quarta-feira, 1 de junho de 2011

Final feliz


É com dolorido pesar que recorro ao tema da perda de alguém querido.

Há meses atrás fiz um texto sobre o namorado de uma amiga minha muito especial, que na pressa típica que se tem aos 26, partiu cedo demais.

Hoje, volto ao tema com o coração partido e ainda sem entender a brutalidade da vida.

Acho que nunca entenderei. Se já abandonei há tempos a vontade de entender a brutalidade dos homens, que dirá da vida.

Acontece que no último domingo, dia 29 de maio, minha irmã me ligou dizendo que haveria um almoço na casa da minha mãe, acontecimento difícil de recusar, pois além da companhia divertida da minha família, há sempre o sabor da minha mãe. Sinto por todos aqueles que não terão o privilégio de experimentar os dotes culinários de Dona Teresinha, mas duvido que haja outra pessoa no mundo, homem ou mulher, com tanto talento na culinária quanto ela, é assombrosa a facilidade com que ela transforma ingredientes banais em obras de arte.

Mas, apesar do tentador convite, declinei, pois já havia me comprometido com alguns amigos muito queridos de ir a um almoço com eles. Era um grupo pequeno de amigos, seleto, pessoas tão boas quanto divertidas e interessantes, recebidos com o carinho corriqueiro com que sempre somos recebidos por Ana Carina e seu marido, Jean Mafra.

Dia do jeito que eu gostaria que fossem os 365 que preenchem o calendário, céu azul e ar gelado.

Já falei do Jean um punhado de vezes neste espaço, é sem dúvidas uma das pessoas que mais admiro, e, mais do que isso, um dos amigos que espero ter até o fim da minha vida sempre preto de mim.

Mas talvez tenha cometido a indelicadeza de nunca ter falado da Ana Carina.

Conheço a Aninha antes mesmo de ter conhecido o Jean, estudamos juntos na época das espinhas, grupo de jovens e namoro atrás do ginásio durante as gincanas do colégio. Já tentei algumas vezes, mas não sei se consegui deixar suficientemente claro o quanto gosto dela.

Na época em que estudávamos juntos, Jean cortava o cabelo do meu irmão, tinha uma banda chamada Psicosapos, eu tinha uma banda chamada Boi Verde (ambos os nomes inspirados na ideia divertida de juntar bichos ao rock, originada no interesse comum pela banda Pato Fu), e alimentava um profundo apreço em odiá-lo. Tudo por que, certa vez, ele escreveu num pasquim qualquer que um show do Dazaranha seria mais divertido do que um do Pink Floyd. Aquilo mexeu com meus brios.

Ana Carina não achava nada demais no Jean.

Mas, um dia, eles se apaixonaram.

Outro dia, eles namoraram.

Outro dia, eles casaram.

E, hoje em dia, são o casal mais lindo que eu conheço, de uma pareceria e cumplicidade rara, admirável. Entendem-se e respeitam-se de uma maneira que, se fosse comum a todos os que habitam esse planeta em fase terminal, o tal do planeta seria certamente um lugar muito melhor para se viver.

Acontece que, desde antes do Jean surgir, vez ou outra eu freqüentava a casa da Aninha. Existe em algum lugar do passado, uma foto dela me segurando no colo, na sua festa de 15 anos.

Acontece que, desde esta época que data lá de um pouco antes da metade de anos que hoje carrego nos ombros, os pais dela sempre cultivaram o hábito de receber quem quer que fosse com um sorriso no rosto. Com alegria. Com carinho.

A casa da Aninha sempre foi um lugar que, uma vez convidado, você moveria céus e terra para estar presente, pois saberia que sairia de lá muito mais feliz do que entrou, de tão bem acolhido que sempre se é.

Acontece que, boa parte desse aconchego que a casa dela sempre ofereceu, estava no sorriso largo e luminoso do seu Normélio, ou, Normeletas, como carinhosamente Jean o apelidou.

Acontece que, no último domingo, aquele dia lindo de céu azul e ar gelado, Normeletas nos preparou, junto com as filhas e filho, um irrepreensível entrevero, prato lageano delicioso.

Ofereceu também uma cachacinha especial que ele guardava para oferecer aos que ele queria bem.

A salada servida fora plantada por ele. Procure a melhor do supermercado, não vai chegar nem perto.

Proporcionou aos privilegiados convidados, tão habituados a pressa cotidiana da internet e dos fast-food nosso de cada dia, a delícia do sabor da infância, ao descascar duas toneladas de cana, e fazer com que todos provássemos o doce que brota na horta que ele cultivava com tanto carinho quanto recebia os convidados.

Acontece que ele brincou com a pequena Bruna, uma menina linda a espera do irmão que curte as últimas semanas do conforto do ventre materno.

Acontece que ele recusou o convite de estar em Brusque ao lado da esposa, outra pessoa linda que nos recebe sempre com os braços abertos e sorriso no rosto, pois queria estar com os filhos e os amigos destes.

