quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Não é nada disso que você está pensando


Depois de duas escandalosas puladas de cerca, ela sabia que não seria qualquer argumento que o convenceria a perdoá-la mais uma vez. Teria que ser extremamente persuasiva para provar a ele o que ela sabia bem, tinha certeza, aqueles deslizes jamais se repetiriam.

Durante mais de três meses, ele sequer a atendera, se recusava a ouvir a voz dela, mesmo sofrendo, chorando todas as noites de tanta saudade que sentia da mulher que amou mais do que a qualquer outra.

Contudo, a profunda dor de corno que instalara-se no peito que havia se programado para sentir apenas amor por aquela mulher, não fora maior do que a saudade que o consumia com mais voracidade do que ele emendava seus consecutivos e ininterruptos cigarros e esvaziava garrafas de frisantes demi-sec (queria sofrer com algum glamour, e pensou que beber sozinho a bebida preferida dela, seria uma maneira só sua de se vingar da cadela, como carinhosamente passou a chamá-la), companhias das noites mal dormidas desde a separação.

E foi por reconhecer-se refém da saudade que o maltratava, que aceitou encontrá-la uma vez mais no apartamento que antes faziam de lar, e que no flagrante do adultério ele abandonara para instalar-se no quarto dos fundos da casa da mãe, uma senhora viúva e que, apesar de saber que seu filho já se aproximava a passos largos da casa dos quarenta, ainda o tratava por “meu menino”. Mesmo com os apelos da velha senhora para que ele desistisse da ideia, dizendo, É como você mesmo diz, aquilo lá é uma cadela, não te merece. Ela repetir o erro de te trair, não me surpreende, mas daí a você repetir o erro de perdoar, já é demais, meu filho. Mesmo assim, ele foi.

Ela sabia que não teria outra chance, tanto quanto sabia que não seria feliz ao lado de qualquer outro homem da face da terra, e por isso tratou de caprichar nos preparativos da reconciliação com tanto empenho, quanto sabia que teria para fazer dele o marido mais orgulhoso da esposa que voltaria a ter. Não cometeria mais o menor deslize, seria devota a ele como mulher nenhuma jamais fora ao seu amado.

Por mais avessa que fosse ao trabalho pesado, ela mesma fez questão de juntar-se à faxineira para ter certeza que cada menor milímetro do apartamento estivesse brilhando naquela noite. O cenário da reconciliação deveria estar impecável. Lamentou que o chão fosse coberto por um daqueles antigos carpetes, parque de diversão e procriação de todas as variedades de ácaros que já se catalogou, e uns tantos outros ainda não descobertos pela ciência. Se fosse porcelanato que cobrisse o chão que pisavam, seria ainda maior a sensação de limpeza.

Espalhou pelo chão de todo o apartamento uma quantidade exagerada de pétalas de rosas. Mesmo sofrendo crises assassinas de enxaqueca, em cada cômodo da casa acendeu um dos incensos que ele tanto gostava, e que ela nunca permitia que ele acendesse para tentar diminuir a probabilidade de mais um dos seus acessos de dor de cabeça. Pelo perdão dele, até a enxaqueca ela suportaria sorrindo.

Comprou uma lingerie do jeito que ele sempre pedira, mas que ela se recusava a usar por considerá-la vulgar. Não é que eu fiquei gostosa? Disse olhando-se no espelho após ter experimentado a peça de pouco pano e muito preço, Bem gostosa, reforçou admirando o fio que divida suas nádegas bem feitas.

No forno, deixou assando o salmão que seria servido com o molho de maracujá que repousava a espera do peixe.

Espalhou por toda a casa velas. Muitas velas. Velas de tamanhos variados, cores sortidas, tudo para ambientar o máximo possível o amor que ela queria de volta para si.
A hora marcada se aproximava, não tardaria para que ele chegasse.

Encheu a banheira com essências aromáticas, e foi banhar-se para que sua pele ficasse tão perfumada a ponto de ele considerar a reconciliação nem que fosse por tesão. Para ela bastaria.

Com medo de que ele chegasse um pouco mais cedo do que o combinado, como era seu costume – caso não fosse não a teria flagrado duas vezes – acendeu cada uma das velas, pois, assim, chegando ele antecipadamente, o ambiente já estaria pronto para recebê-lo, e foi mergulhar na banheira que a esperava.

Uma coisa que ela não havia premeditado é o temperamento sádico do amor. Se fosse mais atenta, saberia desta índole reprovável do escravista sentimento, já que fora ele mesmo que forçara os já citados flagrantes.

Sendo assim, eis que por uma mínima fresta aberta da janela, o amor soprou com um pouco mais de força do que o vento, derrubando duas das dezesseis velas acesas, o suficiente para que tombassem sobre o carpete velho, e iniciassem ali um incêndio incontrolável.

Quando ela deu-se conta do que ocorria do lado de lá da porta do banheiro, avisada pela fumaça que insistia em fazer companhia a ela na banheira cheia de água e óleos aromáticos, já não havia como sair de lá.

Seu Roberval, o porteiro do prédio, primeiro sentiu o cheiro forte, depois percebeu a fumaça que avançava afoita pelos corredores.

Com um chute forte, colocou a porta abaixo e deparou-se com o apartamento de decoração refinada – apesar do carpete – sendo consumido com pressa pelas labaredas gulosas. Gritou por ela, e ouviu os gritos desesperados vindos do banheiro.

Não pensou duas vezes, foi correndo até lá, com muita dificuldade abriu a porta que não estava trancada, e a viu encolhida na banheira rodeada de fogo. No momento que foi tentar tirá-la de lá tropeçou no tapete do banheiro, bateu com a cabeça na beira da pia e caiu desmaiado sobre ela, dentro da banheira.

Em poucos minutos, ambos morreram carbonizados.

Morreu sem o perdão do homem que tanto amava e a quem, a partir daquele dia, pretendia oferecer uma fidelidade maior e melhor do que dizem ser a canina.

No enterro, quando Adalberto, padrinho de casamento e melhor amigo do casal, foi abraçá-lo e prestar as condolências típicas da ocasião, disse em tom de conforto, Os médicos disseram que ela morreu asfixiada pela fumaça, o que fez que fosse mais rápido e menos doloroso do que se morresse queimada, ouviu o amigo recém-viúvo dizer:

Antes tivesse morrido carbonizada, para sofrer bastante! Depois de me trair duas vezes e me convencer a tentar uma terceira, morreu dando para o porteiro na banheira que era nossa, aquela cadela!

Um comentário:

Bruna Rafaella disse...

Ahhh tadinha, você também hein!
eu sei, eu sei, eu sei não posso ser boazinha também, não temos que ter só finais felizes ou estranhos...
mais ela não precisava ter morrido, mais gostei, gostei mesmo, como sempre e sempre.

Mudando de assunto: que time tu torce? talvez você esteja vendo o clássico Palmeiras e São Paulo agora ou não?. É só uma dúvida minha, porque sempre te imagino em meio a livros e ao blogue, tipo um clássico escritor, não qual você já é, só falta o clássico, mas...
não me chame de doida, apenas penso e falo o que penso sem pensar...



Beijo