sexta-feira, 17 de setembro de 2010

O Cafajeste


Vem cá, posse te dizer uma coisa? Mas, por favor, não vá pensar que é uma cantada.

Falou o homem com olhar cabisbaixo, folheando a edição muito surrada de Cem anos de solidão, que deveria ter sido relida algumas vezes, e estava em cima da mesa.

Catarina fez que não ouviu, e perguntou o que o levara até ali.

Ele precisava de uma declaração atestando que não representava risco as pessoas e, por tanto, poderia deixar o país num voo que sairia de São Paulo com destino a Paris no meio da tarde do dia seguinte.

Catarina lhe explicou que aquilo não se resolveria assim, era necessária uma investigação, um diagnóstico. Ela não era uma vendedora de atestados. Naquele prédio havia uns dois ou três profissionais de ética bastante flexível que, pagando-se um pouco mais do que o valor de uma consulta, cederiam o documento sem maiores questionamentos. Mas ela não. Ela era ética e zelava pela sua reputação.

Ele relutou, não queria se expor, mas Catarina, ainda que bastante jovem, tinha a habilidade dos profissionais experientes de fazer com que seus pacientes se sintam encorajados a desaguar as angústias que lhes rouba o sono.

Ele cedeu. Deitou-se no divã e contou sua história.

Chamava-se Arthur. Era francês, mas vivia no Brasil desde pequeno. Vinha de uma tradicional família da pequena cidade de Langedoc. Mas antes de falar de sua família, afirmou à Catarina que ele era um cafajeste irrecuperável. Mulherengo, beberrão e, ainda que não dissesse, mesmo a distância o cheiro de sua pele denunciava que não era pouco o quanto fumava.

Catarina riu da presunção daquele homem que se auto-reverenciava como um conquistador irresistível.

Precisava da declaração, pois havia batido num rival que lhe roubara a mulher amada. Fora encaminhado à delegacia após a agressão, e solto depois de assinar um termo circunstanciado que o impedia de sair da cidade. Exceto sob a avaliação de um psicólogo ou psiquiatra.

A presunção que Catarina percebera no início da conversa, dava lugar à culpa que ela identificava em cada frase. Havia na sua voz uma amargura ressentida consigo mesmo.

Contou-lhe uma longa e maçante história de toda a sua família, desde os tempos remotos da França pós-queda da Bastilha. Citou o nome de cada uma das várias pessoas que o antecederam, o amor proibido dos seus pais, os vários cafajestes que passaram, geração após geração, despedaçando os corações indefesos das mulheres que cruzavam os seus caminhos.

Ela ouvia tudo impassível, com a frieza dos melhores profissionais, mas sem perder o interesse que deixa os clientes confortáveis na exposição dos seus pecados.

Quando ele narrou a maneira trágica com que seus pais foram assassinados, numa tentativa de seqüestro que terminara sob a intervenção desastrosa da polícia despreparada, Catarina ficou emocionada.

Ele contou que, na oportunidade, regressara à França, mas desta vez fora morar em Paris, na casa dos seus tios, na companhia de suas primas gêmeas. Disse que foi nessa época que se dera conta que no seu sangue corria o talento de conquistar, usar e descartar as mulheres.

Fez da empregada da família sua professora sexual, e das primas suas primeiras vítimas.

Quando Olivier, seu tio, descobriu, quis mandá-lo para Langedoc, para a casa dos avós. Mas para massacrar ainda mais seu desespero de pai, percebera pela angústia de sua esposa tentando impedir o afastamento do sobrinho órfão, que ela também, já passada dos trinta anos, havia sido vítima de um menino com pouco mais de dezesseis.

Olivier escorraçou-o de casa.

Voltou ao Brasil para tentar refazer sua vida na terra onde seus pais foram vitimados.

A cada novo detalhe, Catarina surpreendia-se com os meandros da história daquele paciente inesperado. Mas não deixava sua surpresa transparecer.

Catarina percebia na narrativa um orgulho magoado pela sina que Arthur acreditava ter, de decepcionar as mulheres que conquistava.

E nas suas várias conquistas, Arthur contou com detalhes bastante íntimos suas histórias com Érica, Alice, Jussara, Soraia, Verônica, Ana Paula, Suzana, Carolina, Maria Eduarda, Roberta, Antônia, Helena, Janaína, e muitas outras cujos nomes lhe escapavam da memória.

Catarina lutava contra, mas os detalhes que Arthur contava, deixavam-na excitada. Muito excitada. Mas ela sabia como disfarçar.

Até que Arthur contou a história de Clara. Ele apaixonara-se verdadeiramente por Clara, e ela demonstrava que o sentimento era recíproco. Por ela, Arthur desinteressou-se das outras mulheres. Só tinha olhos, mãos, pele, boca, para ela, a sua Clara.

Arthur fixou-se em um emprego, e pediu Clara em casamento.

Ela aceitou.

Financiou um apartamento, e o decorou com cada detalhe desejado por Clara. Tudo estava perfeito, até que uma semana antes do casamento, Clara pediu que ele a encontrasse no apartamento que seria o lar do casal apaixonado.

Quando lá chegou, encontrou sua noiva na cama com José Aureliano, seu melhor amigo.

Sem ação, Arthur viu a cara assustada de José, e a gargalhada eufórica de Clara.

