terça-feira, 28 de dezembro de 2010

As três bitucas


Agora já era tarde.

Mas que ele pensou em ao menos nessa hora contar toda a verdade, ah, isso ele pensou.

Mas tadinha, ela ia ficar tão decepcionada se soubesse de tudo, melhor deixar assim mesmo. Pra ele não mudaria nada mesmo, que se preservasse a integridade da mentira de tantos anos.

Fato é que o cigarro o levara ao leito de morte. Justo ele, que sempre detestara cigarros, viu-se impelido a fumar durante mais de trinta anos, apenas para não decepcioná-la.

Foi no comecinho de uma noite quente como a casa do capeta, que ele chegou em casa, foi ao banheiro, lavou o rosto, as mãos, voltou para a sala para cumprimentá-la, beijou-lhe com a rotineira burocracia dos anos de convívio e foi até a cozinha quando, desta vez, era ela quem dirigia-se ao banheiro.

Abriu a geladeira, pegou uma lata de brahma, fechou a porta e deu de cara com ela, semblante contrito, cenho franzido olhando para ele a espera da resposta para a pergunta que o pobre desconhecia.

Que cigarros são aqueles? Perguntou ela.

Que cigarros? Devolveu a indagação.

Como, “que cigarros”? Aquelas três bitucas boiando no vaso.

Foi até o banheiro, levantou a tampa do bacio e contemplou as chepas navegando tranqüilas na água parada do vaso.

Respirou fundo, passou uma das mãos sobre a testa, levantou o olhar até os olhos dela, e disse:

São minhas.

Desde quando você fuma?

E faz diferença? São minhas, isso basta.

Você tá de brincadeira, né?

Não, são minhas. Eu gosto, fazer o quê?

Como assim, “eu gosto”. Você sempre odiou cigarros.

Não, eu nunca odiei. Eu adoro cigarros, fumo muito, inclusive. Só não deixava você saber por que sei que você odeia. Não queria te perder, e por isso fumava escondido.

Deixa eu ver o seu maço.

Não tenho, acabou. Esses eram os três últimos.

E que marca você fuma?

E faz diferença?

Ué, se você gosta tanto assim, deve ter um cigarro preferido.

Não, eu só fumo. Fumo o que tiver pra vender. Fumo o que couber no dinheiro que tiver na carteira. Só fumo. E daí? É algum pecado?

Você sabe que eu odeio cigarros, e sempre falei que jamais ficaria com alguém que fuma.

Eu sei, por isso que fumava escondido.

Você não tinha o direito de esconder uma coisa dessas sobre nós.

Isso não é sobre nós, é sobre mim.

Mas me afeta.

Não, não te afeta. Tanto que você nunca desconfiou. Isso só me afeta. Se alguém vai morrer de câncer ou enfarto por causa do cigarro, esse alguém sou eu.

Você sabe que eu odeio mentiras.

Eu não menti, apenas omiti, são coisas muitíssimo diferentes.

Você não tinha esse direito.

Claro que tinha, é algo meu, não nosso. Se eu fumasse na sua frente, na sua presença, se te importunasse com a fumaça do meu cigarro, aí sim seria um problema nosso. Mas eu sempre tomei o cuidado de reservar a fumaça somente para mim.

Mas, a partir de agora, se você quiser fumar vai ter que ser na minha frente.

Tudo bem, se você não se importar, eu fumo na sua frente.

Prefiro isso do que saber que você faz algo pelas minhas costas.

E assim, desde o dia em que tiveram aquele diálogo, mesmo odiando cigarros passou a fumar mais de uma carteira por dia, na frente dela. E agora lá estava ele, mergulhado na cama do hospital de onde só sairia no caixão. O câncer não perdoa os fumantes, mesmo aqueles que fumam por força das circunstâncias.

E ali, enquanto esperava a morfina diminuir um pouco aquela dor filha da puta que lhe fazia sentir-se o mais fodido dos semi-vivos, lembrou de uns meses antes daquele fatídico flagra, quando a convivência com sua esposa beirava o insuportável, tantos eram os desaforos recíprocos.

Mas ele a amava demais para sequer cogitar a possibilidade de uma vida sem tê-la ao seu lado.

Eis que um dia, sem mais nem menos ela amansara. Voltara a ser carinhosa, atenciosa, solícita, as brigas haviam cessado de uma hora para outra, e a convivência passara a ser tão boa que ele logo deduziu que tanto amor só podia advir da culpa.

Foi fácil descobrir que ela tinha um amante.

Ela se preocupava tanto em dar-lhe atenção, que faltava-lhe tempo para tomar o devido cuidado com as evidências do adultério que deixava por todos os cantos.

Mas ele escolheu fazer que não via.

Ela estava feliz, ele mais ainda. Que vivessem assim, então.

No dia do flagra das três bitucas de cigarro, tão logo entrara em casa ele percebeu que o outro passara a tarde ali, naquele lar cujas prestações cobradas pela Caixa Econômica Federal eram pagas com o suor do trabalho dele. Mas fez que não percebeu nada de diferente.

Quando ela saiu do banheiro inquirindo-o acerca dos cigarros, instantaneamente deu-se conta de que eram do outro, os cigarros. E de modo tão instantâneo quanto percebera a obviedade da sua constatação, concluiu que se ela soubesse da verdade, seria bem provável que abandonasse o amante, furiosa, e a vida voltasse a ser uma rotina de ofensas e agressões.

Preferiu assumir a paternidade daquela criança que não tinha absolutamente nada dele. Ele odiava cigarros. Mas, mais ainda, odiava a menor possibilidade de imaginá-la sofrendo pela mentira do seu amor escuso.

Assumiu de bom grado o fardo de ter que tornar-se um fumante após os quarenta anos, apenas para não despedaçar o coração da sua amada esposa infiel. O inconveniente foi ter que conviver com tragadas e fumaça de tabaco.

Pior ainda, ela aceitou o seu novo vício. Provavelmente pela culpa da traição, fez questão de ela mesma passar a comprar os cigarros do marido.

Agora, agonizando no leito do hospital, viu a esposa entrar no seu quarto com ar de cumplicidade. Esperou a enfermeira sair do quarto de paredes verdes e um ar de limpeza excessiva, abriu a bolsa e tirou de dentro dela um outro maço de cigarros, dizendo:

Tome, meu amor, sei que você está sofrendo. Se o médico já nos desenganou mesmo, não faz sentido te privar justo agora de algo que sempre te deu tanto prazer.

Ele olhou para o maço de Malboro nas mãos dela, sorriu, e foi neste exato momento que pensou em lhe contar toda a verdade. Afinal de contas, já fazia mais de dez anos que ela deixara o amante e passara a viver somente para ele e a família que haviam constituído.

Mas achou melhor manter aquela mentirinha apenas para ele. Olhou para ela, sorriu com o restinho de força que ainda lhe sobrava, e disse:

Hoje não, meu amor. Hoje não.

4 comentários:

Bruna Rafaella disse...

Essa foi boa...
mais que corno manso não?

Gabriel Felipe Jacomel disse...

achei o teu melhor texto (li todos do blog).

Shuzy disse...

O final ficou bonitinhooo
=*P

jean mafra em minúsculas disse...

lindo.

lindo porque engraçado, mas lindo porque a despeito disso é doído, forte, bem escrito - dá um drible no leitor.

adorei.