terça-feira, 21 de junho de 2011

Noite difícil, dia suave


Já, já isso passa, ela disse.

Esfregou os olhos com as costas das mãos, arregalou-os, sentou-se ainda assustado na cama, Já, já isso passa, ela tornou a dizer, foi só um pesadelo.

Empapado de suor, buscou na cabeceira da cama o copo de água que trazia para o quarto todas as noites, enquanto recebia da esposa um afago nos cabelos amassados de quem passou as últimas horas de sono revirando-se na cama pela angústia do sonho ruim.

Nossa, que sonho esquisito, ele disse, Quer me contar?, ela perguntou, Quero esquecer, ele respondeu, Fique na cama, meu amor, vou na cozinha e preparo um chazinho para você relaxar, foi só um sonho, Eu te amo! Nossa, que você tenha mais pesadelos, há quanto tempo não te ouvia se declarando pra mim no meio da noite?, É sério, eu te amo, muito, mais que tudo, Eu também te amo, meu amor, muito, mais que tudo, Você é a mulher da minha vida, você sabe disso, né? Claro que sei, você também é o homem da minha vida, Eu nunca quero te perder, Você não vai me perder, meu amor, eu não sei viver longe de você, É sério, eu nunca quero te perder, Sonhou que eu morri, né? Não quero falar do meu sonho, Tudo bem, já passou, o sonho ruim já passou, fique aí, meu amor, já volto com o seu chazinho de camomila.

Quando ela voltou com a xícara fumegante, ele colocou-a ao lado do copo de água na cabeceira da cama, pegou a esposa nos braços e amaram-se durante a noite toda com uma paixão tão grande que, desde o nascimento do primeiro filho, havia deixado de ser um hábito.

O sol já dava seus primeiros bocejos de quem acorda ainda sonolento, quando os lábios de ambos enfim desgrudaram-se depois de todo o amor que impingira ao lençol ainda mais suor do que o sonho ruim havia impregnado no pijama dele.

As crianças ainda dormiam quando foram juntos ao chuveiro e, mais uma vez, amaram-se como a muito não se permitiam.

Beijou a esposa quando ainda não havia chego às avenidas o congestionamento pontual de todas as manhãs, despediu-se e entrou no carro para mais um dia. Já estou com saudades, disse antes de ligar o automóvel, Então volta logo, respondeu a esposa encantada com o surto de amor e paixão do marido acometido por temores noturnos.

De dentro do carro, ligou para o escritório e disse que chegaria mais tarde, pois tinha assuntos pessoais inadiáveis a resolver.

Tocou insistentemente a campanhinha do apartamento da outra, que sonolenta abriu a porta enquanto ainda fechava o roupão branco para cobrir o corpo semi-nu, vestido apenas por uma curta e sensual camisola, própria de quem está sempre preparada para a hora em que seu amado necessite dela e dos seus carinhos.

Precisamos conversar, ele disse, A essa hora?, É sério, precisamos conversar, Entra, você sabe que esse apartamento tem sempre as portas abertas pra você, Eu te amo, ele disse, Eu também te amo, você sabe, mas você veio até aqui a essa hora só para se declarar?, Eu não sei viver sem você, meu amor, Eu também não sei viver sem você, É sério, não consigo me imaginar sem te ver, Você não precisa se preocupar com isso, você não vai deixar de me ver, Mas eu não vou me separar da minha esposa, Eu nunca te pedi isso, sempre soube da sua condição, e tanto quanto você nunca me prometeu nada, eu nunca te exigi nada, estamos juntos por amor, não por formalidades.

E pegou a outra nos braços e amaram-se durante a manhã inteira com uma paixão tão grande como, desde que o adultério deixara de ser aventura para tornar-se rotina, já não se amavam. Antes que o sol se posicionasse exibido no alto do céu para deixar claro que era ele quem dividia as metades do dia, foram juntos ao chuveiro e, mais uma vez, se amaram como há muito não o faziam.

Almoçaram juntos no apartamento que já há alguns anos lhes servia de guarita, tocando-se as mãos entre uma garfada e outra para que ficasse claro ao ar que assistia a cena, que havia também carinho naquele amor tão sexual que reciprocamente ofereciam-se.

Despediu-se da outra e foi feliz ao trabalho, com meio período de atraso.

Quando o relógio indicava que em pouco menos de cinco minutos às três horas da tarde haveriam de chegar, a recepcionista da empresa ligou no seu ramal dizendo que havia chego uma encomenda para ele na portaria.

Desceu nervoso e, quando lá chegou, uma cesta enorme com cravos vermelhos, uma garrafa de vinho, duas taças e chocolates, acomodava-se vaidosa nos braços da mocinha da floricultura, vizinha à empresa.

Sorriu sem graça para a recepcionista, pegou a cesta e, sem ler o cartão, tirou-o do arranjo, rasgou-o e pediu que a recepcionista jogasse os restos do papel picotado no cesto do lixo. Mas você não quer saber quem foi que lhe enviou a cesta?, perguntou a mocinha da floricultura, Não, ele respondeu, já sei onde isso vai dar.

No fim do expediente, chamou um motoboy para que ele levasse o vinho, as taças e os chocolates até o apartamento da outra, com um cartão que dizia, Amanhã tomaremos este vinho no nosso café da manhã.

Voltou para casa, onde sua esposa tomara a iniciativa de mandar as crianças irem dormir na casa da avó, e lhe esperava com um vestido longo, justíssimo e com uma abertura atrevida em uma das pernas, deixando a vista muito discretamente a sua coxa bem feita, a mesa posta com alguma sofisticação, um jantar de cardápio especial e velas espalhadas pela casa.

Entregou para a esposa o arranjo enorme de cravos vermelhos, jantaram, amaram-se ainda com mais intensidade do que na madrugada anterior.

E, assim, sem permitir que jamais outro alguém interferisse naquela fidelidade torta que ele oferecia as duas mulheres da sua vida, viveram todos felizes para sempre.

Ele bastante cansado, é verdade, haja vista a dedicação que passara a dar à ambas as camas que quase diariamente visitava e tão bem o tratavam, mas, ainda assim, feliz para sempre.

2 comentários:

Karol Coelho disse...

E tudo não passava de um sonho. No final eles foram felizes, os três. Que bom.
Ótimo texto!!!

Unknown disse...

Olha, um homem só é fiel quando tem duas mulheres. Quando tem apenas uma, sente sempre o desejo de outra qualquer, mesmo que seja totalmente leal a mulher que ele tem. A sombra do desejo é, sem a mínima dúvida, a pior da amantes. Digo e repito, viva a tricotomia!