quarta-feira, 13 de outubro de 2010

A parábola da (im)paciência


Alfredinho, filho de Alfredão, apontava com as mãos trêmulas a arma em direção ao peito de Davi, melhor amigo de seu pai desde os tempos de infância.

Davi constatava, então, que era verdade aquela velha história de que, na hora da morte, a vida inteira passa diante dos olhos, como um enorme filme instantâneo.

Desde sempre, Davi evitava os conflitos. Resolvia as coisas da maneira mais simples possível, só para fugir de qualquer espécie de confronto.

Na juventude, quando seus amigos envolveram-se com uma passeata para diminuir as passagens dos ônibus da cidade, Davi preferiu comprar uma bicicleta para ir à faculdade.

Alguns dos seus colegas o aporrinharam chamando-o de traíra, de alienado político, ele respondia-lhes com a singela sinceridade que lhe era particular, Foda-se!

Outros, gostaram da ideia. Os eco-chatos da época, até congratularam-no pela iniciativa, pois contribuía para um mundo com menos poluição. Ele respondia-lhes, Poluição é o caralho, foda-se o meio-ambiente, só quero ir para a faculdade sem que me encham o saco.

Na primeira oportunidade em que uma de suas namoradas tentava discutir a relação, Davi encerrava o caso por ali mesmo, Tá bom, tá bom, você está certa, eu estou errado, vamos ficar por aqui mesmo, vá atrás de outro que não seja assim tão ruim quanto eu. Quando elas argumentavam, dizendo que não pretendiam terminar, apenas melhorar a relação, ele mandava-as à merda, dava as costas e saía andando.

Contudo, a história que agora marcava presença em suas lembranças pré-assassinato, era a conversa que tivera há alguns anos com Alfredão, pai do seu potencial assassino. Alfredão era um homem instável emocionalmente, embora fosse muito amigo, extremamente solícito a todos que dele precisassem, era insatisfeito consigo mesmo, depressivo patológico. Dependia de antiansiolíticos para manter o mínimo de normalidade no seu cotidiano. Pois eis que nesta oportunidade, Alfredão teve o mais grave dos seus surtos, abandonou a mulher, grávida de seis meses, largou o emprego, deixou de lado a pós-graduação, pegou o carro e foi-se embora sem destino, rodou a ermo, chorando copiosamente sem entender as razões do pranto.

Depois de dias sumido, Alfredão ligou para Davi e pediu que o encontrasse, precisava desabafar.

Davi foi ao seu encontro. Alfredão falava, entre soluços, da sua angústia com as incertezas da vida, não conseguia se sentir seguro, não consegui se sentir capaz de transmitir segurança à sua família, não se sentia realizado no trabalho, perdia o sono questionando a existência de Deus, e sentia-se em pecado mortal, cada vez que cogitava a possibilidade Dele não existir. Alfredão tremia de ansiedade cada vez que buscava respostas para as perguntas que acompanham a humanidade desde antes dela existir, De onde viemos? Para onde iremos? O que acontece depois da morte? Vamos para o céu, inferno, purgatório? Eu não sei, eu não sei, eu não sei! Gritava chorando convulsivamente. Alfredão chorava pensando nas pessoas que passavam fome enquanto ele gastava seu dinheiro em garrafas de vinhos e restaurantes japoneses. Alfredão, sofria, sofria muito, sofria por nada, sofria por tudo.

Você tomou os seus remédios? Perguntou Davi.

O quê?

Os remédios, aquelas porras daqueles antidepressivos, você tem tomado aquelas merdas todas?

Porra, Davi, eu aqui falando dos problemas da humanidade, do universo, e você preocupado com remédios tarja preta?!

Escute aqui, Alfredão, você sabe que eu sou seu amigo. Você me chamou aqui para lhe aconselhar, certo?

Certo.

Então preste atenção, vou falar só uma vez, se você quiser escutar, ótimo, se não quiser, foda-se. Sabe o universo, a morte, a vida, Deus, as criancinhas que passam fome no nordeste, sabe essa merda toda?

Sei...

Então, ficar chorando por essa porra toda, não vai mudar em nada a sua vida, deixa de ser cuzão e vá se preocupar com a merda da prestação do seu carro, antes que ela atrase.

Não é assim, Davi, você tá sendo muito insensível, não é assim que as coisas funcionam.

Não é assim o caralho! O mundo é cruel, fazer o quê? Ficar aí chorando como uma velha resmungona não vai resolver porra nenhuma, deixa de ser idiota. Você não é tão importante quanto pensa que é. O mundo tá cagando e andando pra você, e vai ser sempre assim, foda-se a merda do planeta, vá cuidar da sua vida que é o melhor que você faz. Sua mulher tá grávida, cacete, vá cuidar do seu filho que tá pra nascer e pára de frescura.

Eu não sei se consigo.

Bom, então faça o seguinte: se mate.

O quê?

Isso mesmo, pára de encher o saco e enfia uma bala na cabeça, se joga do alto de um prédio, amarra uma bigorna no pescoço e pula da ponte, sei lá, se mate de uma vez e pare de encher o saco.

Mas isso é conselho que se dê para um amigo que te pede ajuda?

Olha, só te dou esse conselho exatamente por ser seu amigo. Outra pessoa passaria a mão na sua cabeça burra e deprimida, eu sou sincero, só amigos de verdade sabem ser sinceros. Por isso, insisto, pára de encher o saco e se mate de uma vez.

