quarta-feira, 6 de abril de 2011

A Morte, o amigo da Morte e o Destino


Diferente da maior parte das pessoas que possuem dons mediúnicos, ele não falava com mortos, tratava diretamente com a Morte em pessoa.

Não precisava de rituais, de retiros, nada disso. Ela aparecia quando precisava desabafar, tinha nele um amigo, um confidente. Por que poucos sabem, mas a Morte é sensível. Não gosta do seu trabalho, mas foi este o ofício que lhe coube, um dos tantos desígnios incompreensíveis de Deus, e não há maneira de colocar-se contrário a eles. Se o Homem mandou, tem que fazer. Pelo menos para as entidades do além, que apesar de gozarem de uns tantos privilégios como a vida eterna, livre arbítrio não têm.

Tomava o cuidado de aproximar-se do seu amigo apenas quando ele estava sozinho, pois não queria que as outras criaturas da terra taxassem aquele por quem tinha tanto apreço, de louco ou coisa parecida. Normalmente, aparecia quando ele saía para beber sozinho.

Gente boa que era, sempre conseguia deixar a Morte mais alegrinha cada vez que ela vinha com os olhos embotados de lágrimas tristes por ter capotado um ônibus cheio de crianças, ter derrubado um avião aqui, infiltrado um câncerzinho ali, enfartado um bom pai de família acolá, e por aí vai. Ele sabia o que dizer para diminuir a culpa secular que ela carregava nos ombros, os mesmos onde apoiava sua foice de lâmina inescapavelmente afiada.

Mas naquela noite a tristeza da Morte era maior, até o seu olhar caído e pesado tinha um ar diferente do comum, mais funesto do que a morbidez habitual adquirida nas tantas eras em que passara o tempo ceifando almas. Nunca trouxera a ele boas notícias, mas aquela era a pior que traria até então.

Daqui dois dias levo muito sofrimento para tua casa, disse a Morte, Chegou a minha hora? Perguntou o amigo da morte, Quem vai sofrer é sua mulher, Ele se engasgou com o gole que dava na sua cerveja, tossiu tentando recuperar o ar, e disse, Você não vai fazer isso comigo! Não sou em quem define as regras, você sabe, Não, você deve ter alguma autoridade, alguma autonomia, você já me disse que vez ou outra abre exceções, por que justamente comigo que sou teu companheiro de boteco você vai recusar uma exceção? Sinto muito, dessa vez não posso fazer nada, Nunca te pedi nada, mas peço agora, ela não, por favor, ela não, Desculpe, meu amigo, dessa vez eu realmente não posso fazer nada, Por quê? Por causa dele, disse apontando para um homem alto que acendia um cigarro na mesa dos fundos do bar, Quem é ele? O Destino, ninguém pode com ele, nem eu, só o Homem tem mais poder do que ele, mas Ele confia tanto no Destino, que jamais interferiu nas suas escolhas, E se eu for lá falar com ele? Ele vai dar risada, diferente de mim, gosta do que faz, Isso não é justo! E o que é?

Apesar do alerta, ele levantou-se e foi ter com o Destino na mesa dos fundos do bar.

Escute aqui, disse com a voz alterada, vermelho de raiva, você não tem o direito de fazer isso com ela, você tem ideia do quanto aquela mulher já sofreu na vida? Sem levantar os olhos, deu uma baforada para o chão, e respondeu com uma calma irritante, Claro que sim, fui eu quem quis assim, Como é que é? Isso mesmo, retrucou erguendo os olhos na direção daquele humanozinho que não fazia a menor diferença para ele, eu quis que ela passasse a vida sofrendo, Ela é uma ótima pessoa, ótima mãe, esposa que não poderia ter encontrado melhor, por que fazê-la sofrer desse jeito? Por que eu posso, por que eu quero e ponto final, não é você quem decide o que deve ou não acontecer na vida dela, ou mesmo na sua, quem define isso sou eu, Mas o que ela lhe fez de mau? Me acordou, no dia do nascimento dela eu estava dormindo tranqüilo, depois de ter fumado um belo baseado, e ela veio ao mundo berrando, uma vozinha irritante, estridente, me acordou da minha letargia chapada, fiquei puto e decidi, “Essa vai se foder na minha mão!”, Você fez isso por causa de um sono interrompido? Já fiz pior por menos, Ela foi abandonada pela mãe biológica, passou a infância num orfanato, foi adotada por uma família que não valia nada, foi abusada pelo pai adotivo, lutou bravamente contra dois tumores nos seios, isso tudo não é sofrimento o bastante para você? Para mim pode até ser, para ela não, quem manda ter me acordado? Você não vale nada, Eu sei, agora vê se para de me encher o saco se não quem vai se dar mal na minha mão é você! Faça comigo, então, não com ela, Sou o Destino, não mudo.

Voltou à mesa arrasado, sua amiga Morte colocou a mão sobre seus ombros e pediu-lhe desculpas, Você não tem culpa, sei que se pudesse intercederia por ela, Tenha certeza que sim, Como vai ser? Você não precisa saber disso, Eu quero, pelo menos já estarei preparado, Enfarto agudo do miocárdio, uma dor tão forte, que não terá forças para pedir ajuda, ficará agonizando por minutos que parecerão décadas, sofrerá bastante até que eu possa estar liberada para buscar sua alma, Ela já sofreu tanto, precisava sofrer até nessa hora? Ela ainda vai sofrer muito, não queria ser eu a encarregada de te dizer isso, mas ela ainda vai sofrer muito, Mas por que tanto sofrimento? Ele determinou que fosse assim, não posso fazer nada.