Ela revelou a ele que premeditara aquela cena desde que tinha quatorze anos, quando seu pai havia se separado de sua mãe, após flagrá-la com Arthur, saindo de um motel vagabundo. Clara ficara desesperada com a separação dos pais, eles eram o seu exemplo de casal perfeito. Desde então, seguira os passos do francês conquistador, observando seus métodos, na certeza de que a oportunidade certa surgiria, e quando surgisse, ela saberia exatamente como agir para fazer dele a vítima maior das suas histórias de conquistas e decepções amorosas.

Contudo, quando José Aureliano ouviu a narrativa de Clara, percebeu que ele havia sido apenas usado para que ela pudesse realizar sua vingança pessoal. Enfiou-lhe a mão na cara, fazendo sangrar o canto dos lábios.

Foi nessa hora que Arthur partiu para cima dele e espancou-o. Bateu nele com raiva por tê-lo visto agredir a mulher que amava, com raiva por ter sido cúmplice – ainda que inconsciente – da destruição do seu sonho de amor perfeito, e com raiva por saber que poderia descontar nele, aquilo que não seria capaz de fazer com ela.

Foi preso, e só liberado após a assinatura do termo circunstanciado que o impedia de sair do país sem a declaração de um profissional habilitado.

Os olhos de Catarina estavam indisfarçavelmente marejados. Lutou contra, mas deixou-se envolver por todo aquele infortúnio. Pegou o receituário para fazer a declaração, Arthur chegou perto dela com a tensão de quem acaba de se expor de uma maneira que jamais havia feito, e antes mesmo que Catarina pegasse a caneta, ela puxou-o para perto de si que, sem ação, deixou-se beijar.

No meio da madrugada Catarina abriu os olhos, ainda muito sonolenta, esgotada da sucessão de prazeres que não sabia serem possíveis, e virou-se para o lado da cama para pedir que, embora ela tivesse dado a declaração, Arthur não viajasse no dia seguinte. Não viajasse nunca mais. Ela estava ali, e tinha certeza que poderia fazê-lo esquecer a decepção que tivera com Clara. Mas Arthur já não estava mais lá.

Levantou-se, foi até o banheiro, à cozinha e nada. Nem sinal de Arthur. Nisso, tocou o telefone. Era da delegacia.

A própria delegada ligara para Catarina, dizendo ter prendido um homem que tentara comprar cigarros num posto de gasolina com o cartão de crédito dela.

Olhou para a cômoda, e percebeu que sua carteira não estava onde havia deixado.

Catarina foi à delegacia, incrédula com aquele enredo que agora protagonizava.

Sentou-se em frente à delegada, que mandou chamar Domingos.

Quem? Perguntou Catarina.

Domingos, o meliante que estava com seus cartões e documentos.

Catarina suspirou aliviada, não fora Arthur. Seu sonho romântico não se desfizera, embora ainda carecesse de explicações. Mas quando o soldado abriu a porta, foi ele quem entrou.

Arthur? Perguntou Catarina.

Arthur? Perguntou a delegada.

Alguém tem fogo? Perguntou Arthur, Comprei os cigarros, mas esqueci do isqueiro.

Em meio ao estado catatônico de Catarina, a delegada lhe explicou que aquele era Domingos, também conhecido como Dodô da Coloninha, um malandro que passava os dias dando golpes em mulheres carentes. Conquistava-as, roubava-as e abandonava-as. Catarina não fora a primeira, e certamente não seria a última.

Ele pediu a delegada dois minutos de privacidade com Catarina.

A delegada concedeu.

Contou a Catarina que trabalhava como jardineiro do prédio onde ela tinha o consultório, dava-lhe bom dia todos os dias, mas ela sequer olhava em seu rosto. Disse estar verdadeiramente apaixonado por ela, mas precisava de alguma história muito boa para que ela lhe desse atenção.

Ela não acreditava, eram muitos os detalhes para que tudo fosse mentira.

Ele explicou que a história da França, fora criada em cima de uma reportagem que lera em uma das revistas Gula, especial sobre vinhos, que havia na recepção do consultório. Criou uma genealogia de nomes repetidos inspirado no livro que estava em cima da mesa do consultório, e confessou que arriscou-se muito a ser desmascarado, quando usou o nome José Aureliano. Como ela, que lera tantas vezes Cem anos de solidão, não percebera a armadilha?

Para surpresa da delegada, Catarina pagou a fiança e liberou Arthur. Ou Domingos, enfim.

Quando chegavam à rua, o sol começando a dar seus primeiros sinais, pediu que Catarina esperasse um pouco, pois havia esquecido seu maço de cigarros na mesa da delegada.

Com licença doutora, só vim pegar meus cigarros.

Mas você não vale nada mesmo, hein ô vagabundo?!

Que é isso doutora, sou só um homem buscando o amor verdadeiro.

Chega de conversinha, pega o seu cigarro e cai fora daqui antes que eu me arrependa de ter te soltado.

Já tô indo, doutora, já tô indo.

Pegou o maço de cigarros, abriu a porta, mas antes de sair, virou-se para a delegada e falou:

Vem cá, posso te dizer uma coisa? Mas, por favor, não vá pensar que é uma cantada.

3 comentários:

Daca disse...

David, meu filho, tu nunca podia ler a tua redação "Como foram as minhas férias", né? Todo mundo da 4a. série dormia...

luiza disse...

ahahahahha


No fim das contas, é tudo assim né?

=(

Nayana disse...

da que é paranóica, né?

tsc, tsc.

[o pior é, depois de ler, ter que admitir que tu és foda, seu puto!]

beijo.