sexta-feira, 18 de junho de 2010

Saramago: foi-se embora a ausência das vírgulas, veio o indesejado ponto final


Eu devia ter uns quinze anos, dezesseis no máximo, quando peguei o ônibus Loteamento Dona Wanda, sentido bairro-centro lendo entre sacolejos pela primeira vez o romance “Os Maias”, de Eça de Queiroz. Estava indo à Florianópolis com o dinheiro contadinho, economia de três meses do meu salário de auxiliar de serviços gerais do China in Box, para comprar a, então, nova camisa do Corinthians.

Nessa viagem encontrei Fábio Corrêa, um cara que sempre foi envolvido e entendido de literatura, e anos mais tarde formou-se em letras na Universidade Federal, cursou suas especializações, mestrados e afins.

Fábio Corrêa, vendo o livro que eu trazia nas mãos, perguntou o que mais eu gostava da literatura portuguesa, mas na época meu entendimento era pequeno, resumia-se a dois ou três títulos do Eça de Queiroz, Fernando Pessoa e à obrigatoriedade escolar dos Lusíadas, de Camões.

Foi então que Corrêa me sugeriu um escritor auto-didata, e me contou histórias sobre aquele senhor que trabalhara como mecânico e, ainda que na sua juventude/idade adulta, tenha publicado poucos livros, foi após aos sessenta anos que publicou suas grandes obras e tornou-se uma referência moderna na literatura de língua portuguesa.

Fábio falava de José Saramago.

Desci do ônibus e, ao invés de comprar a camisa do Corinthians, fui à Livraria Catarinense e comprei “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” e “Memorial do Convento”.

Foi também naquela época, uns meses antes do encontro com Fábio Corrêa, que eu li num pára-choque de caminhão a frase: “Coma merda, milhões de moscas não podem estar erradas.”, e passei a pensar em que coisas eu fazia pelo simples fato de que todo mundo fazia igual. E nessa reflexão, questionei pela primeira vez a existência ou não de deus. Ainda com medo de pensar naquilo, como poderia contestar a autoridade divina, quem eu pensava que era? Um merdinha de quinze anos que sonhava em virar astro do rock, colocando em dúvida o impiedoso deus cristão.

Quando li pela primeira vez “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, foi como se eu tivesse uma revelação. Ainda hoje, quinze anos depois, e vários livros lidos desde então, ainda não consegui encontrar um diálogo melhor do que a conversa que, no romance de Saramago, Jesus tem com deus e o diabo a bordo de um barco, onde uma série de questionamentos, reflexões se misturam, a ponto de fazer o leitor pensar: Jesus é realmente um cara diferente, uma ótima pessoa, o diabo somos nós todos, não necessariamente ruins, se o mal me for conveniente, eu faço, tanto quanto faço o bem, desde que me traga vantagens; mas deus não, deus é cruel, mesquinho, pequeno, a ponto de crucificar o próprio filho apenas para tornar-se inesquecível e temido. Leia o livro, você não se arrependerá.

A partir dali, me tornei íntimo de Saramago, mesmo que ele nunca tenha sabido disso, mas me tornei muito próximo dele.

Importante frisar que meu ateísmo não se deve à descrença de José Saramago, o que pareceria apenas mais um fãzinho tolo copiando o ídolo, não é nada disso. Já tinha me percebido como tal, antes de saber que Saramago existia, mas admito que me achei inteligente pra caramba quando soube que um ganhador do Nobel comungava da minha descrença, ou eu da dele, enfim.

Cada novo livro do Saramago que eu lia, pensava: “agora chega, melhor do que isso não vem”, mas vinha.

Quando li “Ensaio Sobre a Cegueira”, fiquei um bom tempo sem pensar em outra coisa. Havia tanta reflexão ali, uma parábola profunda sobre ética, sobre relacionamento, sobre generosidade e egoísmo, sobre as coisas que todos nós somos capazes de fazer e nem sabemos, dependendo do contexto que nos envolver. É um livro lindo, doído, cortante, verdadeiro. Em seguida li “Ensaio sobre a Lucidez”, que ocorre na mesma cidade inidentificável de “Ensaio Sobre a Cegueira”, e em determinado ponto da narrativa absorve também os mesmos personagens. Se no primeiro ele tratava da ética humana nos relacionamentos, nesse ele vai fundo nas manobras políticas, na manipulação dos fatos para que algo pareça ser o que não é, escolhe-se culpados para que se possa fabricar heróis, enfim, outro livro inteligente e raro.

Saramago conseguiu a façanha de tirar o leitor do conforto, criando uma maneira nova de contar histórias, uma nova métrica, uma nova forma, uma nova pontuação e, mesmo assim, ao dificultar a narrativa, tornou-se extremamente popular.

Não vou ficar aqui descrevendo minhas impressões sobre cada um dos livros dele, o texto ficaria muito longo, falarei apenas de outros dois.