Apesar do desespero que sentia pela sentença anunciada, não deixou que sua mulher desconfiasse de nada. Pelo contrário, fez de cada segundo dos dois dias seguintes, os mais surpreendentes que ela já vivera. Queria que naqueles dias a vida dela fosse a melhor que uma pessoa já vivera. Jantaram no restaurante que ela sempre sonhara ir, mas as severas restrições orçamentárias sempre adiavam. Não preocupou-se com a coluna da direita do cardápio, ela poderia escolher qualquer prato, ele fazia questão que ela provasse a comida que sempre sonhou, que tomasse o vinho que sempre sonhou, a sobremesa que sequer imaginou. Passaram a noite na melhor suíte do melhor hotel da cidade, hidromassagem com vista paronâmica para o mar. Acordou-a com café na cama e uma quantidade incontável de rosas importadas. Não foi trabalhar, reservou o dia para passear com ela na mesma praia onde haviam dado o primeiro beijo e, por ser março, já não havia turistas, a praia era toda só deles. E fizeram amor no mar, e fizeram amor no carro, e fizeram amor na garagem, e fizeram amor na sala, e fizeram tanto amor que ambos ficaram exauridos. Ela convidou-o para tomarem um banho juntos, ele disse que ficaria mais um pouco deitado, ela foi ao banheiro. Quando quase pegava no sono, lembrou-se da sentença anunciada, e tentou se levantar rápido para estar do lado dela, para tentar ajudá-la, socorrê-la caso fosse no banheiro que acontecesse o enfarto. Mas foi na hora em que tentou se levantar, que sentiu a pontada aguda no peito. Ouviu a mulher cantando no banheiro, tentou dar um passo e desabou no chão. Era tanto formigamento no braço esquerdo, que já nem o sentia. Tentou gritar, lhe faltou o ar. Outra pontada, agora ainda mais forte, fez com que fechasse os olhos de tanta dor. Tentou respirar, o ar queimava. Tentou chamá-la, pedir ajuda, mas o corpo estava tão determinado em sentir dor, que não sobrara espaço para que sua voz produzisse qualquer tipo de som. Quando a dor parou, sua amiga Morte estava ao seu lado, chorando copiosamente por ser forçada a cumprir sua missão. Ainda zonzo, percebeu que o Destino estava sentado na poltrona de leitura que tinham no quarto, rindo efusivamente como se assistisse a mais divertida das comédias.

Quando viu a esposa entrar em estado de choque ao sair do banheiro e encontrar caído e gelado o corpo que ele já não habitava, olhou assustado para sua amiga Morte e perguntou, Que merda é essa? O que está acontecendo aqui? Me explica, que merda é essa que tá acontecendo aqui?

A Morte chorava tanto que não conseguia pronunciar uma frase sequer. Tentava, mas as frases saíam ininteligíveis.

Deixa que eu explico, disse o Destino, ainda rindo escandalosamente, Negócio é o seguinte, quando essa desgraçada nasceu, eu disse que ela passaria toda a sua vida sofrendo tudo o quanto é possível uma pessoa sofrer. E deu tudo certo na minha determinação, até o dia em que você a encontrou naquela praia. Desde então ela esqueceu que deveria sofrer. Você foi tão bom marido, tão presente, tão carinhoso, tão cuidadoso que ela não só esqueceu de tudo o que a fiz sofrer na infância e adolescência, como teve forças de sobra para superar dois tumores que deviam tê-la feito definhar por anos e anos, mas por culpa do seu amor, recuperou-se com uma rapidez irritante, uma verdadeira afronta às minhas determinações. Eis que, contrário ao que eu determinei, ela era feliz. Por sua culpa, a desgraçada era feliz. Mas, agora, resolvi meu problema. Perder você será, com certeza, o maior sofrimento que essa desgraçada vai ter na vida. Não vai ter como ela superar, pois, acredite, nós aqui de cima, do outro plano astral, conseguimos dimensionar direitinho o tanto que ela te ama. Para dar pitadas de requintes de crueldade no meu plano maligno, você acabou colaborando sem saber. Você fez tanta coisa boa nos dois últimos dias, que agora a sua dor vai ser maior ainda, pois além das lembranças anteriores à estes dias finais, as mais recentes ficarão para sempre na memória dela. E, mais do que isso, ela vai viver por muito, muito, muito tempo, sofrendo mais e mais a cada ano que se passar. E não permitirei que tenha Alzheimer, para que se lembre com riqueza de detalhes de cada segundo vivido ao seu lado.

Assim, na próxima vez, ela vai pensar duas vezes antes de me acordar. Desgraçada!

3 comentários:

Bruna Rafaella disse...

Que destino filho da puta!
hahahahhaha....
hiário!

Anônimo disse...

Hilário?
Será que lemos o mesmo texto?

Nayana. disse...

é, filho da puta de marca maior.