quarta-feira, 14 de julho de 2010

Do amor


Era uma vez uma menina linda. Linda mesmo.

Delicada em tudo, dos gestos, atos, palavras ao jeito de mexer nos cabelos. Sorriso puro, mas com uma malícia que ela provavelmente nem sabia que morava ali, naqueles lábios finos, mas muito bem desenhados.

Até os dentes um tantinho tortos, eram peça chave para todo o charme. Pecado seria algum ortodontista interferir naquele sorriso onde até o que em qualquer dos outros mortais pareceria falha, nela era uma parte importante do impacto que causava nos privilegiados que a viam sorrindo.

Aos dezessete, teve a certeza de ter encontrado seu definitivo amor.

Suas tantas amigas da mesma idade, já haviam tido, então, uns três ou quatro definitivos amores, mas ela não. Sabia que saberia quando o encontrasse. E agora não lhe restava dúvidas, o havia encontrado.

E para fazer da felicidade uma entidade plena, a recíproca era verdadeira. Ele também a amava. Muito, com verdade, com devoção.

Pela certeza do amor que sentia – e sentiam -, ele a quis por inteira, para fazer dela a mulher que pedia passagem para a adolescente que se preparava para o vestibular de naturologia.

Mas ela pediu-lhe paciência, não havia dúvidas que seria ele o homem que primeiro – e por sua vontade também o último – que a teria, mas o momento ainda não era aquele.

A mãe e a avó, que com ela moravam, notaram a mudança no seu comportamento. Ainda que fosse uma garota feliz, jamais havia estado tão radiante. Seu sorriso, que sempre fora luminoso, agora parecia um toque de mágica, tão surpreendentemente lindo que se tornara.

É amor, confidenciavam-se felizes mãe e avó cada vez que a viam sair, chegar, comer, dormir, cantar e, até, calar. Até no silêncio o amor que trazia no coração se fazia notar.

Queriam conhecê-lo, certamente tratava-se de um bom rapaz. Ela era, além de linda, muito inteligente e com ótima presença de espírito, não seria um qualquer que a cativara de forma tamanha.

Mas ela relutava, Ainda não é chegada a hora, dizia com a certeza de quem sabe que o momento oportuno não tardaria por vir.

Fosse pela vontade irresistível da paixão que sentia, já o teria apresentado à família, aos amigos, aos vizinhos, ao padre, ao leiteiro, ao carteiro, mas ainda não era chegada a hora.

Tinha medo do julgamento alheio.

Ela sabia que as intenções dele eram verdadeiras, tanto quanto o sentimento que a cada dia fazia da necessidade de verem-se uma urgência irresistível.

Mas ele era vinte e cinco anos mais velho que ela, e isso a fazia tremer de pavor da mínima possibilidade de rejeição por parte de alguém dos tantos que ternamente amava.

E assim passaram-se dias, semanas e uns poucos meses, ela, a cada menor fração de segundo mais e mais submergida naquele amor verdadeiro, mas com proporcional medo da desaprovação dos outros.

Ele sonhava dia e noite em ser parte por inteiro da vida dela. Não queria ser escuso, queria o passeio de mãos dadas, o namoro no sofá, o almoço de domingo, as risadas em família, e tudo o mais que o amor generosamente concedia aos outros casais, mas parecia negar-lhe sem maiores explicações.

Queria casamento, filhos, casa, cachorro. Queria realizar cada menor capricho da sua amada. Sabia, desde o momento em que a vira pela primeira vez, que sua vida estava desde sempre traçada para servir-lhe até o fim dos dias.

Mas ainda não era chegada a hora, ela dizia.

Mas a hora, que caminha desde sempre alheia aos desejos das gentes do mundo, impôs-se autoritária como quem diz, Eu decido se é ou não chegado o tempo de me fazer presente.

A mãe, como é natural nas mães que amam verdadeiramente seus filhos, ficou preocupada com a recusa da filha em lhe apresentar o namorado.

Um dia, enquanto a filha tomava banho para encontrá-lo, na ansiedade da proteção vasculhou as coisas da menina, e entre bilhetes e anotações diversas na agenda surrada pelo avançar dos meses do ano, encontrou uma foto dos dois, beijando-se apaixonados enquanto ele distanciava a máquina com o braço esquerdo, para que a lente não perdesse qualquer dos detalhes daquela cena amorosa.

A mãe entrou no banheiro gritando desesperada, balançando a foto aos prantos, num pânico sem precedentes, É teu pai, esse homem é teu pai, isso não pode acontecer, isso não pode estar acontecendo, esse filho da puta é o filho da puta que me abandonou grávida, é o filho da puta do teu pai!

A avó, assustada com o desespero vindo do banheiro, foi ver o que motivara o pandemônio. Ao deparar-se com a foto, enfartou fulminantemente. A mãe parecia menos transtornada com morte daquela que lhe dera todo o suporte quando, dezessete anos atrás, fora abandonada grávida por um representantesinho comercial metido a sedutor, do que pelo desagravo da sorte para com sua filha.

A menina permanecia estática, catatônica, sentada no chão do Box enquanto a água do chuveiro desabava-se sobre suas costas, indiferente a tragédia familiar recém instaurada.

A mãe sentou-se no vaso, ao lado do corpo da avó falecida, e copiosamente chorava em desespero.

A filha desligou o chuveiro, respirou fundo para conter o pranto, foi até a mãe, afagou-lhe os cabelos, beijou-lhe a testa, e em seguida acertou-lhe com o antigo e pesado secador de cabelos na nuca. E golpeou-lhe uma vez mais, e outra, e outra, e mais uma, até ter certeza que o sangue que escorria já era o de um corpo sem vida.

Voltou para o chuveiro, e terminou seu banho.

Vestiu-se com o mais belo dos vestidos, maquiou-se com tons suaves, tão delicados quanto ela era na sua totalidade, e foi encontrar o seu amado.

O que farias por mim? Perguntou tão logo chegara ao lugar marcado.

Tudo.

Tudo?

Tudo!

Então vamos embora.

Para onde?

Para longe, o mais que pudermos.

E tua família?

Faremos uma nova, nós dois.

Você é muito nova, não pode estar falando sério.

Você disse que faria tudo.

E faço.

Então vamos?

Então vamos!

Naquela noite, entregou-se a ele por inteira, concedendo a sua pureza intacta na cama de um hotel de beira de estrada, a mais de seis municípios de distância.

Emocionada, chorou baixinho no abraço daqueles braços largos, menos pela dor do inevitável desconforto da primeira vez, do que pela emoção de saber que era a mais certa das coisas a serem feitas.

E assim foi também no dia seguinte. E no outro, no outro, no outro, cada vez mais juntos e distantes daquela cidade, agora antepassada.

E eles viveram felizes para sempre.

3 comentários:

Shuzy disse...

Vc tá cada vez pior... hahaha
Ou seria, melhor??

(*:

Anônimo disse...

Adorei o seu blog!! Meus parebéns por todos os seus post....
Estou começando a ser blogueira agora, mas estou adorando...Quando puder, visite-me: http://donaoncasopraelas.blogspot.com/
Beijinhos

Jane Austera disse...

Tão edipiano e cruel, quanto possível e incômodo: me gusta.

Don Mattos tem um quê de enfant terrible...