segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Pra você guardei o amor


Na frente do juiz, soldado Noronha aguardava em meio a uma ansiedade angustiada a decisão que transformaria pra sempre e de maneira definitiva a sua vida. Seria a segunda transformação de tamanha magnitude que viveria ao longo dos seus vinte e oito anos.

A primeira se dera há pouco mais de dois anos, quando conhecera sua amada Etelvina. Etelvina para soldado Noronha, para os outros todos que se interessavam por ela, chamava-se Thuany. Por apenas trinta reais, barganhando-se com jeito até menos, era Thuany. O que importava para ela, Thuany/Etelvina, eram alguns trocados que transformar-se-iam em pedras para confundir a sua fome constante e o frio do desabrigo diário. Como é companheiro e acolhedor o crack, quando ninguém mais nota na existência de alguém.

Foi no fim de uma madrugada muito fria, quando Etelvina já imaginava que pela terceira noite seguida ninguém se interessaria por ela, que a Santana Quantum do delegado Aderbal parou uns poucos metros após a esquina onde ela encolhia-se do frio, mas a cada carro que passava se erguia e rebolava mostrando o corpo semi-nu.

Delegado Aderbal baixou o vidro do carona para que Etelvina pudesse oferecer seus préstimos. Como já estava acostumada, viu o semblante do Delegado Aderbal demonstrar desinteresse tão logo vira seu rosto.

Etelvina era feia, muito feia.

Cabelos oleosos, dentes tortos e cariados, nariz pequeno e achatado, muito magra, pele tingida de um moreno sujo e manchado e olheiras impossíveis de serem disfarçadas, por mais talentosa que fosse a maquiadora.

Como sempre fazia a cada vez que o semblante dos seus raros clientes contraía-se daquele jeito, Etelvina levantou-se, virou de costas e ergueu a curtíssima saia, deixando à vista do delegado Aderbal sua bunda bem feita. Algumas pequenas manchas roxas, sem celulites, mas com estrias bastante visíveis em uma das nádegas, mas, ainda assim, uma bela bunda. Firme e bem desenhada, de fazer inveja a muitas mulheres que, por mais que se dediquem a anos de academia enfatizando exercícios para os glúteos, dificilmente alcançarão firmeza similar. A vida virara as costas à Etelvina de tal maneira, que só de costas a natureza havia tido com ela alguma generosidade.

Quanto?, perguntou o delegado, O que vai ser?, respondeu Etelvina, Um boquetinho, coisa rápida, Trinta com camisinha, quarenta sem, Tá caro, pago vinte sem camisinha, Trinta sem camisinha, Trinta sem camisinha e mais o cuzinho.

Etelvina aceitou.

Etelvina estava com fome, e para qualquer lugar que delegado Aderbal a levasse, seria melhor do que aquela rua suja e fria.

Num motel anexo a um posto decadente, não mais do que o motel, Delegado Aderbal fez em Etelvina toda sorte de baixezas indizíveis. Ela suportava calada aquela imundice toda, confortando a dor que a fazia sentir-se a mais desgraçada das mulheres, na esperança de que em alguns minutos suas pedras companheiras a fariam esquecer de toda aquela podridão à que se sujeitava.

Contudo, antes de terminar suas investidas brutais, delegado Aderbal enfartou fulminantemente, e caiu com o corpo todo rígido, de uma rigidez que buscara a noite inteira, mas seu membro pequeno recusara-se vestir.

Etelvina entrou em desespero, começou a gritar e chorar de tal maneira que o gerente do pulgueiro onde estava arrombou a porta para ver o que havia acontecido. Ao deparar-se com a prostitua encolhida ao lado da cama, gritando desesperada, e o corpo do delegado Aderbal caído no chão, já começando a ficar arroxeado, o gerente ligou de imediato para a polícia que, em poucos minutos, chegava ao local.

Para a família do delegado, os policiais disseram que ele morrera quando voltava para casa após estender o expediente em meio a um caso complicado que tentava desvendar, fazendo a inocente esposa acreditar que seu marido imundo era, na verdade, um bom homem, trabalhador e justo. Ela sabia que seu marido não era grande coisa, mas a mentira desde sempre fora muito mais gentil do que a verdade, ainda mais numa hora daquelas. Deixou-se enganar. Enganou-se por vontade própria.

Etelvina queria a sorte do delegado, que fosse ela a enfartada. Mas a vida não simpatizava muito com aquela mulher, então, infeliz. Os policiais algemaram-na e levaram-na para a delegacia.

