sexta-feira, 16 de setembro de 2011

O filho do Diabo


Ele achou que daria certo.

Já havia tentado tanta coisa infrutífera, tantos planos mirabolantes, que a mais simples das ideias jamais lhe ocorrera.

Mas, um dia, lendo uma revista que chegou às suas mãos por acaso, uma revista de administração, leu um artigo sobre benchmarking, e resolveu aplicar o termo que tornava politicamente correto o plágio empresarial, nas suas estratégias para desbancar o Todo Poderoso.

Pensou nas práticas utilizadas por Ele para que Seu plano tivesse sido tão bem sucedido, ainda que absurdo e, a partir destas reflexões, resolveu copiar a estratégia primeira para, enfim, conseguir dominar o mundo e ter na malha da sua tarrafa uma quantidade ainda maior de almas repetindo os dogmas que criaria, sem sequer pensarem no que estavam dizendo.

Terminado o artigo, o Diabo falou em voz alta para si mesmo, Rá, preciso de uma virgem!

Começou aí o seu calvário na tentativa de criar um herdeiro para viver um calvário.

É que há dois mil anos atrás, era fácil encontrar virgens, já nos dias de hoje...

Nesta primeira dificuldade, entendeu por que na mesma revista de administração, mas em outro artigo, um empresário qualquer, líder de mercado no segmento em que atuava, dizia que o importante era ser pioneiro, inovador, pois por mais que o copiassem, estaria sempre um passo a frente da concorrência.

Ponto pra Ele, pensou o Diabo, mas não desistiu do Benchmarking.

Deu trabalho, muito trabalho. Algumas até convenceram o espírito que, apesar de não ser santo, ele utilizara para a tarefa da fertilização, mas mal começava o ato, o espírito percebia que de virgem a menina não tinha sequer o signo. Isso que ele seguia a risca o manual do Outro, buscava meninas novas, mas não adiantava, nem mesmo no signo elas serviam. E isso era fácil de detectar, pois pela lábia elas poderiam convencer o espírito da suposta virgindade, mas por ser programado para fecundar uma menina intacta, ainda que mentissem muito bem, no momento do ato caso não fossem realmente imaculadas como diziam ser, o espírito broxava. Triste, mas é verdade.

Pior, mesmo broxando, elas cobravam o combinado do mesmo jeito.

É que nos dias atuais, as meninas, mesmo as novas, não crêem nos espíritos que surgem diante de si pela simples fé, mas por escambo, negócio. Ofereço-te o que procuras, se me pagares o que te cobro.

Ele até pagava, mas errava no cumprimento da missão que lhe fora destinada.

A coisa começava a complicar, pois o orçamento do capeta não era igual ao do Outro, que vivia vestido de branco com franjas de ouro e querubins loirinhos tocando harpa o tempo todo. A maior parte do seu orçamento precisava ser destinado à compra de carvão, para manter o inferno quentinho como deveria ser, mantendo as almas que lhe cabiam em constante estado de picanha mal passada, tostadas por fora e sangrando por dentro.

Eis que um dia, quando já recorria aos juros abusivos do cheque especial, que embora muitos acreditem que seja obra dele, ele nada tem a ver com aquelas taxas cobradas compulsoriamente, para manter firme e forte sua empreitada, o espírito encontrou uma menina de dezesseis anos esperando o semáforo fechar para entregar aos carros que esperariam impacientes o verde do sinal, panfletos de uma casa de massagem que ficava num prédio ali perto. Fora tão intensa e instintiva a ereção do espírito, que ele não teve dúvidas, tratava-se de uma virgem!

Pegou o panfleto, puxou conversa e, conversa vai conversa vem, ela não entendeu por que ele caiu na gargalhada quando ela disse que seu nome era Maria. Nada não, disse ele, é que lembrei de uma história antiga, mas nada contigo, posso te pagar uma cerveja? Eu não bebo, ela disse, Ah, as Marias, ele retrucou, ela não entendeu, Uma coca, então?, ela aceitou.

Demorou mais do que o planejado, ele teve que conhecer os pais, comprar aliança de prata, mandar flores, e convencê-la de que não seria pecado se fizessem o que ambos queriam fazer mas não faziam pelo medo que ela tinha do fogo eterno. Não é tão eterno assim, ele disse, às vezes falta carvão, O quê?, ela perguntou, Nada não, deixa pra lá, Ele respondeu com uma risadinha no canto dos lábios.

