segunda-feira, 11 de julho de 2011

Histórias para fazer criança dormir


Quando ainda era muito pequeno, acostumou-se a dormir ouvindo as histórias que ela contava cheia de amor e carinho, repletas de moral e bons exemplos. Algumas sacadas da bíblia, outras daqueles velhos disquinhos de vinil coloridos, com capas coloridas e bichinhos falantes que ensinavam as crianças a respeitar os mais velhos, cuidar dos animais, comer tudo o que a mamãe colocar no prato, escovar os dentes após as refeições e jamais esquecer das palavrinhas mágicas: por favor, muito obrigado, me desculpe. A preferida dele era aquela que contava a história de um esquilo bondoso que, um dia, passeando na floresta, encontrava uma jiboia muito machucada, com fome e frio, prestes a morrer. O esquilo bondoso acolhia a cobra, tratava seus machucados, alimentava a nova amiga desamparada e oferecia a ela um cantinho na sua casa, para que se protegesse do frio daquele inverno severo que castigava os animaizinhos da floresta. Um dia, quando o inverno cedeu lugar aos primeiros raios de sol da primavera e a cobra já estava plenamente curada das mazelas que quase a levaram a morte, o esquilo acordou com uma sensação claustrofóbica, abriu seus olhinhos e viu que a cobra o enrolava por inteiro, esmagando seus pequenos ossinhos e já abrindo a boca para devorá-lo de uma só vez. Antes do bote final, o esquilo perguntava para a cobra por que ela estava fazendo aquilo, se ele fora o único que lhe estendera a mão quando ela mais precisou, a cobra respondia dizendo que ela já era uma cobra antes de conhecê-lo, era grata pela ajuda que lhe oferecera, mas nem por isso deixara de ser uma cobra.

A vida do menino havia sido muito difícil antes da adoção. Aquele velho livro de bolso comprado em banca de rodoviária, impresso em papel jornal, com a história que se repete na vida dos tantos desafortunados nascidos num país que nunca se levou a sério. Pai assíduo da penitenciária estadual, alcoólatra, mãe drogada, violência doméstica, pouca comida e muita fome, pouca roupa e muito frio, pouca esperança e muito vazio. Mas o menino era lindo e tímido, apesar da feiúra exibida do mundo que havia ao seu redor desde que nascera, há quatro anos.

Os filhos dela, do primeiro casamento, já estavam crescidos e, sem dúvida, eram boas pessoas, espelhadas no bom exemplo que sempre fizera questão de ser. Agora, com o acúmulo de anos que se intromete na vida das mulheres, as constantes tentativas de uma nova gravidez se mostravam à ela vestidas de frustração, ao invés daquelas lindas roupinhas de bebê que namorava nas vitrines das lojas do Shopping Center.

Contudo, apesar das negativas do tempo em lhe autorizar uma gestação após os quarenta, ela e seu novo marido estavam determinados em oferecer a uma criança um bom bocado daquele amor maduro que viviam.

E foi uma amiga que lhes contou que havia um conhecido que tinha uma vizinha em situação muito delicada, e disposta em ceder a quem quisesse, a guarda do oitavo filho que tivera, um menino lindo de olhos verdes e sorriso tímido, como se tivesse que sentir vergonha por vez ou outra sorrir seus dentinhos precocemente careados. Cederia de bom grado o menino a qualquer pessoa interessada, veria a cruz que lhe coubera carregar nas costas, um pouco mais leve, tirando dela o peso daquela criança subnutrida. Contudo, mesmo estando disposta a ceder de imediato o menino, não se faria de rogada caso os interessados lhe dessem algum dinheiro, sabe como é, esses são tempos difíceis, e no barraco que habitava já não havia muito o que trocar pelas drogas que anestesiavam a acidez daquela sina ingrata que deus lhe dera sem sentir-se culpado um segundo sequer.

Não fora difícil a adaptação, acostuma-se rápido com a bonança.

A dificuldade de aprendizado que o menino sempre apresentara era compreendida pelo dedicado casal como conseqüência das carências que ele sofrera nos primeiros anos de vida. Entendiam que as briguinhas que de vez em quando tinha com algum dos coleguinhas da escola eram parte do processo de adaptação àquele mundo que geneticamente não fazia parte, mas fora convidado a entrar sabe-se lá por quais intenções do destino.

