sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Extrema-Unção


Descanse, meu amor. Fica quietinho que vai ser melhor pra você. Você precisa descansar.

Descansar é só o que eu tenho feito.

Você está fraco, amanhã a gente conversa.

Amanhã pode não dar tempo. Para mim, pelo menos.

Deixa disso, claro que dá tempo, vamos ter muito tempo ainda para conversar.

Você sabe que não, mas enfim, isso não importa agora. Lembra quando você me disse que estava grávida?

Claro! Uma cara de assustado daquelas não se esquece nunca.

Eu ia deixar você aquele dia.

O quê?

Eu ia deixar você. Não te amava mais. Estava cansado de tanta briga e reconciliação. Estava cansado de planejar coisas que não acreditava que aconteceriam, que não queria que acontecessem.

É arrependimento de leito de morte?

Nossa! É a primeira vez nesses meses todos que você admite que estou com o pé na cova. Na verdade é desabafo de leito de morte.

Isso não é necessário.

Não para você, mas é para mim. A iminência da morte nos confere esse tipo sádico de direito ao desabafo. Qualquer coisa que eu diga agora merece ser ouvido e, mais do que isso, merece ser perdoado. É minha extrema-unção.

Uma última briga?

Não, faz tempo, faz anos que a gente não briga.

Por isso não vejo necessidade disso agora.

Escute. Só escute. Já me é difícil falar, ficar argumentando razões a essa altura do campeonato é pior ainda. Só escute.

Diga.

Eu ia deixar você.

Essa parte eu já ouvi.

Tudo na minha vida estava indo bem, menos meus sentimentos em relação a você.

Mas por que você resolveu falar isso só agora.

Sei lá. Esse tempo todo em que estou aqui, refém dessa cama, me fez ficar imaginando como seria a minha vida se você não tivesse ficado grávida.

Arrependimento...

Desabafo.

Eu nunca contei pra você, mas naquele mesmo dia, eu recebi a notícia de que tinha passado para o vestibular de medicina.

E por que você não cursou?

Era em outra cidade, não podia deixar você grávida de um filho meu e ir embora tocar minha vida como se não tivesse responsabilidade nenhuma com aquela criança, com você.

Nossa, que altruísta. Quer que eu agradeça agora ou no final do seu desabafo.

Quero só que você me escute, quietinha, só escutando.

Diga.

Fiquei pensando que poderia ter sido um grande médico. Você sabe que eu levava jeito. Sempre fui um ótimo aluno. Mas com a gravidez, e tudo o que ela exige, a maturidade prematura, isso tudo impediu minha faculdade. No fim das contas, nunca mais cursei merda nenhuma. Fiquei me imaginando de branco, no meu consultório. Acho que seria tão bom médico, que teria dado jeito até em alguém no estado que estou agora. Eu arriscaria a cirurgia que ele não quis fazer em mim. Eu não diria para o meu paciente que operar seria antecipar o inevitável. Eu operaria.

Mas o seu filho roubou o seu sonho...

Eu poderia ter ficado rico, se fosse médico. Poderia ter tido um carro importado. Poderia ter tido uma casa grande, na praia. Poderia ter tido duas casas. Poderia ter transado com duas mulheres ao mesmo tempo. Deve ser ótima esta experiência.

Quem me garante que você não a teve.

Eu. Não tenho por que mentir agora. Posso até não ter sido um bom marido, mas fui fiel.

Caso sirva de conforto, você foi sim um bom marido. Pelo menos até agora.

Ao invés de virar médico fui trabalhar na oficina do seu pai. Sonhava com assepsias, e terminei sujo de graxa.

Desculpe por mais essa desilusão. Não era minha intenção implodir os seus sonhos.

Escute. Quem fala sou eu, você só escuta.

Diga.

Não estou reclamando da oportunidade que o seu pai me deu, mesmo sem eu entender nada de mecânica. Precisávamos do dinheiro, seu pai foi generoso no salário que me ofereceu. Os outros mecânicos, melhores e mais experientes do que eu, não ganhavam o que eu ganhava.

Mas você aprendeu tudo rápido.

Eu sei, mas eu acreditava que aquilo seria temporário. Ainda alimentava o sonho de ser médico.

Mas meu pai morreu.

Pois é... Acabei herdando a oficina. E a comodidade de um bom negócio estabelecido demoveu de vez meus sonhos juvenis. Pelo menos não precisei mais me sujar de graxa e, convenhamos, me saí muito bem gerindo a oficina.

Sim, e sempre elogiei você por isso. Meu pai adorava aquela oficina, mas nunca imaginou que ela pudesse virar um negócio tão grande. Nunca imaginou que um dia teria três filiais.

Eu sei. O negócio prosperou, meu sonho não.

