantou, o mundo girava, se apoiou na mesa amarela de plástico, não conseguiu acender o décimo quinto, o mundo girava. Respirou fundo, foi ao banheiro de novo, jogou a água gelada da torneira na cara, olhou-se no espelho, tentou afastar a tontura com uns tapas no rosto, o mundo girava. Saiu do banheiro com passos lentos. Estava frio, mas o sol brilhava exagerado, levou uma das mãos acima dos olhos, fazendo para as vistas um toldo de pele e osso, e sorriu vendo ela do outro lado da rua. Como ela é linda, pensou, perfeita, pensou, tudo o que eu sempre quis, pensou, que coisa mais maravilhosa, pensou. Sabia que não seria prudente sair com ela naquele estado, mas sentia-se seguro com ela, não tinha como dar errado. Não com ela, tão linda, tão perfeita. Caminhou em direção à ela, tão linda, tão perfeita, com seus passos cheios de labirintite provocada pela cerveja. Apoiou-se na muretinha, tão linda ela, tão perfeita ela, sorriu de novo. Não devia sair com ela naquele estado, mas não resistiu, como se no duelo dos desenhos animados entre o diabinho acima do ombro esquerdo com o anjinho acima do ombro direito, o primeiro saísse ganhando. Prudente não era, mas o dia estava lindo, o céu azul e sem nuvens, o sol exibido vestindo sua melhor roupa amarela, arzinho gelado, tudo perfeito para estar com ela. Prudente não era, mas iria mesmo assim, tão linda ela, tão perfeita.

Depois, quando a esposa atendeu o telefonema que alguém do outro lado da linha lhe dizia que o marido havia sofrido um acidente nas proximidades de um bar, a primeira coisa que ela perguntou foi se tinha caído da Sportaster Iron 883 que compraram com tanto esforço, abdicando de um carro popular zero quilômetro, para que o marido pudesse, enfim, realizar seu maior sonho de consumo e poder desfilar nos dias de céu azul em cima de uma Harley Davidson. Ficou preocupada, acidentes de moto são quase que invariavelmente graves, os estragos costumam ser grandes. Mas a pessoa do outro lado da linha, um policial ou bombeiro, alguma autoridade militar acostumada a dividir seu expediente de trabalho entre assaltos, incêndios e acidentes de trânsito, disse que não, na verdade ele fora atropelado no exato momento em que atravessava a rua para subir na Harley Davidson. Talvez pela bebida, ou só descuido mesmo, fato é que não olhou para os lados e uma Kombi acertou-lhe em cheio. Como ele está?, perguntou nervosa, Infelizmente as notícias não são boas, respondeu a autoridade do outro lado da linha, Como ele está?, repetiu a pergunta ainda com mais nervosismo na voz, Ele não suportou o choque, infelizmente, quando chegamos já não havia mais o que ser feito. Ela começou a suar, a despeito do frio que o ar gelado que entrava pela fresta da janela fora de esquadro empurrava casa adentro. Ela ficou em silêncio, A senhora está bem?, perguntou a autoridade do outro lado da linha. Ela respirou fundo, apoiou-se com a mão esquerda na parede da casa mal construída, e devolveu outra pergunta ao invés da resposta para a indagação da autoridade do outro lado da linha, E a moto? Oi? A moto, como está a moto? A moto está inteira, como disse, o acidente não foi de moto, foi um atropelamento, Ela não sofreu nada? Não, minha senhora, a moto está inteira, intacta, paradinha onde ele estacionou antes de ir ao bar. Ela respirou fundo, e respondeu com a voz notadamente aliviada, Pelo menos isso, dos males o menor.

3 comentários:

Karol Coelho disse...

Ótimo!!! Simplesmente, maravilhoso David... hehehe

jean mafra em minúsculas disse...

veja só, logo eu, seu david, não achei a menor graça.

sei, era para ser engraçado, foi super bem construído (parabéns), mas que engraçado, não achei engraçado...

é, amado, estou ficando velho e acho que meu humor está ficando difente... será?!?

espero que seja só uma fase.

Bruna Rafaella disse...

E o gosto que fica de querer mais e mais e mais!!?

Adorei!