No início de 2009, depois de longos meses internado no hospital para tratar de problemas respiratórios crônicos, Saramago lançou “A Viagem do Elefante”. Eu estava ansioso por esse livro, queria saber que coisas maravilhosas ele deveria ter escrito depois de ficar tanto tempo entre a vida e a morte. Comprei o livro tão logo foi lançado e, surpresa, achei o livro uma bosta. Algumas ótimas frases, mas uma história cansativa, morosa e, aparentemente, sem muita razão de ser. Algo como descrever o meu trajeto do Kobrasol à Palhoça, e transformar essa descrição em livro. Não gostei, qualquer dia irei relê-lo para ver se mudo de opinião, mas por enquanto ainda não gosto.

Mas, mesmo não tendo gostado, pensei: “Pô, o cara já tá velhinho, já escreveu várias pérolas, já cumpriu a sua missão na terra. Deixa ele agora continuar escrevendo, mesmo que sejam historinhas meio chatinhas, assim pelo menos continua ativo e trabalhando.

Eis que para minha estupefata surpresa, ainda no mesmo ano de 2009, Saramago lançou o livro “Caim”. Mais uma vez comprei tão logo o livro foi lançado, e puta merda, que livro fantástico. Fiquei encantado com o quão brilhante ele ainda conseguiu ser, mesmo depois de tantos anos de vida, depois de tantos livros maravilhosos.

O meu segundo post neste blogue, foi exatamente sobre “Caim”.

Importante destacar, Saramago não era só um grande escritor, era uma pessoa extremamente envolvida com as mazelas do mundo, mesmo doente e idoso, em nenhum momento absteve-se de lutar pela melhoria nas condições de vida das pessoas menos assistidas.

Através da Fundação Saramago, relançou no início deste ano o seu primeiro romance de destaque “A Jangada de Pedra”, ao preço de 15 euros, cuja arrecadação total com a venda destas obras foram destinadas aos flagelados do Haiti. Não foi parte da renda, foi a renda total. Cada um dos quinze euros, fori para as vítimas dos terríveis terremotos.

Diferente de muitos beatos santificados por terem passado suas vidas rezando terço, Saramago criticava o que havia de errado através das suas histórias, e através dos seus atos fazia a sua parte para tornar o mundo um lugar mais confortável para aqueles cujos governantes fingiam desconhecer a existência.

Queria fazer mais uns dez posts, cada um sobre um novo livro do Saramago. Mas agora as circunstâncias intragáveis da vida, me levaram a fazer um post sobre ele, não sobre um lançamento, mas sobre uma finalização.

Hoje, 18/06/2010, 12:30, horário de Lanzarote, Espanha; 07:30 horário de Brasília, Brasil, morreu José Saramago.

Para você que não o conhece ou não acha ele isso tudo, (perceba que meus elogios e referências sobre Saramago partem das minhas impressões pessoais, não espero que todos compartilhem delas. Nossas diferenças são o que nos tornam atraentes e interessantes), talvez a morte de Saramago não seja nada demais, mas eu estou muito triste, muito mesmo.

Parece que foi alguém aqui do lado.

Foi lendo ele que enfiei na cabeça que, quando crescesse, seria escritor. Não estou me comparando a ele, estou dizendo que ele me fez ter vontade de verbalizar em palavras escritas, minhas impressões sobre o mundo através de histórias e personagens.

Hoje perdi minha referência literária.
Sei que ele não é o melhor escritor de todos os tempos, e que ainda lerei muitas coisas que me impressionarão tanto quanto. Sei que ele possui críticos severos na academia, e não acho que tudo o que ele fez é ótimo. Mas ele me emocionava, e por isso estou profundamente emocionado agora.

Me dói pensar em quantas coisas ele ainda poderia criar, inspirar, realizar, mas hoje, no exato momento em que eu entrava no meu trabalho, ele completava a sua obra, de uma maneira romântica, no leito da sua casa, ao lado da mulher que amava e que, de tão especial que é e foi para ele, mereceu todas as dedicatórias dos seus livros. O sentimento romântico desta cena me lembra de longe o final romântico de “As Intermitências da Morte”.

Talvez doa admitir, nossa educação desde sempre nos ensinou o contrário, mas a vida dura o exato tempo dos nossos anos. Nossa eternidade tem o exato tempo de duração que nossas obras perdurarem. O nosso legado é o que faz de nós eternos, pelo menos durante os anos que nosso legado durar.

Hoje Saramago se diluiu no seu legado.

Hoje estou me sentindo sozinho.





(PS: Peço desculpas ao meu querido amigo Rafael Lange, que na última quarta-feira me concedeu a honra de ouvir o novo disco da Aerocirco em primeira mão, e pediu para que eu fizesse uma resenha da nova obra do quarteto desterrense aqui neste espaço. Este texto era para ser publicado hoje, está até pronto, mas tendo em vista a fatalidade ocorrida, ficará para segunda-feira. Desculpe, amigo.)

4 comentários:

Shuzy disse...

)*:

Daca disse...

Ele mereceu um Nobel só por ter te feito NÃO comprar a camisa do curintcha. Que o velhinho descanse em paz.

jean mafra em minúsculas disse...

que bacana este post, david, querido!

penso que saramago fará falta. é clichê dizer, mas é verdade também.

no mais, grande fábio corrêa!!!

julie disse...

certamente, saramago também ficaria emocionado lendo esse post, davi.

que bonito!