Mas nossa vida não teve desconforto, apesar do aperto inicial, quando tínhamos que aprender a ser casal. Casal com filho.

Sim, não nos faltou nada, nem ao nosso filho. Mas ser dono não é tão fácil como pressupõem os filiados aos partidos comunistas. O empregado tem direito a férias, descanso remunerado, licença paternidade, patrão não. Se fosse médico poderia ter conhecido a Europa. Sempre quis ir à Espanha, mas o trabalho era tanto, que nunca foi possível.

Desculpe por termos viajado pouco.

Não se desculpe, apenas escute.

Diga.

Se fosse médico talvez tivesse comprado um barco. Sempre me imaginei espairecendo no final de semana em um veleiro, no meio do mar, tomando um drink qualquer, essas coisas de novela das oito.

Chega. Eu já estou emocionalmente bastante abalada com todo esse sofrimento. Não é só você que está de cama, toda a nossa família adoeceu junto. Não existe mais ânimo pra nada. Eu não preciso nem mereço ficar, além de abalada, magoada. Não quis estragar seus sonhos, não engravidei de propósito. Aconteceu.

Escute.

Diga.

Você não imagina como eu fiquei eufórico quando vi meu nome na lista dos aprovados para medicina, era como se toda a felicidade do mundo naquele momento estivesse concentrada dentro de mim. Não chore, por favor.

Desculpe.

Não se desculpe, apenas escute.

Diga.

Nas primeiras semanas, imaginava que nunca mais sentiria algo parecido com aquela felicidade. Mas um dia, no segundo ou terceiro pré-natal, eu fui com você.

Você chorou quando ouviu o coraçãozinho acelerado do nosso bebê.

Naquela hora, quando eu vi aquele grãozinho de arroz na tela do aparelho de ultrassom, quando eu ouvi o coraçãozinho do nosso bebê, você não imagina o que eu senti. A felicidade pela aprovação no vestibular se tornou tão pequena, tão insignificante, tão minúscula. Nada podia ser maior do que aquele grãozinho de arroz. Foi depois daquele dia que eu resolvi que seria um bom mecânico. Foi a partir daquele dia que eu passei a aprender tudo rápido. Grudei nos mecânicos mais velhos, fazia anotações, perguntava, perguntava, perguntava, fiquei realmente bom. Talvez tenha me tornado até o melhor deles. Não chore, por favor.

Desculpe.

A partir daquele coraçãozinho disparado, foi como se eu finalmente tivesse nascido. Nem se eu tivesse duas, três casas, quatro carros importados, um barco, um iate, um navio, nada seria comparável aquele coraçãozinho. Exceto o dia em que ele nasceu, umas semanas depois da morte do seu pai. Quando sua família decidiu que eu tocaria a oficina, enfiei na cabeça que faria daquela a melhor oficina da cidade, eu trabalharia noite e dia, final de semana, não teria férias, faria o que fosse preciso, mas nunca faltaria nada para o nosso filho. Nem para ele, nem para você. Eu fiz de tudo para que o nosso filho tivesse orgulho do pai dele, da família dele. Não chore, por favor.

Desculpe.

Nosso filho não roubou o meu sonho, ele o realizou. Eu não teria sido médico tão bom quanto ele é. Eu teria operado o meu paciente. Eu teria matado o meu paciente e roubado dele a chance de agradecer a sua família por tudo. Nosso filho me deu essa oportunidade. Não chore, por favor.

Desculpe.

Aquele dia em que você me disse que estava grávida, eu ia te deixar. Ia te deixar para me tornar um médico rico. Eu não te amava, naquele dia. Mas te amei em todos os outros. Que bom que você engravidou. Que generosa a vida foi comigo com toda essa fortuna que você me deu a cada dia em que pude acordar do seu lado.

Eu também te amo.

Muito obrigado. Agora eu sigo para a parte do “descanse em paz”. A partir de amanhã, você também descansa. Descanse e fique bem.

5 comentários:

Shuzy disse...

Você e suas entrelinhas...
Fiquei em dúvida...
Foi o filho, né?

Don Mattos disse...

Olá Shuzy, gosto muito quando comentas por aqui, obrigado pela audiência!

Fiquei com dúvida na sua dúvida, foi o filho o quê?

Shuzy disse...

Audiência tem quem merece...
=D

Ah... Sei lá... Na minha cabeça foi o filho - médico - que deu um jeito de apagar o pai...

Don Mattos disse...

Tenho a seguinte crença, o autor não é dono da história. Ela pertence a quem lê.

Poderia até te dizer o que eu pensei quando escrevi, mas estaria interferindo no modo como ela, a história, te afetou.

Troco a minha resposta pela permanência da tua dúvida, acho mais justo assim.

Shuzy disse...

Bondade sua!
hahaha

Mas, tudo bem, aceito permanecer na dúvida.