A angústia que sentiram quando ele já divisava com a adolescência e ainda freqüentava as séries de crianças menores, eram consoladas pela possibilidade de pagar para o menino bons psicólogos e reforço pedagógico constante.

Não havia o que não fizessem para que ele se sentisse inserido naquela nova vida, eram compreensivos e cheios de um amor inesgotável. Sentiram que seria preciso endurecer um pouco no trato com o menino, quando o pegaram bebendo a cerveja do pai na geladeira da família, numa madrugada em que todos da casa já dormiam. Tinha quinze anos, o menino, nesta oportunidade. Deram-se conta que uma boa educação não é bastante se for aplicada somente com amor, é necessário dosá-la com disciplina e alguma rigidez. Crescer exige limites, que se aprenda esta lição no seio do lar ao invés de no punho da vida.

Mas, a despeito do seio do lar, era nos seios da irmã mais velha que o menino pensava. Disso deram-se conta quando o flagraram mexendo na gaveta das roupas íntimas da primogênita, cheirando-as com explícita excitação, na ereção que os hormônios juvenis são incapazes de disfarçar.

Como já havia ficado claro que não tinha o menor interesse pelos estudos, concluíram que arranjar-lhe um trabalho seria uma boa maneira de lhe forçar alguma responsabilidade. O pai conseguiu o emprego de officie-boy no escritório de contabilidade de um amigo. Ficaram muito preocupados quando souberam que ele havia sido assaltado na segunda semana de trabalho, e que os marginais que o agrediram haviam levado todo o dinheiro que tinha consigo para pagar as guias dos clientes do escritório de contabilidade. Ficaram mais preocupados ainda quando viram o caríssimo tênis novo que ele escondia embaixo da cama, numa caixa onde também estavam escondidos dois maços de cigarros e um boné ainda com etiqueta, exibindo um valor obsceno que certamente se recusariam a pagar, uma semana após o tal assalto.

A mãe chorava todas as noites tentando entender onde foi que falhara, o que deixara de oferecer àquele menino que tanto amava, o pai consolava-a dizendo que não desistiriam dele, fariam o que fosse preciso, mas fariam daquele filho um homem de bem.

No dia seguinte, uma sexta-feira, tiveram uma séria conversa com o menino, agora com dezesseis anos, avisaram a ele que estavam cerceadas as mordomias e que medidas sérias teriam que ser tomadas, e por mais drásticas que agora tais medidas parecessem, um dia ele ainda lhes agradeceria, e comunicaram-no que iria na semana seguinte para um internato, um colégio militar de tempo integral onde teria a educação firme e disciplinada que não souberam lhe dar, mas que agora se fazia imprescindível. Ele gritou dizendo que não iria, prometeu mudar, disse que pararia de mentir e de fazer coisas erradas, mas os pais foram firmes. Não era a primeira vez que ele lhes fazia aquelas promessas de redenção, em muitas outras oportunidades aquelas lágrimas de olhos verdes lhes convencera, não agora. A decisão estava tomada, e nada que ele lhes dissesse mudaria o que já era certo. Ele trancou-se chorando no seu quarto, deixando na sala o pai com a mãe nos braços, chorando ainda mais.

O irmão já não morava mais naquela casa. Às dez horas da noite, ouviu do seu quarto a irmã partindo com o noivo para uma festa de formatura. Às onze e quarenta e cinco, ouviu os pais desligarem a televisão da sala e irem para o quarto dormir, tentar descansar o peso daquele estresse familiar. Era meia noite e vinte quando ele vestiu o seu boné de grife e calçou o par de tênis caríssimo. Quando o rádio relógio do quarto anunciava que já era passada a primeira hora de sábado, trancou a porta do quarto dos pais por fora, e derramou sobre os vários carpetes que cobriam os largos corredores, todos os potes de álcool de cozinha que havia encontrado na despensa da casa.

No fim da primeira hora daquele sábado, do lado de fora da casa ele acendeu um cigarro e deu uma tragada profunda, soltou a fumaça devagar olhando ela subir para os céus e fundir-se com a fumaça que vinha da casa em chamas.

Enquanto ouvia os últimos ineficazes gritos de socorro dos pais, disse sorrindo para si mesmo, Eu já era uma cobra antes de conhecer vocês, sou grato pela ajuda que me ofereceram, mas nem por isso deixei de ser uma cobra.