terça-feira, 27 de setembro de 2011

O Branco Velho


Juliana tinha dessas coisas, não tomava uma atitude importante sequer sem antes consultar alguma entidade do terreiro que fazia ecoar o som dos atabaques três vezes por semana pelo bairro onde morava.

Não buscava alguma entidade em específico, gostava de variar de preto-velhos, caboclos, exus e pombas gira. Conhecia todas as entidades que baixavam naquele terreiro, sabia o que gostavam de beber e o que gostavam de fumar. Dependendo do seu humor ou mesmo do que estivesse disposta a conseguir, levava a oferenda preferida da entidade que buscaria, pois com a experiência que adquiriu no tempo em que já freqüentava o terreiro, cada entidade tinha mais eficácia em cada um dos campos das angústias de Juliana. Pretos velhos eram ótimos conselheiros quando o assunto era algum conflito familiar ou dificuldades no trabalho, exus eram certeiros quando queria afastar algum desafeto, não tinha mal-estar que as receitas dos caboclos não dessem jeito, pombas-gira eram infalíveis nos assuntos do coração, tanto quanto para afastar maus agouros de terceiros. Juliana conhecia todos, poder-se-ia dizer, até, que era íntima das entidades.

Foi numa segunda-feira, dia dos preto-velhos. Juliana notou que João Carlos, um dos médiuns mais antigos do terreiro, acostumado a receber Índio Tupinambá e, nas sextas-feiras, Seu Tranca-rua, estava sentado de maneira diferente do que estava acostumada a ver sentado o Vô Severino, preto velho que fazia João Carlos de mula. João Carlos não estava curvado, balançando pra trás e para frente num ritmo lento e continuado, pitando a cada três segundos um palheiro catinguento que insistia em não permanecer aceso, obrigando o assistente a, repetidamente, reacender o fumo da entidade. Os outros aflitos que foram ao terreiro naquela noite atrás de um algum alento para suas angústias, também estranhavam a postura estranha de João Carlos, em comparação com os demais que, curvados, pitavam seus palheiros e cachimbos enquanto bebericavam Cinzanos, cachaças e vinhos de garrafão.

João Carlos estava sentado com a coluna ereta, pernas cruzadas elegantemente, vez ou outra olhava para suas unhas como quem verifica se estão bem cortadas e limpas, e observava os demais com um olhar arrogantemente superior.

Apesar da estranheza, Juliana se aproximou de João Carlos, ou seja lá quem fosse. Quando chegou de frente a ele e abaixou a cabeça, curvando-se um pouco para que ele a pegasse pelos ombros e a trouxesse para perto de si, primeiro do lado direito, depois do lado esquerdo, para em seguida fazer sobre sua testa algum gesto parecido com o sinal da cruz, como faziam costumeiramente os preto-velhos, mas, depois de alguns segundos parada, Juliana percebeu que ele não fizera nenhum movimento. Ergueu os olhos e viu a mão direita de João Carlos estendida, como quem espera um beijo de reverência. Juliana arregalou os olhos, ele ergueu a mão na direção dela, sinalizando com a cabeça que sim, ela estava assim estendida para que fosse beijada. Ela, sem entender direito o que se passava, beijou a mão de João Carlos para, em seguida, vê-lo sinalizando com a mão direita para que se sentasse no banco na frente dele.

Vô Severino? Perguntou receosa Juliana. Ele sorriu com o canto dos lábios e balançou a cabeça negativamente. Chamou o assistente e cochichou-lhe algo nos ouvidos. O assistente olhou-o com estranheza, mas ele sinalizou com a mão para que fosse aonde tinha dito que deveria ir, para pegar o que tinha dito que era para pegar. Juliana permaneceu sentada de frente a entidade desconhecida, enquanto ele, a entidade, sem dizer nada, continuava a examinar as unhas esperando o regresso do assistente.

O assistente entregou a entidade uma cartucheira de couro, aparentemente muito fina, que a entidade abriu com elegância, tirou de dentro um charuto diferente daqueles que estava acostumada a ver no terreiro, e um acessório esquisito que Juliana só tinha visto em filmes, que a entidade utilizou para cortar uma das pontas do charuto e, em seguida, acendê-lo, dar uma demorada tragada, soltar vagarosamente a fumaça naquela atmosfera empesteada dos odores de fumos de péssima qualidade e fazer o semblante que só fazem as pessoas que provam algo tão saboroso que a conseqüência inevitável é o prazer.

Ah, os cubanos, disse a entidade, como eles me fazem falta...

Juliana permanecia estática e silente pela estupefação, quando, após a segunda baforada no cubano, a entidade dirigiu-se a ela, e disse, Permita-me que eu me apresente, Dr. Hipólito Albuquerque de Almeida Fragoso, não vou dizer que sou seu criado, mas vim aqui para lhe dar os aconselhamentos que já estava ciente que virias procurar.

Juliana não disse nada, apenas abriu a boca e a manteve aberta pela surpresa.

Feche a boca, menina, disse a entidade, seus dentes não são bem cuidados, essa imagem não é bonita. Não vim do além até aqui para presenciar estas obturações mal feitas. Se aceitas um primeiro conselho, procure um bom dentista e substitua estas amálgamas por resina, o preço de uma para a outra já não é tão diferente assim.

Cadê o Vô Severino? Perguntou Juliana.

Ele não mais virá, disse a nova entidade. O espaço no corpo deste médium que agora ocupo, passa, a partir de hoje, a ser meu por direito. Ele já cumpriu o que precisava cumprir, agora é minha vez de estagiar neste lugar de pessoas de sensibilidade pouco apurada.

