quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

As canções que você fez pra mim


Era conhecido por Beto, mas chamava-se Erasmo.
Quando Afonso, pai de Beto, foi à quitinete de seu filho, foi acompanhado pela culpa. Teria que reconhecer o corpo de Beto, encontrado morto ao lado de uma carta fechada e um bilhete aberto. Há 26 anos, sabia que ao registrá-lo não estava dando-lhe um nome, e sim uma sina.
Tão logo sua esposa engravidou, combinaram que se fosse menina, seria Fernanda, menino, Fernando.

Ela convalescia na maternidade quando Afonso, embriagado e na companhia de seus irmãos de boteco, foi registrar o filho. Mas Afonso, tesoureiro do fã-clube oficial do Roberto Carlos, foi desafiado pelos amigos a batizar seu primogênito em homenagem ao Rei. Ele disse que não, não havia outro homem que fosse merecedor de carregar o nome do Rei. Então batiza de Erasmo, que não é Rei, mas tá sempre com ele, sugeriu um dos amigos. Foi o que ele fez.

Após a mágoa inicial, a mulher acostumou-se em não ser mãe de um Fernando. Mas para provocar o marido, chamava Erasmo de Roberto, que com o tempo virou Beto.
Beto cresceu, e além do sobrenome herdou do pai a paixão pelo Rei. Mas Beto não era apenas mais um fã, ele fez de sua idolatria um estilo de vida.
No início apenas vestia-se como o ídolo, roupas azul-claro, o mesmo corte de cabelo, os trejeitos, tudo muito parecido. Os amigos divertiam-se com o colega que ria daquela mesma maneira pausada e canastrona que tantas vezes viram Roberto Carlos, o verdadeiro, rindo nos especiais de fim de ano.

Todavia, com o tempo Beto passou a comunicar-se utilizando apenas trechos de músicas do Rei. Alguém perguntava por que ele agia daquele jeito, ele pensava, demorava, e dizia, "Estou fugindo de mim mesmo, fugindo do meu passado, do meu mundo assombrado."
Aos poucos aquela maneira de se comunicar tornou-se automática, como se todo o seu vocabulário fosse feito apenas de frases compostas por Roberto Carlos.
Júlia apaixonou-se por Beto, achou bonitinho o jeito que ele falava. "Eu te darei o céu meu bem, e o meu amor também", disse Beto no dia em que começaram a namorar, fazendo-a crer que era de fato um "Amante à moda antiga".
Mas aquela mania de conversar em versos tornou-se cansativa, e ela resolveu terminar o namoro. Findado o relacionamento ele a olhou nos olhos e disse, "Existem mil garotas querendo passear comigo, ‘báái’".

Desde a adolescência Beto escrevia cartas para Roberto Carlos, sem saber como reagiria caso recebesse uma resposta. Os mais próximos diziam que ele tinha problema, ele respondia, É mais que um problema, é uma loucura qualquer.
Quando Afonso chegou à quitinete e viu o corpo do filho no chão, deitado sobre a poça de sangue que vertia da têmpora baleada, viu que ao lado dele havia uma carta lacrada, cujo remetente era o próprio Roberto Carlos.
Por não considerar-se digno de ler o que o Rei em pessoa lhe havia enviado, Beto deixou como último registro apenas um bilhete, uma única frase escrita com a letra trêmula:

"O importante é que emoções eu vivi."

Nenhum comentário: