segunda-feira, 26 de julho de 2010

Beija eu


Não me conformo termos sido tão breves, que merda, poderíamos ter durado só uns cinco minutos a mais, tempo suficiente para um ou dois beijos, que fosse, daqueles bem dados, daqueles que fazem querer mais beijos, talvez uma mão aqui, outra ali, talvez quatro mãos ansiosas e nervosas se procurando sem saber quais as fronteiras que lhe estariam liberadas.

Mas te digo, ainda não desisti, apesar de agora estar tudo mais difícil. Espero que você receba esta carta. Me garantiram que você receberia, o próprio Diabo me disse que faria com que esta carta lhe chegasse às mãos, desde que eu aceitasse o castigo que ele escolhesse. Achei até romântico o fato de aqui a comunicação ainda ser através de cartas escritas à mão. Espero que entendas a minha letra. Espero que o idioma que o texto sai daqui, seja compreensível aí.

Ele, o Diabo, me deu algumas opções para te reencontrar, numa delas eu até poderia te beijar, mas não do jeito que havia(mos) imaginado. A carta me pareceu o meio mais justo para a nossa curta história. Não gostaria de te fazer mal, além desse que talvez tenha te feito. Mas ele, o Diabo, disse que não tive culpa, caso tivesse, ele seria o primeiro a deixar isso bem claro, para que eu sofresse ainda mais por aqui, pois é isso que se faz no inferno, se sofre. Mas ele me assegurou que era destino, aquela palhaçada toda que eu nunca tinha acreditado.

É gente boa, o Diabo. Bom papo, não tem nada daquilo de chifres, rabo, tridente. O Diabo é loiro, mas está ficando careca. Baixinho e magro, cara de professor de geometria. Gente boa, o Diabo.

Rememoremos passo-a-passo o nosso passo-a-passo.

Não tínhamos absolutamente nada em comum, além da quase certeza de que não teríamos muito futuro juntos. Não escutávamos as mesmas músicas, não líamos os mesmos livros, não íamos aos mesmos lugares, não tínhamos sonhos sequer aproximados, enfim, absolutamente nenhum interesse em comum, exceto aquele desejo confuso, inexplicável e recíproco. Aquela coisa de quando o olhar de um atropelou o do outro, algo disse quase gritando, Por essa não passarás sem que algo diferente lhe aconteça, não serão muitas as mulheres deste nível que passarão pela tua vida, nenhuma antes, provavelmente nenhuma depois. E pior, para mim, que realmente, depois já não há qualquer chance.

Eu já sonhava com um beijo seu quando recebi no começo daquela manhã a sua mensagem no meu celular dizendo que você tinha sonhado comigo. Eu me senti muito foda aquele dia, só por fantasiar que, de alguma maneira, tinha estado com você, na sua cama, na noite anterior. Quis saber o conteúdo do sonho, mas você disse não lembrar dele. Não acreditei muito nisso, mas não insisti.

A troca de mensagens virou coisa comum, parte do nosso dia-a-dia, eu esperava ansioso pelas suas, sempre curtas, subliminares, cheias de entrelinhas, e eu mandando minhas respostas explícitas, algumas bregas, outras talvez inconvenientes de tão claras que deixavam o meu interesse.

Na semana seguinte admiti também ter sonhado com você. Também não disse diretamente como tinha sido o sonho, mas dei várias pequenas pistas tão bobas quanto óbvias, para que você soubesse que tinha sido um sonho erótico.

Digo agora.

Sonhei que saíamos para jantar, na volta você pediu para dirigir o meu carro perguntando se poderia me levar para um lugar especial, eu disse que sim, você reforçou, Qualquer lugar?, Qualquer lugar!, eu confirmei. Nem entramos no carro e já estávamos no quarto do motel, eu esperava os minutos que você me havia solicitado, e na meia luz refletida no espelho do teto, aquela penumbra com Antena 1 de trilha sonora, você surgia indescritivelmente, irresistivelmente linda do alto do salto do seu sapato preto, meias 7/8 pretas, lingerie meticulosamente desenhada para realçar ainda mais as minúcias da sua beleza, como se tivesse sido feita exclusivamente para você. Você vinha até mim e nos beijávamos, sem pressa, mas alternando urgência com delicadeza.

Depois do beijo eu não lembro de mais nada, mas suponho o que tenha acontecido apenas para Morfeu assistir. Contudo, acordei com a sensação de ter tido a melhor noite da minha vida, como se ela de fato tivesse acontecido. Foi sonho, mas a sensação era real. A melhor noite que passei ao lado de uma mulher foi com você, e por ironia, ela nunca chegou a acontecer.

Mensagem vai, mensagem vem, concluímos que precisávamos nos beijar, um único beijo que fosse, mas tínhamos que nos beijar. Mas, pela diferença das nossas realidades, não seria conveniente que outra pessoa soubesse. Numa sexta-feira, fim de tarde, falei que te esperaria no acostamento da BR, sairia do meu carro, entraria no seu, nos beijaríamos, e depois cada um voltaria para o curso habitual das suas respectivas vidas, então vivas.

Tudo certo, dentro do combinado e nervosamente esperado, mas na hora que abri a porta para entrar no seu carro, aquele porra daquele motorista sonolento nos acertou em cheio e ambos morremos. Sem tempo para o beijo. Que merda...

Uma vez você me disse que me imaginava bem certinho, um bom moço exemplar. Mas, acredite, eu não servia exatamente como um bom exemplo. Fiz muita merda antes de beijar o radiador daquele caminhão desgraçado, e quase tinha orgulho delas. Mas, talvez por não ter tido tempo de me converter a alguma igreja e me arrepender dos meus pecados, vim para o inferno. E para você, ótima pessoa que sempre foi, só lhe restou um destino, o céu. Que merda...