Mas, um dia, os pais da jovem Maria foram viajar com o grupo de casais da igreja, foram visitar a catedral de Aparecida do Norte. Ele riu, ela não entendeu, mas no fim da noite, cedeu. É que pouca gente sabe, mas o dia em que a mulher ovula, o tesão é irresistível. Crescei-vos e multiplicai-vos, disse o Outro. Valeu Senhor, pensou o espírito. Sendo assim, ela cedeu. Cedeu e viu que, apesar daquela dorzinha incômoda do início, aquilo era bom. Bom, mas tão bom, que não parecia que algo tão bom seria capaz de causar enjoos tão ruins quanto aqueles que ela passou a sentir semanas depois.

Feliz da vida, ou da morte dependendo do ponto de vista, o Diabo via enfim seu benchmarking tomar forma.

Ela espantou-se quando o filho que deveria parecer prematuro, já que nascera de cinco meses, nascera perfeitamente completo, com peso e altura dignos de uma criança nascida nos corriqueiros nove meses da gestação humana.

Por não ter atentado às aulas de biologia, ela não aprendera que o tempo de gestação da cabra, mulher do bode, é de cinco meses e, embora não tenha nascido com os mesmo pés e chifres de bode que o pai tinha, o tempo de gestação necessário para que o feto estivesse totalmente formado, fora o mesmo de um caprino.

E, assim, cinco meses após à excursão à Aparecida do Norte, nasceu o filho do Diabo. O messias do Diabo. Filho esse que a menina Maria teve que criar sozinha, já que o espírito escafedera-se tão logo fecundara a pequena. E não houve José que a amparasse. Teve um Wanderlley e um Roberson que até namoraram com ela por alguns meses, mas não queriam assumir nenhum bilhete premiado, como maldosamente apelidavam as meninas que, ainda novas, já traziam nas costas o peso que tiraram do ventre.

O menino crescia e, tal qual aquele outro, tinha uma oratória apuradíssima, capaz de amontoar ao seu redor uma pequena multidão interessada no que dizia. Mas, por ser pobre, filho de mãe solteira, o talento que desde sempre demonstrara na carpintaria, não seria capaz de garantir sua subsistência. Até mesmo o outro, o primeiro, não seria capaz de manter-se, se naquela época já existissem a Bosch, Makita, Dewalt, e suas tantas inovações tecnológicas que tornam quase desnecessária a presença de um marceneiro. A simples presença de um semi débil-mental capaz de apertar botões já seria o suficiente para beneficiar a madeira com mais velocidade e qualidade do que se fazia antigamente. Sendo assim, para garantir o pagamento em dia do aluguel do barraco onde morava com a mãe, vez ou outra servia de entregador de baseados que os homens mais influentes do que ele do bairro, usavam para chegar até os riquinhos que precisavam das substâncias ilícitas para impressionar as meninas tão ricas quanto.

Quando, já crescido, o talento para os milagres se tornou bastante presente, o que de início impressionava, depois tornou-se um incomodo, pois, como não tinha muito clara a sua missão na terra, diferente daquele primeiro, ao invés de multiplicar pães, peixes e vinho, multiplicava as bolas de sinuca na mesa, quando percebia que estava para perder numa partida qualquer. Ou então, multiplicava os azes que trazia na mão quase sempre ruim, nos jogos que fazia a dinheiro no boteco da esquina. Pode parecer injusto, mas enquanto o primeiro levou fama de abençoado pelo dom que ostentava, ele carregou o rótulo de trapaceiro.

Ainda não tinha se dado conta da semelhança dos seus dotes, com os talentos daquele primeiro, até que um dia, quando sua mãe lhe pediu para levar-lhe ao templo de Madre Paulina, perdeu o controle da CG Titan que guiava e arrebentou com os ambulantes que amontoavam-se em frente ao templo milionário erguido em homenagem à mulher que morrera pobre doando tudo de si aos mais necessitados.

Quando os ambulantes perceberam-se no prejuízo pelo acidente ocorrido, ao invés de socorrê-lo, tentaram linchá-lo, percebeu a semelhança e saiu quebrando o pouco que restara intacto, chamando-os de ímpios, palavra que ele sequer sabia o significado, mas alguma espécie de inspiração lhe trouxera aos lábios.