Depois daquele dia Alfredão mudou. Acordou para a vida. Encheu-se de coragem e assumiu as rédeas do seu destino. Voltou para o emprego, conquistou o respeito e a admiração de todos ao seu redor, tornou-se um ótimo marido e pai exemplar.

Tudo transcorria perfeitamente bem, até o último domingo.

Alfredão encontrou-se com Davi num barzinho, ambos tomavam cerveja e conversavam sobre a vida, quando Alfredão resolveu rememorar aquela conversa que, para ele, servira como um grande divisor de águas.

Davi, só posso te agradecer por aquela conversa, você me abriu os olhos com a sua franqueza. Psiquiatra nenhum do mundo saberia me chamar para a realidade como você fez. Por mais que você não quisesse que eu realmente me matasse, a dureza das suas palavras me deram a sacudida que eu precisava para me tornar senhor da minha vida. Eu sei que aquilo não era o que você desejava que acontecesse, mas só um amigo de verdade seria capaz de mexer com meus brios daquele jeito.

Não, não, você tá errado.

Como assim?

Eu realmente queria aquilo. Não falei nenhuma daquelas merdas para te sacudir, te chamar para a realidade ou qualquer destas bostas de auto-ajuda. Eu falei na esperança que você realmente se matasse.

O quê?

Cara, ninguém te agüentava mais, você tava chato pra caralho, sempre deprimidinho pelos cantos, aquele chororô do cacete que não acabava nunca.

Vocês não gostavam de mim?

Gostávamos, claro. Gostamos, mas você sabe como eu sou, prefiro resolver de uma vez do que ficar me arrastando em ladainhas que não vão chegar a lugar nenhum. Se resolver o problema fosse te enterrar, que você se matasse, então. Seria melhor para todo mundo.

Depois daquela conversa, a depressão voltou como uma avalanche em cima da cabeça de Alfredão. Além de sofrer pelas mesmas velhas coisas sobre as quais ele não tinha poder de interferir, sofria ainda mais imaginando-se desagradável para os que viviam ao seu redor, não suportou o desespero de imaginar-se um estorvo e, na madrugada de domingo para segunda, provou no céu da sua boca o gosto da pólvora que estilhaçou sua cabeça.

Alfredinho tremia, seus olhos lacrimejavam de raiva diante de Davi. Na sua carta de despedida, Alfredão narrava a conversa com Davi, e na confusão do surto, agradecia ao amigo por lhe abrir os olhos e fazê-lo perceber o quão desnecessário ele era para a humanidade.

Davi impacientava-se com o discurso de vingança que Alfredinho lhe obrigava a ouvir.

Ô moleque, disse Davi, chega de lenga-lenga! Foda-se o seu desespero, a sua tristeza, a infelicidade da sua família. O problema não é meu, seu pai se matou de idiota. Era meu amigo, gostava muito dele, mas era idiota, fazer o quê?! Não queria que isso acontecesse, mas aconteceu, não posso fazer nada.

Você é muito insensível!

Insensível é o caralho, eu sou prático. Vai me matar? Então pára de empombação e aperta logo essa porra de gatilho.

Assim? Simples desse jeito? E a sua família? E os seus filhos?

Fodam-se eles. Vou ter que morrer um dia mesmo, pelo menos assim o prêmio do seguro de vida vai ser maior. Vão ter um bom dinheirinho para confortar a dor da minha perda.

Alfredinho mirou a cabeça, apertou o gatilho, mas alvejou o braço de Davi.

Porra, gritou Davi, seu moleque burro do caralho! Tá na minha frente e consegue errar a porra do tiro! Atira de novo, seu merda, vê se dessa vez não erra!

Alfredinho atirou de novo, mas com as mãos trêmulas, errou o tiro a bala ricocheteou no chão, e acertou de novo o mesmo braço que já havia sido baleado.

Burro, burro, burro! Seu burro do caralho! Atira direito essa merda, cacete! Você é burro como o seu pai, caralho!

Alfredinho ficou furioso. Disparou mais três vezes a arma, dessa vez não errou. Dois tiros acertaram o peito de Davi, o terceiro perfurou-lhe o pescoço.

Antes de morrer, Davi arrastou-se até Alfredinho, agarrou-lhe uma das mãos, e sussurrou com o fiapo de voz que ainda lhe restava:

Foda-se, seu merdinha do caralho!

Davi morreu, e acabou a história.


Moral da história?

Foda-se, moral da história é o caralho.

7 comentários:

Shuzy disse...

Porra Don!
Que merda de final é esse??

hsuahsuhasahsuahsuah

Mady disse...

estava esperando um chute nos ovos no final.

você me surpreendeu, caríssimo.

jean mafra em minúsculas disse...

ah, david, vá tomar no cu!!!

que protagonista besta.

Anônimo disse...

Gostei muito do seu blog.
Claro qeu achei você no Blog do Marcelo.
Mas sou leiga de cultura, entendo pouco, mas gostei.
Beijos.
G.

Anônimo disse...

Adorei a história kkkkkkkkkk
Foda-se o final!!!!rsrsrsrsr

mar. disse...

vida Davi! viva golias! foda-se jô soares!

Bruna Rafaella disse...

Oi...
eu quero que se foda como te achei
hahahahahahaha....
brincadeira, te achei no blog da g=Gi que te achou no blog do Marcelo enfim...

adorei esse post, nada melhor
que a sinceridade e a impaciência...
hahahahahahaha, não consigo parar
de rir, muito bom!!



Beijos!