terça-feira, 7 de junho de 2011

Outono


Era como se tivesse estacionado o seu coração num outono sem fim.

Fria, como deve ser uma boa tarde de outono, mas, ainda assim, uma frieza de céu azul. Como deve ser uma boa tarde de outono. Como querendo simular alguma espécie de calor humano que já não acreditava possuir.

Não o frio irremediável do inverno, quase sempre cinza e chuvoso, como se naquela época do ano deus se lembrasse de algum amor perdido, e fizesse desabar sobre o mundo a chuva de suas lágrimas divinas e o cinza nublado de sua fossa eterna.

Também não o céu azul e quente do verão, como se naquela época do ano deus se lembrasse da primeira vez que sentiu paixão, e na chama do sentimento que o consumia, fazia desabar sobre o mundo seus mais impiedosos raios ultra-violeta, para que o asfalto ardesse como ardia no seu sacro-santo peito o sentimento maior que toda a criação que faria e desfaria tantas vezes quantas lhe parecesse conveniente.

Do mesmo modo, o céu azul e ameno da primavera, como se naquela época do ano deus tivesse pego sua paixão de verão e transformado num sentimento melhor, que viria a atender pela alcunha de amor, não retratava com a menor fidedignidade os cacos emocionais que ela trazia no peito, as desventuras repetidas marcadas na alma como cicatrizes feias.

Não eram estas outras três estações, o retrato sequer aproximado do amontoado de desilusões que trazia no peito.

E, assim como o outono disfarça seu frio na pele fina do céu azul, escondia a alma triturada atrás de seios ainda lindos, apesar de já um bocadinho flácidos. É que o tempo, este vilão de atitudes torpes, alheio aos sentimentos e às estações do ano, não sente frio nem calor, apenas uma atração doentia pela lei da gravidade, e trata de puxar com toda a força que lhe está ao alcance das mãos, as coisas para o centro da terra.

Era como se tivesse estacionado o seu coração num outono sem fim.

E, para cruel entretenimento da coincidência, foi numa noite de outono tão fria quanto a mais mal intencionada das noites de inverno, que ela o conheceu.

Tão bonito, ele era.

Tão educado, ele era.

Tão gentil, ele era.

E parecia verdade as promessas feitas em tom de pedido.

Contudo, àquela altura da vida, promessas lhe pareciam calos indiferentes ao conforto do melhor sapato, vão doer e ponto final.

Gostaria muito de acreditar, mas as cicatrizes feias da alma a impediam de dar crédito a quem quer que fosse, mesmo a ele, tão bonito, tão educado, tão gentil, como se seu peito trouxesse a placa negra com letras tortas escritas com giz branco, Não aceitamos fiado.

Era mais ou menos assim que se sentia, a balconista de um boteco sujo que servia aos clientes seus sentimentos deteriorados, com validade vencida a eras, cervejas de má qualidade abrigadas em garrafas de rótulo bonito.

Refutou qualquer tentativa de condolência da parte dele, pois sabia que, naquela família, ela não era mais do que uma estante velha passada de pai para filho.

Ainda estavam distantes os quinze anos, mas, mesmo assim já não alimentava a ilusão do baile de debutantes, ela foi oferecida pela própria mãe por uma quantia mínima de trocados, talvez o suficiente para alimentar a família por uns dois meses, talvez não tanto, ao avô, que nada tinha de bonito, educado e gentil, e que fez dela uma mulher às pressas. E, vendo a mãe que ali havia uma fonte de renda suficientemente generosa para as compras do mês e a pinga do pai, tornou o acaso em rotina, alugando a filha como quem oferece o quarto dos fundos.

Quando o avô concluiu na sua sabedoria suja que era chegado o momento do seu filho, então com quinze recém completados, tornar-se homem, voltou à pequena que havia deflorado, para que fosse ela a responsável pela inauguração do seu varão.

E, depois de ter sido estante do avô, que a passou ao filho, hoje homem de respeito, ostentando a todos a dignidade putrefada da hipocrisia, havia chego a hora dele, o neto, tornar-se homem nos braços daquela que um dia fora uma jovem linda, e agora não passava de uma sombra meio bonita da juventude que um dia teve, assim como o outono frio de céu azul é uma sombra da beleza radiante do verão.

Todavia, diferente dos dois primeiros, ainda que de experiência nula na arte das alcovas, ele ofereceu a ela algo que não estava habituada: respeito. Do mesmo modo, diferente dos outros, ele parecia preocupado com o que ela estava sentindo. Sabia que tinha a obrigação de sair daquele quarto com a ereção plenamente consumida pela estante, hoje já velha, mas ainda bonita. Contudo, desde o primeiro momento, demonstrou estar muito mais preocupado em oferecer a ela alguma satisfação, algum cuidado, do que em realizar-se como homem.

E foi gentil, e foi cuidadoso, e foi carinhoso, e foi preocupado com ela. E propôs a ela amor, que para ela era sinônimo de trepada, mas, por alguns mínimos instantes, ele a fez crer que o significado daquele amontoado de vogais e consoantes tinham algo de bonito, não apenas de urgente.

Quando findado o ato, ele a quis para si. De um modo diferente do que tivera há minutos atrás. Não queria o desafogo dos hormônios, queria o aconchego da mulher. Queria a mulher. E pediu que fosse dele, ela disse o preço, ele falou que não se tratava de escambo, mas de amor.

Ela riu.

Ele pediu de novo.

Ela riu de novo.

Ele implorou.

Ela pediu que deixasse o dinheiro na cabeceira da cama e fosse embora.

Ele passou uma das mãos sobre a tintura esforçada em disfarçar os primeiros fios brancos daqueles cabelos tão lindos, beijou-lhe as rugas da testa, e disse, Não sou meu pai, não sou meu avô, você jamais será para mim o que foi para eles.

E partiu.

E não voltou.

Ela passou os vários anos que ainda teve que suportar, vivendo no seu outono eterno de ar gelado disfarçado pelo céu azul que antecipa as lágrimas divinas da fossa eterna do inverno.

Ele passou os vários anos que ainda teve que suportar, vivendo seu verão eterno de ar tórrido e céu de um azul lancinante, revoltante, a despeito da dor negra que trazia no peito.

Aquela noite de outono foi o mais próximo que ela teve do amor.

E por ser o verdadeiro amor o que ele teve naquela fria noite de outono, jamais aceitou dividir sua cama com outra mulher, sofrendo até o último dos seus dias no calor tórrido daquele verão que trazia no peito.

3 comentários:

Nayana. disse...

"Gostaria muito de acreditar, mas as cicatrizes feias da alma a impediam de dar crédito a quem quer que fosse, mesmo a ele, tão bonito, tão educado, tão gentil, como se seu peito trouxesse a placa negra com letras tortas escritas com giz branco, Não aceitamos fiado"

é lindo. mas ainda assim odeio quando escancaras isso.

Shuzy disse...

Não gosto de recortar citações do texto e colar aqui, mas, dessa vez foi 'automático':
"Aquela noite de outono foi o mais próximo que ela teve do amor."
É triste... E é tão bonito!

Bruna Rafaella disse...

Também concordo com a Shuzy...
é tão triste e tão bonito!
o que eu poderia te dizer???
Parábens !!!
amei, adorei, lindo!!!

Beijos