Acontece que na noite de segunda ele dormiu ao lado da esposa contando como estava feliz pelo domingo passado ao lado dos filhos.

Acontece que, as 05:00 da manhã de terça, segundo o que me contou Jean, diferente do que era do seu costume, ele esqueceu de acordar.

Acontece que, quando a Maittê me ligou dizendo, O pai da Ana Carina morreu, eu pensei, Não, você está enganada, ele estava comigo no domingo, forte, alegre, sorridente, brincalhão, deve ser outro pai, não o dela.

Acontece que eu estava errado. Era ele mesmo.

Ontem a noite eu fui a um lugar que não ia há muito tempo, uma igreja. Sou ateu, como já deve ter ficado claro muitas vezes em meus textos pessoais e contos, mas fui lá para estar perto dele, que era tão querido e sempre me recebeu tão bem, uma última vez. E também para dizer aos que ficaram que, por mais pessoas que já tivessem dito o mesmo, se precisassem, que contassem comigo.

Fiquei triste pela despedida, mas estranhamente feliz por perceber que, por mais dor que uma perda cause, havia na atmosfera uma resignação bonita de que, apesar da inevitável dor, ele foi uma pessoa muito feliz, tão feliz, que os que estavam ao seu redor eram felizes também. São felizes também, por que foi assim que ele sempre ensinou que se deve viver: feliz.

E eu, que sou escritor, vi o rosto de cada um dos filhos como um capítulo lindo que ele escreveu a quatro mãos ao lado de sua esposa, dona Dilma. E vi também, nos olhos inchados e doloridos das pessoas que quero tanto bem, a certeza de que, assim como um livro lindo que terminamos de lê-lo com profundo pesar, por sabermos que dificilmente encontraremos uma história tão bonita facilmente, aquela história encerrava-se com um final feliz.

Feliz como aquele domingo que já me mata de saudade, com céu azul, ar gelado e doce como a cana do quintal do seu Normélio.


(PS: A foto que estampa este post-homenagem, foi tirada no último domingo, dia 29, do lado esquerdo minha querida Aninha, no centro o delicioso Entrevero, e no lado direito o já saudoso seu Normélio.)

11 comentários:

Karla Koerich disse...

Nunca estaremos preparados para ela, mas quem um dia ela virá, virá. Melhor, então, que tenhamos tirado o mais bonito e proveitoso da vida. Pelo visto, seu Normélio fez bem o seu papel. =]

jean mafra em minúsculas disse...

david, meu querido,
obrigado, obrigado e obrigado.
pelo carinho, pelo texto, pela presença.

a ana carina se emocionou com teu texto, viu?!

um grande abraço,
um grande beijo.

Jaguarito disse...

lindo, meu querido.

me emocionei a cada linha lida.

Lamaringoni disse...

Lindo, lindo. como foi linda a homenagem ao seu Normélio na igreja, como foram lindos os amores perfeitos que ele plantou e que foram junto com ele.

como foi aquele domingo.


e doloridas e emocionadas são as lágrimas que escorrem do rosto de qualquer ser humano minimamente sensível ao ler esse texto.


obrigada, David, por nos emocionar a todos com tanta delicadeza.

Cibele disse...

Que lindo, Davi.

Temos agora que seguir as lições singelas do Normeletas: amar, cuidar dos nossos, regar as plantas e nunca esquecer que ele estará lá em cima nos guiando.

Será doloroso voltar aquela horta sem ele, mas devemos honrar a lembrança dele com alegria e amor.

Um beijo,

Cibele, Jacques, Bruna e Lucas

Karol Coelho disse...

Emocionante.

gracet disse...

faz tempo...não consigo dizer o quanto, esta é a produção textual mais incrível que li, faz tempo! E felizmente alguém, como vc que nem sei quem é, a partir da dor, engrandece a alma de qualquer mortal que se delicia com as palavras bem ditas porque são do sentimento, do coração...

Bagual disse...

Correu uma lágrima, depois apareceu um sorriso. Dos teus pessoais, achei este o mais especial.

Anônimo disse...

A vida nos surprende, e tbém nos deixa estagnados diante dê fatalidades, como a perda de um ente querido, certamente o Sr Normélio continuará plantando e regando muitas plantas das mais diversas belezas no jardim da eternidade. que deixou em tempo real, como um grande aprendizado do cuidar com amor do que e de quem amamos. sinto muito! boa produção textual e emocional. Força muita força aos familiares que por aqui ficaram, sem ao menos conhecê-los, um abraço.

Bruna Rafaella disse...

Triste.
E bela homenagem.

Vânia Parreira disse...

Oi Davi!

Demorei para escrever, mas quero engrossar o côro dos elogios ao texto e a sensibilidade expressa.
Tenho certeza que seu Normélio tá orgulhoso do que causou na gente!

beijão,

Vânia