O quê???? Perguntou Juliana, zonza de tanta surpresa.

Isso mesmo, minha cara, a partir de hoje, espero que não por muito tempo, este espaço, este corpo, passa a ser meu todas as noites que, no calendário de vocês humanos, é chamada de segunda-feira, respondeu a entidade.

E você, o senhor, também vai dar conselhos como o Vô Severino dava?

Acredite, menina, caso os sigas, hás de perceber que meus conselhos hão de ser bastante melhores do que os que lhe dava aquele velho senhor semi-letrado.

Mas o senhor não fala como um preto-velho.

Sorte sua, menina, além de conselhos, sairás daqui também com alguma cultura.

Desculpe, estou um pouco assustada, é que não estou acostumada com um preto-velho que fala desse jeito.

Assustado fico eu, minha cara. Você sempre deu tanta credibilidade para entidades que sequer sabem alguma coisa de concordância numeral, e resolve questionar a autenticidade justamente de quem fala corretamente? Já tinha seu histórico nas mãos antes mesmo de incorporar neste rapaz, mas, me desculpe a franqueza, sua estupidez realmente me assusta.

Como é que é?

Bom, sejamos práticos, pois meu tempo é curto e sua compreensão limitada. Tentarei ser o mais objetivo possível, para que ambos economizemos o tempo escasso que temos. Me perguntarás sobre mais esta crise com tua mãe, e te digo, ela está certa! Aquele rapaz não vale nada, é um cafajestezinho de quinta categoria, te jura amor eterno, diz que quer casar contigo, mas, além de ti, tem outras duas namoradas, uma noiva, uma esposa e quatro filhos. Um com a tal da esposa, dois com a ex-esposa, e o primeiro com uma antiga namorada, que já entrou com uma ação contra ele por falta de pagamento da pensão alimentícia. Ouça sua mãe e largue o rapaz, antes de presenciar o infeliz ser algemado pela denúncia da ex-namorada, mãe do primogênito do cafajestezinho. Não é sempre que sua mãe acerta, mas, ao menos desta vez, ela está certa.

Juliana, mais uma vez abriu a boca, espantada.

Feche a boca, por favor. E, também, por favor, não esqueça do meu primeiro conselho. Resina, minha querida, resina.

Sem que Juliana dissesse nada, a entidade continuou. Não, minha cara, não largue o seu emprego. Enquanto não aprenderes pelo menos a falar corretamente, não conseguirás nada muito melhor do que o caixa do mercadinho que hoje ocupas. Enquanto não aprenderes que “pra mim fazer”, “seje”, “menas”, são afrontas inafiançáveis a um mínimo de civilidade que todo mundo deveria nascer possuindo, ficar trocando um sub-emprego por outro não irá resolver o seu problema. Se não quiseres estudar, fica mais um conselho, dê de uma vez para o seu gerente. Você não será promovida, mas conseguirá um pequeno aumento que ele dará não pela sua competência, mas por medo de entregares o casinho para a sua esposa.

Juliana esfregou os olhos, respirou fundo e perguntou, Vem cá, o senhor é mesmo um preto-velho?

A entidade deu mais uma baforada no cubano, sorriu com desdém e devolveu outra pergunta, Vem cá, menina, já conheceste algum preto com tantos sobrenomes quanto os meus?

Juliana não respondeu, mas olhou para ele com o olhar daqueles que esperam o complemento da informação dada pela metade.

Não, minha cara, eu não sou um preto-velho. Eu sou, digamos, um branco-velho.

Como assim? Perguntou Juliana.

É que o além anda com umas ideias de responsabilidade social, e resolveu imitar alguns novos hábitos da terra. Entrei neste terreiro pelo sistema de cotas. Sou o único branco daqui. Cotas,sei que tu já ouviste falar.

Juliana se levantou, beijou novamente a mão da entidade com título de doutor, e foi embora.

Embora quisesse agir como uma mulher moderna e sem preconceitos, Juliana tinha lá seus preconceitozinhos. E, mesmo não admitindo para ninguém por medo de ser recriminada, dizia para si mesma que jamais se consultaria com um médico que tivesse se formado depois de ter ingressado na faculdade pelo sistema de cotas, em detrimento a outros tantos que mereceriam ter entrado pelo tanto que estudaram.

Do mesmo modo, não poderia levar a sério os conselhos dados por uma entidade ingressa no terreiro pelo mesmo sistema de cotas.

Depois que o cafajestezinho deixou a cadeia, Juliana casou-se com ele, para desgosto da mãe. Foi largada meses depois. Grávida.

Largou o caixa do mercado, tornou-se balconista da loja de conveniência de um posto de gasolina, depois operadora de telemarketing, depois vendeu lingeries e Natura por catálogo, depois conseguiu outro emprego de caixa em outro mercado.

Mas, por algum motivo que nem ela mesma entendia, não seguiu os conselhos do branco-velho.

Nunca aprendera a falar direito.

Podia ser um preconceitozinho besta, mas Juliana acreditava no mérito, não em sistemas de cotas.

Juliana nunca mais pisou num terreiro.

2 comentários:

Bruna Rafaella disse...

Que porra é essa?
Branco velho?
só você mesmo hein!
sorte que a pobre Juliana não
acreditou nessa macumbaiada toda
e seguiu o destino do jeito dela, na merda.

Estava com saudades,
tu já sabes né?


Grande Beijo!!!

Bagual disse...

Achei este o mais genial. Parabéns!