quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Sobre deus, morte, amor e outras mentiras sinceras


Foi logo após enxugar da sua testa o suor oriundo do grande esforço que teve que fazer para desprender aquela alma assustada do corpo já sem pulso, que a Morte deu-se conta da cagada que fizera.

Tinha nos braços a alma de Maria Alice, uma jovem de vinte e três anos, mas era a alma de sua idêntica irmã gêmea, Maria Eduarda, que ela, a Morte, deveria ter ceifado.

Talvez para os que não são sabedores dos meandros que envolvem este árduo trabalho que só faz com que seja odiada, uma morte a mais outra a menos, não lhes pareça grande coisa, mas é importante frisar que existe toda uma calculada metodologia na execução desta fatídica tarefa.

A ordem dos acontecimentos depende diretamente da precisão com que as vidas são colhidas da terra. Mesmo nas grandes catástrofes, jamais houve excesso ou esquecimento. Morre-se somente o número exato de pessoas, colhe-se a medida precisa de almas para que o equilíbrio dos fatos não se desordene além do tolerável, o que tornaria impossível a manutenção da harmonia entrópica do universo.

Fora rigorosíssimo o processo de seleção pelo qual passara a Morte, até receber diretamente das mãos sagradas de Deus a foice responsável pelo serviço mais sério e importante de todos os tempos.

Para produzir a vida, não se faz necessário qualquer preparo. Até os irresponsáveis o podem. Até adolescentes, quiçá crianças, são capazes de fazê-la. Mas, para matar, não. Para matar é preciso esmero, preparo, uma efetividade inequívoca, alheia ao erro.

E, até então, assim havia sido a conduta da Morte.

Desde o primeiro instante de existência desta Terra em que trabalhava, a Morte jamais havia falhado, sendo condecorada diversas vezes pela competência com que desempenhava suas tarefas atribuídas pelos desígnios divinos.

Seu descuido acarretaria em todo um desacordo generalizado na ordem estabelecida.

Diferente daquilo que se tem propagado pelos profetas diversos, que se auto-intitulam mensageiros dos caprichos de Deus, mas que na verdade não passam de seres com um pouco mais de astúcia do que a maior parte dos homens, e uma oratória um bocadinho mais apurada, não existe o livre arbítrio. Existem muitas coisas divinas, presentes de Deus às suas criaturas, como o gozo, por exemplo. Mas não o livre arbítrio.

Tudo o quanto sucedeu e que está ainda por suceder, já estava previamente deliberado por Deus. Mas, ainda que onipresente e onisciente, são tantas as coisas que envolvem a administração de um local onde diferentes espécies de vida se interseccionam, que mesmo do alto da Sua divindade, Deus não daria conta de tudo. Por isso, designou entidades chaves para Lhe auxiliarem na gestão do todo. A Morte, até pela excelência que lhe era de praxe, há muito era a mais importante destas entidades.

Maria Eduarda deveria morrer.

Na verdade, sequer nasceria, mas Antonio, seu pai, desenvolvera ainda na juventude uma cardiopatia que só seria curada com transplante. Entretanto, dada a raridade do seu tipo sanguíneo e particularidades do seu genoma, não havia entre as pessoas já existentes um doador compatível.

Foi por isso que, ao conceber Maria Alice, Deus fez com que se dobrasse o feto no ventre da esposa de Antonio. Deste modo, enquanto a primeira nasceria com uma importante missão já pré-estabelecida, a segunda serviria de estepe para o pai adoecido, cabendo-lhe por finalidade ceder ao pai, no momento oportuno, o coração que um atropelamento faria parar de bater. Assim, apesar da dor pela perda de uma das filhas, haveria o conforto de ela ter se perpetuado no próprio pai, ao permitir que Antonio permanecesse vivo no sacrifício de Maria Eduarda.

Maria Alice deveria viver.

Ela conheceria Pedro. Apaixonar-se-iam, se casariam e trariam à vida Cecília.

Cecília seria a peça chave da obra de Deus. Mais importante do que a lenda cristã, ela existiria de fato, e de fato mudaria o mundo.

Nasceria com uma inteligência e sensibilidade superior. Aglutinaria o raciocínio lógico dos cientistas mais brilhantes com a sensibilidade humana dos filósofos mais apurados.

A filha de Maria Alice e Pedro desenvolveria toda uma estrutura logística, então inexistente, capaz de fazer escoar de maneira rápida, barata e segura, todo o excedente de alimentos das regiões produtoras, àquelas que morrem desnutridas na míngua da fome.

Desta solução logística que Cecília criaria, surgiria uma nova estrutura social, um modelo de organização política e econômica que aliaria os ideais igualitários do socialismo, com a prosperidade econômica do capitalismo.

Havendo abundância suficiente para saciar as mais severas abstinências alimentares, tantas outras pessoas notáveis passariam a se destacar e, assim como na administração divina as entidades se dividem na coordenação do todo, na Terra, várias novas pessoas brilhantes se fariam notar, convergindo suas inteligências na reorganização do mundo. Mas somente seriam possíveis estes notáveis, a partir da interferência de Cecília na Terra. Sem a solução logística inicial que só ela seria capaz, nada do resto que estava previsto, aconteceria.

