sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Instinto


Azar dos humanos, que na falta do instinto precisam valer-se da fala e suas variáveis comunicativas para estabelecer contato com seus pares, sempre sujeitos aos ruídos, falhas, interrupções e a interpretação que estará do lado de lá daquilo que foi dito.

Eles teriam sido felizes para sempre, caso houvesse um pouco mais de credibilidade naquilo que diziam. Mas ambos privilegiaram a mentira em detrimento à verdade em momentos chave. Já não eram dignos da confiança recíproca que nina o sono dos bons amores.

Felizes dos gatos que, munidos de um instinto infalível, detectam no faro aqueles que são dignos do seu raro crédito. Tal qual o instinto de Zica, a gata preta que ele adotara numa feirinha realizada no estacionamento do Shopping Center de menor audiência da cidade, e que valia-se de artifícios como a supracitada feirinha para tentar atrair clientes às suas desérticas lojas. Zica sabia que ele lhe trataria bem, e não exigira dela o apego subserviente e imbecil que os cachorros requerem.

Nossa, ele disse depois da primeira noite que tiveram despidos não só das roupas, mas também dos pudores dos casais recém conhecidos, nunca fizeram isso comigo. Ela sorriu um sorriso largo e amarelo de nicotina, um sorriso lindo (amarelo é uma cor linda, vide a paixão que o sol desperta), e disse, Quem ama engole.

Pareceu-lhe precoce a utilização do verbo amar, mas ainda que desprovido do instinto que em Zica sobrava, de algum modo sabia que ali havia alguma espécie de amor. Talvez uma espécie só deles, mas, ainda assim, amor. Talvez não dos bons, mas dos grandes.

Não foi muito o tempo em que estiveram juntos, mas, dada a intensidade dos momentos compartilhados, a cronologia habitual não era suficiente para medir a grandeza do sentimento que os aproximava.

Zica, que desgostava de praticamente todos os humanos que não fossem ele, dela gostava.

Instinto.

Aninhava-se em seu colo cada vez que ela entrava na pequena casa conjugada a uma outra, tão pequena quanto, cujo sofá fora descartado para que na ínfima sala coubesse o piano de parede dele, e no jeans da calça surrada dela, Zica espreguiçava as garras aparadas em prol da preservação dos móveis da casa alugada.

Na primeira vez em que a vontade de ficar em casa sozinho, tocando piano até que os vizinhos viessem reclamar, ao invés de admitir o seu desejo, disse que não poderia encontrá-la, pois o motor do seu carro havia fundido.

Ela acreditou tanto no infortúnio do seu amado, que enquanto ele viu o sol amanhecer tocando peças de Chopin, ela passou a noite em claro pensando em como ele estaria.

Na segunda vez em que um encontro agendado pra mais de semana fora desmarcado, ela disse que precisaria viajar as pressas para a sua cidade natal. Sua avó materna estava morrendo, era sua última oportunidade de se despedir daquela que fora fundamental na sua criação. E enquanto ele dedilhava ao piano o réquiem de Mozart em homenagem a avó moribunda, ela tomava um chopp com um colega de faculdade num bar perto da casa dele. Os fatos não passaram do chopp e, sendo assim, levando-se em conta que para consumação da traição há a necessidade do acontecido, desconsiderando-se portanto os pensamentos e vontades implícitas, ainda que ornamentados por uma indecente troca de olhares, nada demais houve.

Na terceira vez o pai dele teve um princípio de enfarto para que ele pudesse exercitar Musette, de Bach. Mesmo sabendo que ele era ateu, ela rezou pelo pronto restabelecimento do sogro, então desconhecido.

Na quarta vez, uma crise de enxaqueca a prendera em casa, seria companhia desagradável. E, enquanto ele entretia-se com um destes detestáveis programas humorísticos de sábado a noite, ela foi dançar com amigos numa boate gay e, mesmo tendo se sentido profundamente atraída por aquele que parecia ser o único hétero do ambiente, não respondeu ao bilhete que o garçom lhe entregara, em respeito a ele.

Na quinta vez, depois que ele disse que precisaria ficar estudando para uma prova dificílima da faculdade, uma peça que nunca havia executado, ela resolveu dar a sua corrida da madrugada por um trajeto diferente do habitual, e o encontrou sentado num banco de frente para o mar, bebendo cerveja enquanto olhava o branco amarelado que a lua derramava naquele cantinho de oceano. Ficou magoada por descobrir a mentira, e lhe disse, Bastava você dizer, “hoje eu quero sair só”, eu entenderia.

Na sexta vez, quando depois de se recuperar milagrosamente, novamente a avó dela fora atirada a cama e, agora era certo, não escaparia, ele resolveu sair para beber e esquecer dos problemas, enviando pensamentos positivos para a matriarca anciã, desejando que não sofresse no fim, já que não acreditava que haveria algo depois daquele instante. Da mesa afastada e escura do bar, a viu entrar com um outro rapaz, vestindo camisa do Boca Juniors e vergonhosamente mais atraente do que ele. Ficou a distância observando os gracejos contidos de ambos, imaginando que no fim da noite ela sorriria seu sorriso amarelo para ele, e, depois da surpresa do rapaz, diria, Quem ama engole. Antes de ir embora, passou pela mesa dela e puxando um cigarro, perguntou como se não a conhecesse, Me empresta o isqueiro, por favor.

