quarta-feira, 13 de julho de 2011

Artigo científico


Primeiro ele ligou, ela não atendeu.

Mil coisas perturbaram os pensamentos dele, um misto de suor frio com medo, raiva, ansiedade e culpa por sentir aquilo tudo. Mas sentia.

É que havia algo no passado dela que atormentava os pensamentos dele, como um farelo de madeira deixado no colchão por um cupim mal intencionado e que, por mais que se bata o lençol, não sai de lá.

Mas era coisa superada, ou ao menos assim deveria ser, dado o relacionamento que agora tinham.

Contudo, fingir que já não se sente a dor do chifre na testa calejada, é o mesmo que deixar a luz da sala acesa quando se sai à noite, crendo que o ladrão acreditará que não haverá ninguém em casa.

Na segunda vez que ligou, ela atendeu, mas com aquela voz de quem está no meio da consulta médica e não pode falar direito. Mas não era no consultório o lugar onde ela estava. Era na casa de um amigo que morava com outros amigos. Amigo de faculdade. E era para escreverem juntos um artigo científico, que haviam se reunido. Mas era julho e, por isso, estavam cessadas as aulas para a pausa inter-temporada prevista em todo calendário acadêmico de qualquer faculdade particular que se preze.

Ironicamente, ela atendera o telefonema dele daquela maneira reticente justo no dia em que ele decidira parar de fumar, ou seja, o que antes eram três carteiras por dia, em poucas horas tornaram-se seis. Ininterruptos, os cigarros.

E, assim, por mais que a amasse de uma maneira verdadeira, única e obscena, tanto era o êxtase que ela lhe proporcionava, a assombração da certeza primeira fez da suspeita segunda um martírio insuportável. Tanto que rompeu por e-mail, já que não seria capaz de ouvir a voz da mulher tão amada quanto, agora, repulsiva.

E refutou toda espécie de contato que ela tentara estabelecer nos dois dias seguintes, desligou os telefones, não acessou a caixa de mensagens do computador, dormiu na casa da mãe cujo endereço ela desconhecia, para evitar encontrá-la em frente ao seu prédio.

No terceiro dia, oposto ao terceiro daquele outro, morrera.

Enfarto.

Eram muitos os cigarros fumados consecutivamente. Se para um atleta já seria difícil suportar tanta agressão, imagine para um sedentário igual a ele.

Tivesse atendido algum dos tantos chamados dela, a teria ouvido jurar por tudo o que é mais sagrado, pela alma da mãe, do pai, da irmã, da avó, do cachorro, que não era nada daquilo que ele estava pensando. Que sim, estivera lá na casa do tal amigo da faculdade que morava com outros tantos amigos, mas única e exclusivamente para escrever um artigo científico derivado de um trabalho muito bem feito no semestre recém encerrado, cujo resultado fora tão bom, que o próprio professor os aconselhara transformá-lo em artigo científico. Valeria pontos para todos do grupo, caso um dia quisessem ingressar numa pós-graduação, mestrado, doutorado, ou seja lá o que for. Mesmo que já estivessem de férias. Mesmo que do grupo de oito pessoas, apenas duas demonstrassem disposição suficiente para se reunirem no período de descanso acadêmico.

Mas ele não deu chances às justificativas dela.

Tivesse ele acreditado nas justificativas dela, teriam se casado numa festa linda, embora reservada.

Tivesse ele acreditado nas justificativas dela, teriam construído uma casa linda, de tijolinho a vista numa praia distante, com um mezanino que abrigaria uma mesa de sinuca, conforme ele sempre sonhara.

Tivesse ele acreditado nas justificativas dela, comprariam um daqueles carros espaçosos que esperam por uma penca de crianças para ocupar os bancos traseiros numa baderna de fazer enlouquecer o mais paciente dos budistas.

Tivesse ele acreditado nas justificativas dela, teriam agora três filhos. Dois meninos e uma menina linda, o xodozinho dele. Olhos pequenos iguais aos dele, mas com a cor dos olhos dela.
Sorriso dele, dentes dela. Mãos dela, abraço dele. Temperamento do signo dela, insegurança do signo dele.

Tivesse ele acreditado nas justificativas dela, talvez não tivesse morrido, já que o provável culpado por aquela morte precoce não fora o cigarro de tantos anos, e sim a overdose de nicotina dos últimos dias.

Tivesse ele acreditado nas justificativas dela, certamente teria sido um homem muito feliz.

Tivesse ele acreditado nas justificativas dela, certamente ela teria sido uma mulher muito feliz.

Tivesse ele acreditado nas justificativas dela, certamente teria se enganado.

2 comentários:

Shuzy disse...

Cheguei a pensar que ele havia morrido em vão. Ufa que não!

Bruna Rafaella disse...

Não sei porquê, já desconfiava da morte dele no começo, a maioria dos seus textos de "romance" sempre acontece um final trágico ou surpreendente...


Beijos!