Deus projetara Cecília, pois estava cansado. Ela seria, finalmente, a sua chance de descanso. Depois dela, as coisas entrariam nos eixos, e não mais haveria a necessidade da interferência de Deus para que o mundo permanecesse a existir.

Contudo, agora que Maria Alice estava morta, após o equívoco da Morte, nada disso seria viável.

Maria Eduarda não seria capaz de gerar Cecília. Até por que, como nascera apenas para oferecer um coração suplente ao pai cardiopata, sequer fora dotada de fertilidade. E mais, Pedro não se apaixonaria por ela, pois ainda que fosse esteticamente igual à Maria Alice, a centelha nos olhos desta última, que faria com que Pedro se encantasse de imediato, não havia naquela primeira.

Sabedora do estrago que seu erro havia causado nos planos de Deus para aquela família de predestinados, a Morte entrou em desespero absoluto.

Ao perceber que o olhar confuso da alma que tinha nas mãos era de Maria Alice, e não de Maria Eduarda, a Morte caiu num pranto apavorado de culpa e medo, deixando aquela alma que já não entendia nada do que estava acontecendo, ainda mais desorientada.

Largou a alma de Maria Alice no mesmo local onde havia ido buscá-la, e foi direto ao encontro de Deus. Apesar do medo do castigo que certamente teria, precisava da Sua intervenção para tentar reajustar as coisas que, pelo seu descuido primeiro, haviam saído do prumo na exata medida do caos.

Deus ouviu a confissão da Morte com o semblante cerrado. Esfregava suas mãos fortes e grossas sobre a barba muito negra que trazia no rosto, sua testa franzia com uma expressão de preocupação e desalinho, realçando suas rugas de tantas eras.

Afogada no seu choro convulsivo, a Morte se ajoelhou diante de Deus a espera da penitência que lhe caberia, e aceitaria o que lhe fosse declarado merecido, pois tinha plena consciência da gravidade imperdoável da sua falha.

Mas Deus, diferente daquele tirano deus cristão e de todos os vários outros que as pessoas da Terra se habituaram a adorar, era bom.

Com carinho, passou sua mão áspera e calejada do trabalho árduo que realizara desde sempre, pelo rosto encharcado de lágrimas da Morte. Afagou-lhe os cabelos loiros e disse sorrindo, Não fique assim, minha amiga, a culpa não é sua.

O olhar da Morte, agora, tinha ainda mais espanto do que o da alma de Maria Alice.

Eu me demorei demais em trazer ao mundo a solução para o caos que permiti se formar entre as espécies que inventei. Talvez meu erro maior tenha sido o de dar razão a uns bichos, e a outros, asas. Com isso, permiti que se acreditassem uns, melhores do que outros, apesar de terem todos, desde sempre, o mesmíssimo valor. Esqueçamos disso tudo, disse Deus.

E o mundo? Questionou a Morte.

Esqueçamos dele também.

Tudo por causa do meu erro?

Não, minha amiga querida, tudo pelo meu erro em ter feito tanta força boa, como a sua, empenhar sua existência na sustentação de um tipo de vida que nunca fez muito esforço para manter o mínimo de harmonia nem mesmo entre os seus, que dirá com as espécies transversais com que compartilham o mundo.

Mas o Senhor não vai conceder a eles a graça do Seu amor infinito?

Já concedi, eles não fizeram questão de tê-lo. E no pouco caso que fizeram da minha oferta amorosa, acabei lhe sobrecarregando com a impossível tarefa de manter em harmonia aquela gente tão desinteressada pela paz.

Mas e agora, o que devo fazer?

Voltemos todos pra casa, você precisa descansar, foram cansativas demais tuas últimas eras. Vivamos agora com um pouco daquela paz tão boa que conhecemos bem, mas que aquela minha experiência na Terra não fez questão de ter.

E assim, num plano existencial incompreensível para as gentes da Terra, Deus, Morte e todas as demais entidades, voltaram a sua rotina de felicidade perene e imperturbável.

Antonio morreu na fila de espera por um coração compatível.

Maria Eduarda fora abandonada por Flávio, seu marido, quando este descobriu que a jovem esposa não lhe poderia dar o filho que sonhava ter para levar ao campo de futebol.

Ela envelheceu ao lado da mãe, que morrera bem velhinha.

Pedro casou-se com uma outra moça, teve filhos medíocres, sem soluções sequer para suas próprias vidas, que dirá para as mazelas da Terra.

O mundo, algumas poucas décadas depois da morte de Maria Alice, morreu de fome.

5 comentários:

Casa de Mariah disse...

Nunca engoli a história do livre arbítrio mesmo.

Cara, impressionada aqui. Fazia muito (mas muito mesmo) tempo que não me deparava com textos tão agradáveis.

Parabéns!

Unknown disse...

Acho que só faltou o seu Caveira no conto. Muito bom, muito bom mesmo.

luiza disse...

Perfeito.

Detesto textos que falam de morte. Mas o teu me surpreendeu, como sempre.


luiza

Don Mattos disse...

Putz, Luiza, em quase todos os meus textos eu mato alguém.

Deve ser por isso que você parou de me seguir ali do lado, hahaha.

Bruna Rafaella disse...

Meu caro,

não sei o que faço contigo!!
você cabe no bolso? tenho uma bolsa também, é apertada mais é nova, hahaha...
eu preciso dos seu textos todos os
dias,estou ficando viciada neles!

perfeito é pouco!!