Foi hospitalizado, depois de ter voltado para casa na ambulância do SAMU, e começou a analisar as semelhanças contando as visitas que recebeu, e deu-se conta de que foram doze os amigos que lhe visitaram. Tudo bem que entre eles havia traficantes, ladrões de som de carro, batedores de carteira, ex-presidiários, um travesti e um, apenas um evangélico, mas eram doze. Teve também uma menina que veio lhe ver, uma por quem nutria um sentimento diferente das outras tantas que tivera, tão verdadeiro que sequer se importava com o fato de ela trabalhar na mesma velha casa de massagem onde, anos atrás, fez com que sua mãe conhecesse o seu pai desaparecido ao entregar um panfleto num sinal fechado.

Algum pouco tempo após ter saído do corredor do hospital público onde ficara por dias recuperando-se das escoriações oriundas do acidente em Nova Trento, os amigos, aqueles mesmo doze, marcaram um happy hour num puteiro do bairro vizinho. Tinham que comemorar, oras, ele estava enfim convalescido.

Pediram uma cerveja, tomaram, outra, mais uma, mais outra, já eram mais de dezessete as garrafas vazias na mesa, sem que ele precisasse erguer sua mão direita fazendo com que elas se tornassem mais dezessete cheias e geladas, quando um arrepio gelado lhe percorreu a espinha.

Levantou dizendo que precisava ir ao banheiro, mas sabendo que algum dos doze, naquela noite, lhe passaria a perna. Antes de dirigir-se ao mictório, parou diante do evangélico, que fora até àquele recinto muito a contragosto, mas concordava que a recuperação do amigo querido merecia uma comemoração, tocou-lhe o ombro esquerdo e sorriu. O evangélico levantou-se, sorriu, abraçou-lhe e beijou-lhe o rosto. Isso vai dar merda, ele pensou. Depois que o evangélico se afastou, ele puxou novamente o amigo para junto de si, novamente lhe abraçou, e sem deixar que o jovem crente percebesse, colocou no bolso da jaqueta do rapaz o papelote de cocaína que trazia consigo.

Quando os federais invadiram o puteiro e realizaram a rigorosa vistoria em todos os doze, foi o evangélico quem se deu mal.

Ele não sabia se tinha sido o jovem crente quem avisara aos meganhas, mas se alguém tinha que se ferrar naquela noite, que pelo menos não fosse ele.

Foi após este evento, que o Diabo se deu conta de que seu plano não dera certo. Embora muito bem arquitetado, e com os ingredientes iguais aos utilizados por Ele, nada do que havia planejado deu certo.

O evangélico ficou preso por alguns anos. Pela inocência e pureza que sempre tivera, fora feito menininha na cadeia, pegou AIDS, e morreu antes mesmo do seu julgamento ocorrer.

Ele, o filho do Diabo, não foi crucificado, não teve calvário, nem nada do gênero. Casou-se com a tal da menina que um tempo atrás havia trabalhado na casa de massagem, passou num concurso público do tribunal federal de justiça e exercia o ofício de motorista dos juízes que ganhavam num mês mais do que ele ganharia no ano. Tomava cuidado para não deixar que percebessem os seus pequenos milagres. Na verdade, só os usava quando algum dos pneus dos carros federais furava, para não precisar sujar suas mãos e erguer peso. Vedava o furo e fazia com que os pneus enchessem de maneira mágica e, como os magistrados sequer saíam dos carros, nunca perceberam os pequenos milagres que ele fazia para benefício próprio.

E, assim, o Diabo percebeu que, tal qual a bíblia, as revistas de administração ensinam um monte de coisas lindas e perfeitas, mas impossíveis de darem certo.

Não, não pode ser, disse o Diabo numa noite de sábado enquanto assistia o comercial de um refrigerante na televisão.

O que importa é o pioneirismo.

Por mais que tente, a Pepsi nunca vai ser a Coca-Cola.

Um comentário:

Bruna Rafaella disse...

Na verdade não curto muito esses tipos de textos seus, estou sendo sincera com você, mais li e para deixar meu comentário aqui, achei uma meleca...


Te adoro!!!!!


Espero que estejas bem!!!


Beijos!