Diante dos presos das outras celas, Etelvina foi arremessada com toda a brutalidade que só os homens possuem e, sem que tivesse direito à defesa ou mesmo um julgamento, fora condenada culpada pela morte do delegado Aderbal. Três dos policias de plantão espancaram Etelvina. Mas antes, estupraram-na de maneira ainda mais vil do que o finado delegado. Não bastasse eles mesmos usarem do corpo da pobre de todas as maneiras que lhes parecesse conveniente, introduziram em seus orifícios, todos eles, toda espécie de objeto que lhes estava ao alcance, dilaceraram-na sem piedade. Quando a sordidez fardada parecia ter acabado, veio o primeiro chute de uma botina muito bem lustrada na boca da mulher caída, ela sentiu o gosto de sangue na boca quase afogar-lhe, e viu no chão dois dos seus poucos dentes caídos. Em seguida, uma sucessão de chutes que ela sequer percebia de onde vinham, iam diminuindo-a cada vez mais. Se antes desconfiava, agora tinha certeza, Deus a odiava ainda mais do que odiara seu único filho. Quisera ela ter sido crucificada, ao invés de passar por tudo aquilo.

Quando tiveram sua ignorância selvagem saciada aos olhos dos outros presos assustados, os policias subiram para o escritório da delegacia e ordenaram a soldado Noronha que fosse até o porão, onde ficavam as celas, e desse um jeito naquela sujeira toda.

Quando viu Etelvina caída, sem forças sequer para chorar aquela dor absurda, soldado Noronha comoveu-se.

Aproximou-se de Etelvina e ouviu a voz fraca da mulher caída quase implorar num volume inaudível, Por favor, eu não agüento mais, não me bata mais. Soldado Noronha chorou com discrição, para que nenhum dos outros presos percebesse sua emoção sincera.

Com um pano umedecido em água morna, soldado Noronha passou a limpar cada um dos incontáveis ferimentos que estavam espalhados naquele corpo pequeno. Os olhos inchados e muito roxos de Etelvina não conseguiam focalizar direito a face de quem parecia ter com ela alguma misericórdia.

Soldado Noronha já não preocupava-se em disfarçar sua comoção, limpava com muito cuidado e delicadeza os ferimentos chorando uma dor que sabia, não se comparava a dor que aquela mulher estava sentindo.

Os presos assistiam a tudo em silêncio, emocionados com a nobreza daquele gesto simples.

Quando passou em frente aos demais policiais de plantão, com Etelvina tremendo de frio e dor escorada nos seus ombros, soldado Noronha ouviu de um deles, Onde você pensa que está levando essa vagabunda?

Soldado Noronha acomodou Etelvina em um dos bancos duros de espera da delegacia, sacou sua arma e foi na direção daquele que lhe havia feito a pergunta, Escute aqui, seu filho de uma puta, se você ou qualquer um de vocês tentar chegar perto de mim, ou mesmo se a sombra de algum de vocês chegar perto dessa mulher mais uma vez, não vai ser a corregedoria que será informada do que aconteceu aqui essa noite, vai ser a mulher, vão ser os filhos de cada um de vocês que vão ficar sabendo tudo o que vocês fizeram e fazem todas as noites. Chega perto pra ver o que acontece, mando todos vocês para o quinto dos infernos junto com aquele merda daquele delegado que já foi tarde!

Imóveis e amedrontados, os policiais viram soldado Noronha colocar Etelvina no seu carro, e desaparecer das suas vistas.

Soldado Noronha cuidou de Etelvina. Cuidou de cada um dos ferimentos, pagou-lhe o tratamento odontológico que recuperou os dentes que a botina brilhante lhe havia furtado, e ficou sinceramente feliz quando soube que, apesar de toda a violência a que fora submetida, Etelvina estava grávida. Ainda que o bebê fosse do desprezível delegado Aderbal, soldado Noronha cuidaria da criança como se fosse sua.

Se de início Etelvina ficara assustada e receosa com a estranheza daquele carinho que nunca recebera, não demorou para acostumar-se em ser amada. Diferente da vida, o amor é doce.

A criança nasceu saudável, a despeito do estrago que as drogas costumam fazer.

Soldado Noronha e Etelvina viviam felizes aquela amor improvável, até que a ex-prostituta adoecera.

Embora a criança tenha nascido sadia, e soldado Noronha também mantivesse sua saúde intacta, Etelvina tinha AIDS.

Mesmo que tenha tido força bastante para suportar todas as agressões a que fora sujeitada desde que percebera-se gente, ou algo parecido com isso, quando adoecera, não houve tratamento que fizesse Etelvina convalescer.

Em poucos meses, morreu Etelvina.

Na sordidez da vingança, os outros policiais denunciaram soldado Noronha, alegando que mantinha em sua guarda uma criança que não era sua, tentando fazer que com isso perdesse aquele pequeno menino que, desde que partira a sua Etelvina, era a razão pela qual vivia.

Agora, diante do juiz, aguardava a sentença do magistrado para saber se poderia manter-se como responsável pela guarda e educação do menino.

Para sua feliz surpresa, após terem sido relatados todos os fatos, inclusive as agressões que certamente renderiam punições severas aos demais policiais, soldado Noronha não só teve a alegria de adquirir em definitivo a guarda da criança, como teve também a felicidade da autorização do juiz de acrescentar à certidão de nascimento do menino, também o seu nome.

A decisão chocara a pequena cidade, mas sem se importar com isso, agora soldado Noronha tinha a felicidade de ler na certidão de nascimento que Antônio, o menino, era filho de Etelvina Aparecida da Silva e Maria Fernanda de Souza Noronha.