Quando cheguei aqui, sabendo que pra cá viria, imaginei aquele inferno clássico da bíblia, chamas, enxofre, ranger de dentes. Mas não. O inferno é um lugar limpo e arejado, onde cada um sofre daquilo que mais gostava ou queria.

Na minha primeira semana, o Diabo me colocou num quarto cheio de mulheres lindas, gostosas e loucas por mim, mas eu era broxa.

Na segunda semana foi a primeira vez que o Diabo veio falar comigo, estávamos num bar, igual ao que eu sempre freqüentava, mas eu não conseguia erguer a caldereta cheia de chopp, perfeito, três dedos de colarinho, copo suado, mas eu não conseguia erguer o copo e levá-lo até a minha boca, tampouco conseguia me abaixar para dar uma bebericadinha no chopp. E o Diabo, sentado na minha frente, ria muito da minha cara. Fumando um cigarro atrás do outro do meu cigarro preferido, me oferecia um, eu pegava ansioso, mas não tinha mais gás no isqueiro e a caixa de fósforos estava molhada, não tinha jeito de fumar. Aquilo quase me matou de novo.

Na terceira semana, eu fiquei com um fone grudado nas minhas orelhas ouvindo ininterruptamente os maiores sucessos do Sertanejo Universitário. Quase desejei as chamas, o enxofre e o ranger de dentes.

Nesta semana eu contei para o Diabo a nossa história. Ele disse que já sabia, Deus havia lhe contado. Não sei se contaram para você, mas diferente do que todos pensam, eles são muito amigos, mas enquanto um faz as coisas direitas e para o bem dos outros, o outro é pau no cu pra cacete, sacaneia com as almas a que tem direito só por diversão. Me contou que foi você que contou para Deus a nossa história. Fiquei emocionado por saber que você ainda lembrava de mim.

O Diabo, então, me propôs te reencontrar para termos direito ao nosso beijo não realizado, mas dentro de determinadas circunstâncias. Não sei se você sabe, mas você reencarnará em breve, numa vida perfeita, casará com um cara muito bom, vocês terão filhos, ótimas crianças, e morrerão velhinhos, felizes e sem dor. Ele disse que se eu quisesse o seu beijo, também me reencarnaria, mas não naquele cara de sorte que vai se casar com você. Reencarnaria num estuprador, te violentaria e te beijaria a força. O seu futuro marido seria o médico que lhe atenderia no hospital, cuidaria de você com muito carinho, vocês se apaixonariam e teriam a tal vida perfeita.

Recusei. Quero muito o seu beijo, mas não ao custo de fazer você sofrer e, ainda por cima, ser o gatilho do seu novo amor. Prefiro ficar aqui com dor de cotovelo eterna por saber que outro estará beijando os lábios que o caminhão me negou.

Mas vou para uma última tentativa. Encontrei um velho amigo por aqui, um dos maiores sacanas que eu conheci na minha velha vida e que já está aqui há um bom tempo, disse que a partida das almas para reencarnação se dá no purgatório, uma grande fila branca de almas boas que partem para um novo parto. Nós, as almas do Diabo, podemos assistir a essa cena, faz parte da diversão dele, o Diabo, fazer com que observemos a nova chance que não teremos. Nesta oportunidade, nós podemos conversar com as almas boas, para que elas nos digam como são felizes no céu, e nós possamos chorar nossas pitangas dizendo como somos fodidos no inferno.

Esse meu amigo disse que é um momento descontraído, o encontro no purgatório. Você irá reencarnar em quatro semanas, e essa será a primeira vez que vou participar do evento. O meu amigo se comprometeu em me ajudar. Disse que vai começar a correr pelado e vai tentar agarrar a Virgem Maria – ela sempre está presente para abençoar as almas que reencarnarão – nisso, obviamente as atenções estarão voltadas para o furdunço que ele vai armar, e nessa hora, eu vou tentar chamar a sua atenção, e esperarei você grudado na cerca que separa as almas dos dois lados, e, quem sabe, consigamos pelo menos nessa hora dar o nosso beijo. Passarei o resto da minha morte sem fumar, sem beber, sem transar, mas preciso dar um jeito de beijar você. Depois você segue e vai viver a vida que merece ter.

Eu voltarei para o castigo que aceitei para ter direito a lhe enviar esta carta.

Estou há seis dias preso numa salinha fria, morrendo de fome e sede. Tem uma lasanha deliciosa – meu prato preferido - na minha frente, sempre fumegante, como se tivesse sido tirada do forno agora, uma garrafa do meu vinho preferido, uma taça linda, mas eu não tenho forças para levantar os talheres e me servir, e a garrafa de vinho é inviolável.

Para completar, há seis dias que toca dia e noite, repetidamente e num volume ensurdecedor, a Marisa Monte cantando: “Beija eu, beija eu, beija eu me beija...”

6 comentários:

luba disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Fernando Melo disse...

Cara, que texto massa.

Bruno Maya disse...

Muito, muito massa!

Anônimo disse...

O inferno é aqui...


Onde existem amores impossíveis, não correspondidos, amores a mil quilômetros de distância.


Ai ai...

Belo texto...

luiza

luiza disse...

Estou recomendando o seu blog a amigos... Daí estou apagando rastros do meu blog por aqui...

=)

kika cedro disse...

ehehehe ri muito e li sem pular parágrafos.