Depois de uma calorosa discussão e muitas caixas d’água cheias de lágrimas de ambos os lados, ela conseguiu o perdão dele sob a promessa de que, a partir de então, falariam irremediavelmente a verdade.

Na sétima vez, ele telefonou pra ela dizendo que precisaria ficar trabalhando até mais tarde. O labor lhe exigira um prazo desumano e, portanto, estava impelido pela ética profissional a abdicar do prazer da companhia dela. Ela entendeu. Só não entendeu quando horas mais tarde o encontrou, novamente, bebendo sozinho num posto de gasolina. Eu lhe disse, bastava você dizer, “Hoje eu quero sair só”, eu entenderia.

Apesar da decepção pela promessa descumprida, duas semanas depois, a vontade que ambos sentiam um do outro, desfez a desavença.

Na oitava vez, ela lhe disse que alguma coisa no almoço devia lhe ter feito mal, estava indisposta, não seria um bom dia para se encontrarem. Quando foi à locadora buscar um filme para entreter sua noite solitária, a encontrou ao lado de um outro amigo, com 9 e ½ semanas de amor nas mãos, e um sorriso amarelado não pela nicotina, mas pela falta de justificativa para o flagra, nos lábios.

Depois de dois meses em que a separação fez da vida deles um filme chato, sem graça, por telefone combinaram que se encontrariam no sábado seguinte. Amavam-se, oras, que se deixasse de lado as pequenezas da vida, e todos os esforços fossem concentrados naquilo que de fato importava. O amor, talvez.

Aconteceu que, duas horas antes do encontro marcado, ele telefonou para ela dizendo que não poderia encontrá-la, pois Zica adoecera, não respondia aos chamados dele, a preocupação impedia-o de qualquer outra atitude que não fosse levar a gata preta ao veterinário e dedicar todos os esforços e recursos que estivessem ao seu alcance para salvá-la.

Ela respirou fundo, e disse-lhe, Mas você é mesmo um grandessíssimo filho de uma magnânima puta de oitava categoria, seu merda! Em seguida, desligou o telefone para nunca mais atender qualquer chamado dele, não sem antes, ouvi-lo chorar aos gritos, Não, não, não! Indiferente, ela desligou.

Poucos sabem. Mesmo entre os mais experientes criadores de gatos, poucos sabem que gatos são os únicos seres que morrem de fome por opção, quase que por rebeldia.

Na maior parte dos casos, basta alternar o sabor da ração que é oferecida ao bichano, que ele prontamente volta a se alimentar.

Contudo, nas duas últimas das oito semanas em que o casal esteve separado, por mais que ele alternasse as rações, não houve jeito de fazer Zica comer. Emagrecera de maneira assustadora e, nos últimos dias, sequer tinha forças para dirigir-se a dignidade da sua caixinha de areia.

Se na primeira vez em que a solidão o convidou para sair ele dissesse a ela, Hoje eu quero sair só, ela compreenderia e respeitaria.

Se na primeira vez que aquele calor visto por muitos como pecaminoso a tomasse, ela dissesse a ele, Eu te amo, mas tenho minhas vontades. Quero envelhecer ao teu lado, e ainda que vez ou outra esteja em outros lençóis, não me interessa acordar em algum que não seja o seu, ele compreenderia. O amor que sentia por ela estava acima da necessidade de posse, mas abaixo da tolerância a mentira.

Se os humanos fossem dotados de instinto ao invés da fala, ela saberia que daquela vez ele estava falando a verdade. E, por falar a verdade e ter plena consciência do quanto amava a pequena vira-latas, saberia que a perda da sua gata lhe doeria mais do que um hipotético pai enfartado. Tivesse ela instinto, saberia que quando ele gritou, Não, não, não! ao telefone, referia-se a constatação do fato de que sua gatinha havia cessado para sempre a respiração que lhe estava tão difícil. Tivesse ela instinto, faria a ele companhia naquele momento tão dolorido, até por compartilhar da dor, pois ela também amava a bichana.

Assim como os demais humanos, nenhum dos dois era dotado de instinto e, deste modo, nunca mais tornaram a se encontrar.

Eles só tinham amor, e isso nem sempre é o bastante. Melhor seria se tivessem instinto.

Mas, instinto, só quem tinha era a Zica.

E, enquanto eles passarão os seus respectivos sempre separados, Zica está morta.

Um comentário:

jean mafra em minúsculas disse...

gostei muito, david, mas acho que podia ser um pouco mais suscinto. ficaria melhor, acho.

mas é só um palpite de um amigo metido.